quinta-feira, 24 de março de 2022

"A vida é muito curta..." Tá falando sério?



Outro dia estava me lembrando daquele filme Cova Rasa, lançado em 1994.

Posso dizer que foi o primeiro trabalho do diretor britânico Danny Boyle a chamar atenção, antes de Trainspotting.

Um trio de roommates tem um método um pouco cruel (mas nem por isso menos interessante) para escolher quem pode ser o novo morador do apartamento em que residem. Os interessados são submetidos a uma espécie de entrevista com perguntas absurdas e incômodas. Ocasionalmente, inclui-se algum tipo de zombaria física. O trio se regala. Dá a eles uma sensação de superioridade. Ver-se-á no decorrer do filme, entretanto, que não eram tão espertos nem tão legais quanto se achavam.
 
De todo modo, acabo sendo favorável ao sistema de seleção de Alex, Juliet e David (os personagens centrais do filme) porque parte do princípio de que seria insuportável dividir a mesma moradia com indivíduos não compatíveis, ainda que paguem em dia e sejam pessoas cordatas.

Também uso um método (nada cruel) para não ter que me engajar em conversas com gente aporrinhante. Há anos, conservo o hábito de beber sozinho. Nos bares, contudo, sempre aparece alguém que gosta de puxar papo. Respondo com os "pois é" e os "é mesmo?" de praxe, benditas expressões para fingir interesse quando não há interesse algum no que o outro está dizendo. Se a falação não dá sinais de desfecho, vejo-me obrigado a  tentar conduzir a "conversa" para um tema que me agrada: música pop ¹. E dou um jeito de saber a opinião do(a) interlocutor(a) sobre os Beatles. Não que eu seja um beatlemaníaco, longe disso: "os quatro de Liverpool" não estão nem entre as minhas 30 bandas preferidas. Mas é preciso admitir o pioneirismo e a inventividade desses caras e como eles (junto com George Martin, claro) ajudaram a moldar muito do que se entende por música pop até hoje.

Se a pessoa fala que não gosta dos Beatles - ou pior, não gosta de música pop -, sei que não devo perder meu tempo e trato logo de ir embora. Ou troco de lugar dentro do botequim. Reconheço que estou incorrendo no lugar-comum do "o mundo se divide entre pessoas X e pessoas Y", mas aquele que não faz distinções desse tipo atire a primeira pedra (e ao usar esse lance da primeira pedra, mostro que adoro os lugares-comuns)

No último sábado, enquanto lavava roupa, ouvia uma coletânea dos Fab Four. Ao chegar numa das canções de que mais gosto - We Can Work It Out - encasquetei com os versos "Life is very short, and there's no time/for fussing and fighting, my friend". Já escutei essa faixa inúmeras vezes, por que só agora o (leve) desconforto?

Acho que tudo começou há algumas semanas, quando assisti o anúncio de um creme dental metido a besta. Como já escrevi aqui e em outras postagens, a publicidade e o discurso publicitário em geral me provocam uma grande ojeriza. "A vida é muito curta para cerveja quente, para café frio, para não celebrar, para sorvete derretido, para 'sem gelo, por favor' ", lê-se durante o comercial. No arremate, "a vida é muito curta para (ter) dentes sensíveis". Comecei a pensar em várias frases babosas que já ouvi ou li com essa mesma introdução: "a vida é muito curta para amar em silêncio"; "a vida é muito curta para permanecer magoado com alguém pelo resto da vida"; "a vida é muito curta para ficar se remoendo e reclamando de tudo"; "life is too short for regrets"; "life is too short to wait". E por aí vai...

Pra início de conversa, não me parece acurado presumir que a vida - assim, sem maiores particularizações e contextualizações - seja curta. 
 
Estaria de pleno acordo se se dissesse que a vida é frágil, instável e cercada de incalculáveis vulnerabilidades por todos os lados.

Mas o que diabos significa dizer que a vida é curta?

15 a 28 dias - esse é o tempo médio de vida de uma mosca. Na minha opinião, é uma vida curtíssima. Jimi Hendrix morreu algumas semanas antes de completar 28 anos. Viveu pouco? Estou certo de que teve uma existência imensamente mais proveitosa do que a minha, sendo eu quase um cinquentenário.
 
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Ninguém nega que a expectativa de vida dos seres humanos ampliou-se ao longo da história, em razão de avanços na medicina, na fabricação de remédios e vacinas, na alimentação, no saneamento e na produção de itens de higienização, etc. (embora, ainda hoje, milhões planeta afora não tenham acesso a vários desses benefícios). Além disso, mesmo que quadrilhas de criminosos brutais não tenham deixado de existir, foi graças ao aperfeiçoamento das leis e da aplicação da justiça (embora cheia de falhas), bem como à monopolização legítima do uso da força física pelo Estado, que um grande número de indivíduos pode escapar da morte decorrente de ataques de hordas itinerantes de facínoras, como era comum na Antiguidade, no medievo e até mesmo no início da era moderna ².
 
Muito mais pessoas hoje têm chance de alcançar 70, 80, 90 anos de idade.

Caramba, isso não é suficiente!?
 
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Matutemos um pouco nas hiperbólicas ideias de imortalidade e eternidade, abordadas há tempos pelas mitologias, pela arte e pelas religiões, ansiadas por tanta gente no passado e no presente.

Quando se olha mais a fundo e de forma realmente honesta, existir para sempre - ou nunca morrer - não seria, como se costuma pensar, verdadeiramente aprazível. Quer estejamos falando de um ponto de vista biológico/físico, quer falemos de um ponto de vista "incorpóreo"/sobrenatural, o ser humano que fosse/se tornasse eterno ou imortal experimentaria nalgum momento, penso eu, uma saciedade ou uma saturação diante da existência que o levaria até desejar sua própria dissipação. 

Os dois episódios finais de The Good Place (já escrevi sobre a série aqui) ilustram o que quero dizer - se o(a) eventual leitor(a) tem interesse em assistir, lamento o spoiler. 
 
Na chegada ao Lugar Bom, Chidi e Eleonor constataram que a ausência da perspectiva da morte transformou os que estavam naquele ambiente supostamente perfeito em "zumbis de felicidade". Decidiram então criar um portal: quem já estivesse satisfeito (ou cansado) de viver para sempre bastava passar por ele e sua existência acabaria. Dos personagens centrais, o mais descerebrado, Jason Mendoza, é o primeiro a desistir da eternidade (decorridos alguns Jeremy Bearimy) e resolve fazer a travessia.

E nem precisamos conjecturar um quimérico "paraíso" no "outro mundo". Bem aqui, neste abjeto planetinha Terra, conseguimos encontrar, até entre aqueles indivíduos beneficiados com uma imensidão de privilégios, rodeados por comodidades e luxos (estou falando, claro, dos ricaços), vários a sentir uma falta de apetência para viver, provocada, em geral, pelo tédio de obter (quase) tudo o que queriam. 

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Falemos agora dos que não são privilegiados, não têm vida cômoda, nem luxuosa (a maioria da população mundial, diga-se de passagem).
 
Imaginemos uma pessoa. Chamemo-la Joana. 
 
Pois bem. Joana nasceu em uma família pobre, numa área rural, sem muitas oportunidades educacionais. Começou a trabalhar cedo. Adolescente, foi para uma cidade maior, tornando-se empregada doméstica, profissão que manteve por 20 anos. Depois virou operária na indústria, realizando a mesma tarefa repetitiva por outras duas décadas. Poderia tentar se manter com o que receberia como aposentada, mas não conseguiria evitar os apertos financeiros. Quase sexagenária, volta a ser empregada doméstica. Quando fez 63, morreu de uma doença cardiovascular. Não descrevi aqui as dificuldades que Joana teve que enfrentar no decorrer de sua existência: mãe solo com dois filhos, sem direitos trabalhistas e com horários escorchantes no tempo de doméstica, pagando aluguel, dependendo do péssimo transporte coletivo, sem boas opções de lazer e cultura, sem contar com redes de proteção social, etc. Não obstante, ela talvez tenha sido feliz. Este, entretanto, não é meu ponto. Minha questão é: essa vida difícil foi curta? Será que Joana - na improvável hipótese de que tenha sido feliz - desejaria o prolongamento dessa mesmíssima vida por mais, sei lá, outros 63 anos? Acho que não...  
 
Vou abrir o jogo: acredito que 99,9% das coisas desse mundo (o termo aqui não se refere apenas a objetos) estão relacionadas a dinheiro - seu bom ou mau uso, sua boa ou má distribuição. Entre os bilhões de indivíduos que não têm grana e são obrigados a vender sua força de trabalho em ocupações árduas, desgastantes, repetitivas ou frustrantes apenas para sobreviver, acredito que bem poucos gostariam de ter sua vida prolongada dentro dessas mesmas condições.
 
No ótimo filme A qualquer custo (Hell Or High Water - direção de David Mackenzie, 2016), quando finalmente Toby (Chris Pine) e Marcus (Jeff Bridges, impecável no papel de velho policial sabichão) se encontram, o primeiro diz:

"I've been poor my whole life. So were my parents, their before them. It's like a disease passing from generation to generation, becomes a sickness, that's what it is. Infects every person you know, but not my boys. Not anymore. This is theirs now". [Eu fui pobre a minha vida inteira. Assim como meus pais e os deles antes. É como uma enfermidade passando de geração para geração, vira uma doença, isso é o que é. Infecta cada pessoa que você conhece, mas não meus meninos. Não mais. Isso é deles agora].

Ele se refere à fazendola semiabandonada que pertencia à falecida mãe. Os filhos dele vão herdá-la, mas agora não mais um campo estéril, com algumas vacas esquálidas, e sim uma área de exploração de petróleo. O imóvel, por causa de dívidas, seria tomado pelo banco. A solução para o problema arranjada por Toby e seu desajustado e violento irmão, Tanner, foi roubar agências da própria instituição financeira que se apropriaria do terreno. Não tenho dúvida de que está aí um dos motivos por que esse faroeste ambientado nos EUA pós-2008 (ou seja, pós-crise da bolha imobiliária) agradou parte do público: torcemos para os ladrões pois eles representam uma vingança contra os malditos bancos.

Como escreveu Eduardo Galeano (já citado aqui), "Dívidas: isto é o que tem quem nada tem; e uma patinha presa nessa ratoeira há de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo". Este blogueiro encontra-se no mesmo barco furado. Não me lembro qual foi a última vez que estive com as contas em dia. Mas, claro, como martelam em nossa cabeça os adoradores do deus Mercado (o que inclui, além dos controladores do capital grosso, uma grande parte dos publicitários e dos políticos, segmentos da mídia/entretenimento e, mais recentemente, coaches e digital influencers), a culpa é exclusivamente minha, pois não tenho "educação financeira". O sistema que explora até a nossa alma não tem nada a ver com isso...

Cheios de dívidas e no limite da saúde física e mental, muitos assalariados de baixa renda, trabalhadores informais e precários, gente que vive de biscate, aqueles e aquelas que não podem atender a determinados caprichos (fazer "uma viagem de descoberta interior" ou escolher "trabalhar com aquilo que gosta", já que a vida é curta, né?), gente que não pode ter o luxo de ligar o foda-se, essas pessoas talvez não estejam interessadas em estender seu tempo de existência, pois não há alternativas a não ser continuar na corrida de ratos - a esse propósito, recomendo vivamente o curta de animação Happiness, de Steve Cutts (a imagem no alto desta postagem foi extraída dele).
 
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Há muitos filmes na minha cabeça hoje. 
 

Entendo perfeitamente a atitude da personagem de Charlize Theron em A estrada (The Road - direção de John Hillcoat, 2009). Por que continuar existindo naquele mundo calamitoso, horrível e ainda cultivar a ilusão de criar uma família? É como ela diz antes de decidir partir para dentro da escuridão pavorosa, hedionda: "Eu não quero apenas sobreviver". Naquele cenário de barbárie e privação extremas - e o filme, a meu ver, acertou ao ser mais desolador ainda do que o excelente livro de Cormac McCarthy -, a melhor alternativa é morrer. Ainda assim, seu companheiro persistirá junto com o filho pequeno. 
 
Por que, fico me perguntando. Por quê?

Discordando da opinião da maioria (opinião que talvez seja resultado da inculcação religiosa), considero suicidar-se um dos gestos mais corajosos que alguém pode executar. Provavelmente por isso ainda não fiz uma segunda tentativa: não tenho a bravura necessária. Provavelmente também resta em mim aquele nocivo "amor gorduroso da vida", característica do Falstaff de Shakespeare, segundo o belíssimo poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

Gostaria que as pessoas pudessem deixar de viver, quando entendessem que já não suportam mais estar vivas. E tanto melhor se pudessem contar com a ajuda do Estado ou de terceiros, sem tabus ou recriminações moralistas e carolas. Considero esse direito de escolha e a assistência que poderia ser prestada avanços civilizatórios. Concordo plenamente com a personagem Gloria Beatty, do livro Mas não se mata cavalo?, de Horace McCoy (já abordado no blog numa postagem de 2014):

" - Uma coisa que me intriga é que todo mundo se preocupa tanto com viver e tão pouco com morrer. Por que é que todos esses cientistas bambas sempre andam por aí tentando prolongar a vida em vez de achar um jeito agradável de acabar com ela? Deve haver um mundão de gente como eu neste mundo... gente que quer morrer mas que não tem coragem..."
 
No ano passado, em meio ao bombardeamento de notícias horrorosas que recebemos todos os dias, não pude deixar de ficar abalado e ao mesmo tempo indignado com o fato de que uma mulher poderia ser condenada a um considerável tempo de prisão por ter furtado dois refrigerantes, um saquinho de refresco em pó e dois pacotes de miojo, na tentativa de alimentar a si e aos filhos.

Em uma entrevista, após ser solta por um habeas corpus concedido pelo STJ ³, ela disse que seu grande sonho "era ser gente". Não duvido que muitos dos tais cidadãos-de-bem-conservadores-e-cristãos apontaram o dedo para a pobre mulher e esbravejaram: "Mas também é uma drogada desocupada que vive na rua! Teve o que mereceu!". Digo a você, eventual leitor(a): já não aguento mais o cada-um-por-si deste mundo, a burrice generalizada, a acumulação indecente de dinheiro, a proximidade do colapso ambiental.

Acho que já vivi demais. 
 
Está insuportável.

Preciso dar o passo final. Que me venha a coragem.

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¹ Já expliquei este ponto anteriormente, mas o faço agora, de novo, pois julgo importante. Quando uso a expressão música pop, estou me referindo a tudo aquilo que não é música clássica nem erudita. Em termos simples: música pop é aquilo que toca no rádio, aquilo que era feito para vender discos (e hoje é feito para gerar downloads ou acessos/visualizações). Não importa a vertente (rock, reggae, dance, metal, o chamado sertanejo, blues, country, o pop em si mesmo - quando considerado como um gênero à parte -, tecno/eletrônico, jazz, aquilo que denominamos MPB, aquilo que toca nos chamados bailes funk, etc.): se não é erudito nem clássico e foi feito com objetivos mercadológicos (o que não significa necessariamente um vício de origem), coloco tudo no gigantesco balaio da música pop. Obviamente, dentro dessa vastidão, há coisas que gosto e coisas que detesto.
 
² Para fazer todas essas afirmações (um tanto forçadas e peremptórias, admito), estou deliberadamente considerando a trajetória humana "somente" a partir do processo de sedentarização possibilitado pela agricultura e o surgimento das condições para o nascimento das primeiras civilizações.  

³ Como um caso desses vai parar no STJ? Que judiciário é esse? Como os juízes das instâncias inferiores não tiveram a compreensão e a sensibilidade adequadas para lidar com isso?
 

BG de Hoje

Adoro o riff de guitarra desta canção: Summer Romance (Anti-Gravity), gravada pelo INCUBUS e lançada em 1997. Alguns comentaristas de música já observaram - e eu concordo - que o Incubus, em muitos momentos, parece um epígono do Faith No More (esta sim uma das minhas bandas preferidas).