"Valentões assalariados ou camaradas em armas, a jagunçagem, 'estado de lei' em oposição à lei do Governo e do Estado, se rege por seu próprio código de honra e se organiza segundo normas próprias, ditadas pelas necessidades de sobrevivência do grupo, e segundo uma espécie de acordo tácito entre seus membros. Caracteriza-a forte senso de hierarquia, que determina que aos chefes cabe ditar as ordens e aos subordinados, cumpri-las".
Sandra Guardini T. Vasconcelos - Homens provisórios. Coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas
"Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim - sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo de bando de bichos - caititú, boi, boiada, exemplo."
Riobaldo, no Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa)
Comecei esta série de postagens com a intenção de demonstrar como o julgamento de Zé Bebelo é uma ocorrência inusitada - não obstante, crucial - dentro de Grande sertão: veredas. Num território impregnado de violência e arbitrariedade, os personagens (eles próprios abusivos e brutais) colocaram em suspensão sua hostilidade e emularam um dispositivo da justiça formal.
Na primeira postagem, o "réu" foi apresentado e ressaltou-se a sua raposice, isto é, a sua astúcia. No segundo texto da série, procurei reforçar junto ao(à) eventual leitor(a) que é de jagunços (ou seja, de bandidos) que estamos tratando (muito embora, graças ao prodigioso poder da ficção literária, consigamos nos sentir próximos deles, humanamente falando). A respeito desse ponto levantado na postagem anterior, considero bem acertada a análise ¹ da professora Sandra Guardini T. Vasconcelos (FFLCH/USP), ao observar que
"Encobertas pela beleza da linguagem e pelo lirismo e dramaticidade do texto, a violência e a brutalidade que pautam as ações e práticas dos jagunços em Grande sertão: veredas parecem ter ocupado uma espécie de segundo plano nas leituras críticas do romance. Com raras exceções - Walnice Nogueira Galvão, em As formas do falso, é a mais notável delas -, poucos foram os leitores de João Guimarães Rosa que se detiveram na questão do coronelismo e jagunçagem no romance"
Hoje, finalmente, trataremos do julgamento propriamente dito.
Desde a captura do chefe rival até o acatamento do veredito imposto por Joca Ramiro, são cerca de 30 páginas. Num lugar chamado É-Já (ah, a obra de Guimarães Rosa e seus topônimos...), Riobaldo e outros jagunços, "sub-comandados" por Hermógenes e (principalmente) Sô Candelário, guardavam o local, presumindo que por ali passaria um grupo de inimigos, liderados por Zé Bebelo - o que acaba acontecendo.
Acuados num amontoado de pedras e em número reduzidíssimo após o tiroteio, Zé Bebelo e seus sequazes seriam facilmente exterminados.
É quando vem à mente de Riobaldo um estratagema ²:
"Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo - que eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a ideia dele, tudo o que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre - Zé Bebelo - a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava? Arresto gritei: - 'Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...' A que nem não sei como tive o repente de isso dizer - falso, verdadeiro, inventado...
Firme gritei, repeti".O ardil dá certo. O líder inimigo é levado vivo à presença de Joca Ramiro, que acabava de chegar com o restante do bando. Riobaldo temia que sua manobra desse errado e Zé Bebelo padecesse torturas. Diante do grande chefe, demonstrando mesmo ser um sujeito estúrdio, Zé Bebelo exige julgamento. E é atendido. Observemos esta passagem:
"Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima abaixo. Daí disse:
- 'Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!'
- 'O senhor se acalme. O senhor está preso...' - Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz.
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento:
- 'Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver...'
- 'Vejo um homem valente, preso...' - aí o que disse Joca Ramiro, disse com consideração.
- Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...'
- 'O que, mano velho?'
- '... É, é o mundo à revelia!...' - isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas".
Esta sentença - "É, é o mundo à revelia!..." - é bastante realçada por estudiosos do Grande sertão: veredas. Como eu a interpreto? A expressão à revelia, claro, faz parte do jargão jurídico: quando um réu, intimado, não comparece à audiência, torna-se revel (ou rebelde) e o tribunal, portanto, pode tomar decisões à revelia daquele. Mas há também um sentido bem mineiro para a expressão: quando algo estava bagunçado, fora de ordem, virado do avesso, alguns de nós, antigamente, diziam que esse algo estava à revelia. Zé Bebelo atribuiu a si a missão de acabar com a jagunçagem (usando, para isso, jagunços!); supunha estar do lado correto, inclusive legalmente. Como poderia aceitar estar preso por aqueles que se colocavam à margem da lei? Isso seria, para ele, fora da ordem normal das coisas! Como se ele próprio não estivesse também à margem da lei... O mundo à revelia é o mundo fora de ordem, onde quem comete crimes prende e julga aquele que o combate. Mas aquele que o combate também está cometendo crimes...
O "réu" é levado então para a Sempre-Verde, propriedade de um aliado (um coronel da localidade). No imenso eirado da fazenda, todos se reuniram. No centro, ficaram Zé Bebelo e Joca Ramiro, tendo a seu lado os "sub-comandantes": Sô Candelário, João Goanhá, Titão Passos, Hermógenes e Ricardão. Circundando os maiorais, o restante da jagunçada. É de se notar que num texto em que pouquíssimos diálogos aparecem - as exceções mais destacadas são as conversas de Riobaldo e Diadorim -, o julgamento permite "ouvir" outras vozes além do narrador.
Joca Ramiro - o "juiz" - pede aos "sub-comandantes" que apresentem suas "alegações". Da parte da acusação, falam Hermógenes e Ricardão; pela defesa, Titão Passos, com intervenções de Sô Candelário e João Goanhá. Hermógenes declara "que se devia de amarrar este cujo, feito porco". Sangrá-lo. Ou atravessá-lo no chão e passar com os cavalos por cima. Zé Bebelo reage de forma escarnecedora a esse e outros rompantes, deixando Hermógenes furioso, disposto a matar o "réu" ali mesmo, naquela hora. É quando Joca Ramiro, evitando o confronto, mostra também ser astuto: " - 'Mas ele [Zé Bebelo] não falou o nome-da-mãe, amigo...' ". Ricardão faz uma acusação mais voltada, digamos, ao mérito da querela. Pede a condenação e execução do "réu": "a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada". A sua exposição - lembrando das baixas provocadas pelo inimigo e do compromisso do bando de Joca Ramiro com coronéis da região - produz grande efeito, inclusive sobre Riobaldo. A fala é então concedida a Titão Passos:
" - 'Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta ocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá sei de toda consciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estou como debaixo de juramento; sei porque de jurado já servi, uma vez, no júri da Januária... Sem querer ofender ninguém - vou afiançando. O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis guerrear, veio - achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrêgo de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. Suas licenças...' ".Essa fala condensa, de certa maneira, tudo o quis discutir nesta série de postagens. Por um momento, a ferocidade daqueles sujeitos foi suspensa para produzir algo civilizado e que não fazia parte de seus usos e costumes: um julgamento. Passado o "refrêgo" da batalha, matar por matar pareceria errado, uma vez que o réu não cometeu "crime constável". Na alegação de Titão Passos também vemos que a lei, naquele sertão, não é determinada por nenhuma autoridade governamental ou representante do Estado. Há um regimento muito próprio desses guerreiros. E só este é obedecido por eles.
Caso o(a) eventual leitor(a) já tenha lido o romance, vai se lembrar que Riobaldo também teve direito a voz no julgamento, argumentando que absolver e libertar o réu traria honra a quem o fizesse.
Zé Bebelo acaba absolvido. Joca Ramiro decreta seu banimento de Minas e da Bahia. Diadorim, feliz, pensava que a guerra havia terminado. Porém, o resultado do julgamento desagradou alguns e acontece a traição que leva à nova conflagração armada, o grande conflito que marca toda a narrativa...
Por ser a obra que é, Grande sertão: veredas permite leituras das mais variadas: uma bonita e trágica história de amor, um enorme trabalho de pesquisa linguística, uma "representação alegórica da história brasileira que revela o funcionamento do sistema real de poder no Brasil", de acordo com Willi Bolle - e tantas outras. A leitura que costumo fazer é a seguinte: um magnífico tratamento literário para episódios de violência, com múltiplas causas e justificações, que tem no julgamento de Zé Bebelo o seu mais significativo momento de contraste.
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¹ VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Homens provisórios. Coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 321-333, 1º sem. 2002. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12410>. Acesso em: 20/06/2020. A autora também aponta que os jagunços rosianos, ainda que guardem semelhanças com o tipo ideal do jagunço, têm suas distinções:
"Nem capangas, como os que se associavam a um chefe de parentela ou a um chefe político, nem cangaceiros, como os que percorreram as caatingas áridas do polígono das secas, os jagunços de Grande sertão: veredas são representados como homens livres que optaram pelo modo de vida provisório e nômade da jagunçagem pelos mais variados motivos. Não recebem soldo, como os primeiros, mas são parte integrante do esquema político que impera no sertão e coloca em choque diferentes grupos e facções. são independentes como os segundos, de quem imitam a organização do bando e certas práticas cotidianas, fruto da vida nômade que abraçam. Recriados a partir de dados da realidade, figuram, portanto, no romance como uma mistura que, combinando traços de um e outro tipo, resulta num tipo compósito que retém caraterísticas dos dois".
² ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
BG de Hoje
Já perdi a conta de quantas vezes assisti a esse vídeo no Youtube: Thinkin' About Your Body, interpretada por BOBBY McFERRIN