A melhor maneira de definir um herói ou uma heroína, penso eu, é observar seu(s) mais significativo(s) feito(s). Com o perdão pela tautologia, um herói ou uma heroína caracterizam-se essencialmente como realizadores de um ou mais atos heroicos. Se estivermos de acordo nesse ponto, devemos nos perguntar então: o que confere heroicidade a um ato?
Creio que a maioria das pessoas dirá que um ato heroico deve denotar bravura, coragem. Uma ação dessa natureza também carrega um forte componente moral: sua finalidade é ajudar ou salvar outra(s) pessoa(s), ficando o bem-estar ou a segurança do agente em segundo plano. NOTA: Algo que me enerva profundamente é o exagero retórico típico de muitas pessoas (entre elas, jornalistas) chamando de herói um atleta que, sei lá, fez X pontos numa partida ou marcou um gol na decisão de um campeonato. É o mesmo exagero retórico que fala em time de guerreiros. Diabos me carreguem! É esporte! Não é questão de vida ou morte - ou, pelo menos, não deveria ser.
Meu intuito, ao destacar o ato e não o indivíduo que o executa, é afirmar a grande improbabilidade de alguém ser herói full time. Como se sabe, a palavra herói vem da Antiguidade e na mitologia greco-romana designava alguns semideuses, ou seja, criaturas com capacidades extraordinárias, únicas, acima do que um simples humano - um "mero mortal" - pode fazer. Essas habilidades, em geral, diziam respeito à destreza em combate ou à força física. Com o passar do tempo, o conceito de herói incorporou sentidos relacionados ao caráter dos sujeitos assim nomeados: além de corajosos e bons de briga, supostamente honrados e decentes. Ora, que homem ou mulher normal consegue ser tudo isso integralmente, em todas as fases de sua vida?
Essas questões voltaram à minha mente semanas atrás, quando reli (pela enésima vez) A hora e vez de Augusto Matraga, narrativa que fecha o Sagarana, um dos meus livros de cabeceira. De cafajeste a redentor, o protagonista dessa novela de Guimarães Rosa é, em minha opinião, a grande figura heroica da literatura brasileira. Relembremos como se dá a transformação do personagem.
"Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato" ¹, segundo a esposa Dionóra - que foge dele para viver com outro -, Nhô Augusto é um mandachuva de roça em franca e rápida decadência. Após mais um de seus rompantes, um coronel adversário aproveita a oportunidade para ir à forra. Nhô Augusto é espancado, marcado a ferro. Tentando fugir dos capangas que queriam matá-lo, salta em uma ribanceira profunda. Gravemente ferido, quase morto, é resgatado e cuidado por um casal de pobres e velhos lavradores, Quitéria e Serapião. Aconselhado por um padre, desiste dos planos de vingança, envergonha-se do passado vil e violento e passa a demostrar uma fé poderosa: "- Eu vou p'ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal... E a minha vez há de chegar... P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..."
Mudando-se pra outro lugarejo mais distante acompanhado pelos campônios que o salvaram, fugindo da vida antiga, o personagem converte-se num trabalhador braçal incansável, "meio doido e meio santo", abstêmio e reservado. Contudo, passados alguns anos, "pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela". Por coincidência - ou por um lance do destino -, chega ao vilarejo justamente nessa época uma quadrilha de jagunços liderados pelo "homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem".
O povoado se assusta, mas Nhô Augusto é pura euforia. Faz questão de receber todo o bando em seu pedacinho de terra, oferecendo o que de melhor conseguiu arrecadar na vizinhança. O líder da jagunçada aprova o bom tratamento dado a seus homens; já havia simpatizado com o anfitrião antes, só de tê-lo visto caminhando na estradinha. No dia seguinte, preparando-se para partir, Joãozinho Bem-Bem diz: " - Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha...". Convida-o para integrar o "seu povo". Nhô Augusto resiste à tentação, porém.
Tempos depois, decide ir-se embora, vagar pelo sertão, sentindo-se menos opresso pelos hábitos severos que adotara na "nova vida". Viajando montado num jumento, acaba reencontrando Joãozinho Bem-Bem e sua hoste, dentro da casa de um fazendeiro aliado do bandido, no arraial do Rala-Coco, próximo àquele de onde o protagonista dessa história fugira.
Chegamos ao clímax de A hora e vez de Augusto Matraga.
O chefe dos jagunços - seguindo "regras" da jagunçagem - precisa vingar a morte de um de seus sequazes, baleado "à traição" por um habitante do arraial, em fuga a essa altura. Para tanto, irá matar um dos filhos de um velho sertanejo (irmãos do rapaz em fuga) e permitir que os outros bandoleiros estuprem as filhas dele. O velho, chorando ajoelhado, implora piedade. Joãozinho Bem-Bem nega. Desamparado, mas dessa vez com fúria, o lavrador vocifera:
"- Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p'ra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!..."
Nhô Augusto estava no mesmo recinto, sentado num selim velho, presenciando toda a cena, de posse das armas do recém-assassinado jagunço, que lhe foram oferecidas pelo próprio Joãozinho Bem-Bem, num segundo convite para que ele se juntasse ao bando.
Após um momento de silêncio, fala:
"- Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!"
O narrador prossegue:
"Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral".
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¹ ROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: _________. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 (p. 363-413). Todas as citações do texto de Rosa presentes nesta postagem foram retiradas dessa edição.
² Importante mencionar que, no texto, João Guimarães Rosa não explica o que significa a alcunha Matraga, nem como ela foi adicionada à figura de Augusto Esteves.
³ DaMATTA, Roberto. Augusto Matraga e a hora da renúncia. In: __________. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 303-334
BG de Hoje
Como alguns outros grupos de heavy metal, o AVENGED SEVENFOLD foi abrandando sua música ao longo dos mais de 20 anos de existência da banda (não vejo nada de errado nisso, diga-se de passagem). A desaceleração nos instrumentos é nítida, bem como a aproximação com o rock pesado mais tradicional. Um exemplo disso é a canção que dá título a um dos últimos trabalhos de estúdio do grupo, lançado há quase dez anos. A sonoridade e a temática de Hail To The King quase derrapam na breguice de alguns representantes dessa vertente musical (penso, por exemplo, no burlesco Manowar), mas, ao cabo, é uma faixa que se ouve com satisfação.