Não tem jeito. Vou cair no exercício fácil de falar de textos bastante conhecidos. Fazer o quê? Nestas últimas semanas, tão pesadas para mim, busco refúgio em escritores que já li tantas vezes.
Fernando Pessoa, por exemplo. Em especial, poemas do heterônimo Álvaro de Campos.
Comecemos por Adiamento ¹:
Um intérprete bem obtuso do poema tomaria o eu lírico (ou eu poético, se assim desejarem) como um procrastinador um tanto cínico.
Falando nisso, o(a) eventual leitor(a) já reparou que a procrastinação é vista como um dos grandes pecados contemporâneos? Pelo menos é o que diz esta numerosa galera do palavrório motivacional - gurus de autoajuda, coaches e quejandos -, sempre com livros, cursos, palestras ou vídeos do tipo "sete dicas" para reprogramar seu "mindset", desbloquear o poder da mente e tornar-se um exemplo de produtividade.
Produtividade. Conceitozinho maroto...
Claro, ninguém gosta de se sentir improdutivo, penso eu. Mas o que de fato significa ser produtivo, sobretudo quando lembramos que, na ordem capitalista vigente, a imensa maioria das pessoas neste mundo só consegue obter algum dinheiro (necessário para sua subsistência) vendendo (a preço nada justo) sua força de trabalho em ocupações que elas não escolheriam se tivessem opções menos ruins? Nesse caso, em última instância, ser um exemplo de produtividade está beneficiando a quem exatamente? Sem falar que o discurso da produtividade quase sempre vai ao encontro da exploração econômica que nos está conduzindo ao colapso ambiental.
Essas questões, entretanto, são assuntos para outro chopp.
O que seria o adiamento na composição acima? Creio que um dos sentidos possíveis está diretamente ligado a este trecho:
Embora o vocábulo não apareça em nenhum verso, a noção de desesperança - melhor dizendo, a recusa em se ter esperança - é importante para que consigamos apreender esse sentido.
Há um evidente escárnio: preparar-se amanhã para conquistar o mundo no dia seguinte equivale, no fim das contas, a não se preparar.
Para que preparar-se, afinal? Não compensa, não vale a pena; a vida não passa de um logro. E toma-lhe mais um pouco de ironia amarga - "depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser". Se não há esperança, não há motivo para planos. Adie-se tudo, pois, indefinidamente.
Ora, o mundo, imenso, é ainda por cima "opaco" e "alheio", como se lê noutro poema, o celebérrimo Tabacaria (o mundo é também hostil, acrescentaria eu). Para aqueles de nós que falharam em tudo, não é difícil às vezes olhar ao redor e sentir que se perdeu a "irmandade com as coisas":
Esses versos sempre me lembram A náusea, de Sartre (livro que, em breve, será novamente assunto aqui no blog).
Planos, projetos... Quanta inutilidade! Como está escrito em Pecado original,"somos todos quem nos supusemos/A nossa realidade é o que não conseguimos nunca" (assim é pelo menos para alguns de nós).
Porém, o pretexto para esta postagem veio especificamente de um poema sem nome de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, do qual gosto bastante. Reproduzo-o abaixo, na íntegra:
Sorrir em meio ao cansaço (não se está, obviamente, falando de fadiga física) pode soar como um contrassenso à primeira vista. Entretanto, com o passar do tempo e para quem o vivencia, o desconsolo se torna um sentimento familiar, natural, que o "entendimento retrospectivo" consegue examinar, talvez não propriamente de maneira prazerosa, mas com um pequeno e insólito interesse ("que afinal a cabeça sempre serve para alguma coisa"). Quando deixamos de nutrir ilusões, quando nos vemos completamente sem esperanças, a sensação é mesmo quase luxuriante (parece desarrazoado dizer isso, mas não é mentira).
Pessoalmente, porém, se pudesse experimentar, preferiria outras luxúrias.
Na próxima postagem, falarei de uma novela de Guimarães Rosa e de uma série de TV.
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¹ Todos os textos citados nesta postagem estão em Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV (Editora L&PM, 2006)
Homenagem
Dias atrás a oposta Sheilla Castro decidiu encerrar a carreira como atleta profissional de voleibol indoor. Trata-se de um dos maiores nomes desse esporte, no país e no mundo (há quem diga que foi a melhor jogadora brasileira de todos os tempos). Iniciou sua trajetória no Mackenzie, mas foi no Minas Tênis, outro clube aqui de Belo Horizonte, que ela despontou em 2001. Lembro-me bem desse período. Hoje Sheilla faz parte da comissão técnica do time feminino do Minas. Embora discorde de alguns de seus posicionamentos, como fã de vôlei, sempre tive grande admiração por ela. Vai ser difícil aparecer outra com tanto talento. Quem também está deixando de competir profissionalmente é a central Walewska Oliveira, duas vezes medalhista olímpica (bronze em Sydney/2000 e ouro em Pequim/2008), sinônimo de elegância dentro e fora da quadra.
BG de Hoje
Estou cada vez mais obcecado com a discografia do cantor e compositor canadense Dallas Green (que adota o nome artístico CITY and COLOUR). Das melhores "descobertas" recentes que fiz. Tenho ouvido (quase de forma ininterrupta) os cinco álbuns gravados por ele até agora. As melodias e arranjos maravilhosamente simples, a voz e - não menos importante - as letras cheias de melancolia: combinação cujo resultado é música bem acima da média. Nos últimos dias, às vezes me pego cantarolando estes versos do refrão de Two Coins: "I've always been dark/with light somewhere in the distance". Não é incomum que as apresentações do City and Colour não tenham mais que o artista e seu violão (como no vídeo abaixo). Sugiro, entretanto, ao(à) eventual leitor(a) que procure ouvir essa mesma canção acompanhada de outros músicos, como está no disco The Hurry and The Harm, lançado em 2013. Ficou linda.