Ao contrário do que comumente se pensava, no caso dos primatas, viver em grupos pode ter sido um salto evolutivo e não um processo gradual. Seja como for, a sociabilidade é uma forte característica dessa ordem de animais. De nossa espécie, em particular, pode-se dizer sem erro que a humanidade não seria o que é se não nos tivéssemos associado em comunidades, progressivamente mais complexas ao longo do tempo.
Se por um lado o aumento da complexidade das relações sociais contribuiu, junto com outros fatores, para o desenvolvimento cognitivo da espécie humana - intrinsicamente vinculado à sua sobrevivência -, por outro gerou efeitos colaterais, como as distinções baseadas na força e na intimidação, bem como a estruturação de hierarquias e a instauração de autoridades nem sempre benignas.
Estatuíram-se assim os que mandam e os que, sem alternativa, obedecem; os senhores e os escravos; os dominadores e os dominados.
Enfim, aqueles que dispõem de muito poder e aqueles que têm pouco ou nenhum.
Obviamente, compreendo que a vida civilizada não seria possível sem o estabelecimento de instituições de comando e controle (governos, sistemas jurídicos, órgãos de segurança pública, etc.) ¹. Entendo também que a disputa pela direção a ser tomada pelo Estado faz parte da luta política (e não é recomendável esquivar-se dessa luta: como escreveu Fernando Brant, "o medo de amar é/ não arriscar,/ esperando que façam por nós/o que é nosso dever,/ recusar o poder").
Não nos esqueçamos, porém, de que o poder, em grande parte das situações, ancora-se nalguma modalidade de violência e coerção (física ou simbólica).
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Independentemente das falhas que por ventura exiba, o filme Brightburn (2019 - direção de David Yarovesky) tem ao menos um excelente ponto de partida.
E se uma criatura similar a Kal-el/Clark Kent/Superman não tivesse seguido o virtuoso caminho de paladino do bem? - essa é a pergunta que está subentendida em toda a narrativa.
Despretensiosa estocada na onda de filmes de super-heróis ², Brightburn mostra como o garoto Brandon Breyer, entrando na adolescência, descobre seus dons sobre-humanos e torna-se um monstro, sem perder a carinha de anjo.
Desde o tempo em que era um dedicado leitor de quadrinhos, nunca engoli aquela conversa fiada de que o elevado senso moral do sobrevivente de Krypton, bem como a sabedoria e a parcimônia nos uso de seus assombrosos poderes, deviam-se aos ensinamentos recebidos no seu lar em Smallville, sobretudo os conselhos e lições dadas pelo pai adotivo humano, Jonathan Kent. E só o princípio da suspensão voluntária da descrença aplicado em dose extra consegue explicar a aceitação dessa tremenda implausibilidade.
Falando em olhar crítico para o filão dos super-heróis, não posso deixar de mencionar a ótima série satírica The Boys, produzida pela Amazon e exibida no seu serviço de streaming, adaptação da obra em quadrinhos homônima criada em 2006 por Garth Ennis e Darick Robertson.
Homelander, um dos personagens centrais (tão dotado de poderes quanto o Superman e brilhantemente interpretado pelo ator Antony Starr), é - nada mais, nada menos - um sociopata, segundo o produtor e showrunner da série, Erick Kripke. Algo previsível, já que foi criado num laboratório, marcado por profundas lacunas emocionais e com a capacidade de estraçalhar qualquer um que o contrarie.
Não bastasse o próprio poderio individual dos super-"heróis"/super-"heroínas", em The Boys, outras forças alinham-se a essas figuras sinistras ou ajudam a sustentá-las: a indústria do entretenimento, igrejas, parte da mídia, além, é claro, de uma corporação global gigantesca, responsável, aliás, pelo surgimento de todos(as) eles(as).
Se há uma lição a ser extraída em Brightburn e The Boys (embora seja sempre meio ridículo falar em lição a se extrair) parece ser a de que todo poder corrompe.
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"Todo poder corrompe"...
Esse conhecido adágio inevitavelmente nos remete à famosa frase de John Dalberg-Acton (1834-1902): "o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus".
É divertido notar que pessoas de direita gostam de citar esse enunciado como forma de criticar governantes e quaisquer intervenções ou mecanismos adotados por eles(as) que impliquem ampliação do controle do Estado (entenda-se poder público) - principalmente sobre a atividade econômica. Menciona-se sempre que Lord Acton foi um ardoroso defensor do livre-mercado, da liberdade individual e parte de sua obra anteviu os males do que, desde o século passado, chamamos de totalitarismo.
Creio que ninguém em sã consciência deseja um Estado totalitário. Também tenho em mente que a liberdade individual é um valor pelo qual vale a pena se empenhar. Até aí, o aristocrata britânico e este blogueiro "esquerdopata" não discordam. Suponho, porém, que apenas uma parte pequena do pessoal de direita a que aludi acima consegue perceber a contradição entre propugnar pelo liberalismo (no campo econômico, mas não só) e conservar os privilégios oriundos da condição de nobre, já que Acton foi barão (e condenava o sufrágio universal, diga-se de passagem).
Além disso, em parte por credulidade, mas em parte também por hipocrisia, costuma-se convenientemente não admitir o inegável fato de que proprietários e executivos de megaempresas, donos e diretores de bancos, grandes investidores (em meu juízo, especuladores) das bolsas de valores e fundos de investimentos, etc. também detêm poder - muito poder! - e vários deles subornam, corrompem, arquitetam fraudes e golpes com a mesma (e às vezes até mais) desenvoltura que agentes do Estado inescrupulosos.
Entretanto, é contra os administradores públicos em geral que os protestos e queixas das populações são lançados na imensa maioria das situações nas quais se dá abuso ou mau uso do poder.
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Por fim, não poderia deixar de falar de A decapitação dos chefes ³, de Italo Calvino.
Segundo o ficcionista italiano, as quatro partes que compõem esse escrito (publicado em 1969) seriam esboços de capítulos de um livro que ele pretendia escrever no qual se apresentaria "um novo modelo de sociedade". As duas primeiras partes se passam no tempo em que vive o narrador; as duas últimas referem-se a situações e eventos ocorridos numa época mais antiga.
Ao chegar a uma cidade - a capital de um país não nomeado no texto -, o narrador descobre que naquele dia ocorreria a decapitação dos dirigentes da localidade, uma cerimônia regimental e até festiva, de certa forma. Dentro de um bar, ele ouve de um dos fregueses:
"A autoridade sobre os outros é uma coisa que só existe junto com o direito que os outros
têm de fazer você subir num palanque para ser morto, um dia não muito distante... Que autoridade teria um chefe se não vivesse cercado por essa expectativa? E se não lêssemos nos olhos dele, essa expectativa, o tempo todo que dura o seu mandato, segundo após segundo?"
Um outro habitante do lugar já havia dito: "Quando a fruta está madura é colhida, o chefe é decapitado. O senhor deixaria as frutas apodrecerem nos galhos?"
A explicação para o surgimento de norma tão insólita e implacável está nas duas últimas partes da engenhosa história de Calvino, graças à ação bem-sucedida de um movimento político intitulado Volja i Raviopravie. Os nomes de extração eslava (não só o do movimento como os dos personagens ligados a este), as menções a um czar e a uma Duma, levam o leitor a pensar, inevitavelmente, na Revolução Russa de 1917. Talvez seja um modo do autor ironizar os rumos tomados pela União Soviética em sua experiência de "comunismo/socialismo real", na qual, aliás, dirigentes e governantes perpetuavam-se nos cargos. O objetivo do Volja i Raviopravie era instaurar "uma sociedade igualitária em que o poder fosse regulado pelo assassinato periódico dos chefes eletivos", pois, segundo a teoria que o guiava "cada função de comando só era admissível se exercida por quem já tivesse renunciado a gozar dos privilégios do poder e virtualmente não pudesse mais ser incluído entre os vivos".
Estaria aí a solução para evitar o aviltamento de nossas administrações? Estou só perguntando...
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¹ Ao mencionar a expressão vida civilizada, não descuido da advertência do filósofo romeno Emil Cioran: "Naquilo que concordamos denominar 'civilização' reside inegavelmente um princípio diabólico do qual o homem apenas se deu conta demasiado tarde, quando não era mais possível remediá-lo".
² Espero que o(a) eventual leitor(a) não me entenda mal. Divirto-me, como boa parte da pessoas, com filmes de super-heróis. Alguns, acho realmente bons. Porém, creio que muitos de nós concordam que o formato está ficando meio cansativo, não? Além do mais, como li em algum lugar - e fico com raiva por não lembrar onde -, há algo de errado com histórias que querem nos convencer de que sujeitos podres de ricos (Bruce Wayne, Tony Stark e - por que não - T'Challa) estão nobremente dispostos a bancar os benfeitores.
³ CALVINO, Italo. A decapitação dos chefes. In: _________. Um general na biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 125-138 [Tradução de Rosa Freire D'Aguiar]
BG de Hoje
Entre os muitos subgêneros do rock, o punk nunca foi um dos meus prediletos. Entretanto, como negar sua poderosa influência/inspiração? Que o digam os caras da (já veterana) banda sueca THE HIVES, em canções vigorosas como Hate To Say I Told You So.