sexta-feira, 26 de julho de 2019

Os medalhões e o "regime debilitante"


Atualmente, fama e popularidade são verdadeiras obsessões para muitos indivíduos, mesmo que seus atos pouco ou nada tenham de brilhantismo e nem sua - discutível - condição de figura pública justifique reconhecimento como "pessoa famosa". O que se quer, a todo custo, é tornar-se uma celebridade ou mesmo um digital influencer. A concorrência, porém, é gigantesca; tenta-se de tudo para ganhar atenção. E dá-lhe publicidade, seja aquela contratada junto a profissionais do ramo, seja aquela realizada pelo próprio aspirante à notoriedade, utilizando os meios de que se disponha.

Se o(a) eventual leitor(a) conhece o conto Teoria do medalhão, de Machado de Assis, há de se lembrar da passagem em que o pai discorre sobre "os benefícios da publicidade" ¹ . Sugere ao filho que é necessário por "o teu nome ante os olhos do mundo" dezenas de vezes, valendo-se do puxa-saquismo ou de "pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas". Há outras opções:

"Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume contanto que ponham em realce a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais".

Vale mencionar que expediente similar aparece em outro texto machadiano: Quincas Borba. O protagonista do romance, Rubião, acabara de salvar uma criança, quase atropelada por cavalos. Ele, então, despretensiosamente, narra o caso ao amigo Camacho, o qual decide publicar a história em seu jornal. A princípio, Rubião se irrita com a história publicada, mas vendo que a nota lhe trouxe uma ligeira fama, carregada de palavras lisonjeiras, muda de opinião a ponto de "comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena".

Fazer-se lembrado é o primeiro mandamento publicitário. No Rio de Janeiro do final do século XIX, isso só podia ocorrer através dos jornalecos impressos que pipocavam aqui e ali. Nos tempos atuais - pode-se dizer um tantinho exageradamente - a publicidade está em todo lugar.

Fama e publicidade produzem distinção, muito embora grande parte de seus agraciados não faça jus a essa proeminência (o que não os impede, claro, de obter as vantagens financeiras frequentemente advindas dessa situação). Mas... e daí?, objeta a patuleia. A idiotice, a frivolidade e a inaptidão de fulano ou sicrana não são problema para nós; o que importa é serem famosos.

Como se pode depreender, a fama injustificada muitas vezes converte-se num recurso eficaz para se dar bem. Não à toa, obtê-la é parte crucial da estratégia recomendada em Teoria do medalhão. Voltemos, pois, ao conto de Machado de Assis.

Ainda que o subtítulo da narrativa (Diálogo) nos faça imaginar interlocutores em pé de igualdade, apenas um deles de fato fala - o pai -, não restando ao outro - Janjão, o filho que acabara de completar 21 anos - muito o que dizer.

Segundo o pai, a vida "é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante"

A partir dessa concepção conformista e egocentrada, ele enfileira uma série de recomendações e advertências que, "guardadas as proporções", são tão úteis quanto "o Príncipe, de Machiavelli". Sua intenção é que o filho se torne "grande e ilustre, ou pelo menos notável", e que se levante "acima da obscuridade comum".

Ora, aqui estamos no terreno em que Machado de Assis melhor joga: no desvelamento da mediocridade de nossas elites.

Janjão, aos 21 anos, ao contrário da imensa maioria dos jovens naquela época, possui "algumas apólices, um diploma" e, se desejar, tem "infinitas carreiras" diante de si. Caso não dê certo em nenhuma delas, poder-se-á sempre virar um medalhão, dada a sua condição de privilegiado.

De acordo com o dicionário Houaiss ², há duas acepções de sentido figurado para o termo medalhão: pode denotar um "indivíduo importante; figura de projeção", mas pode ser também o "indivíduo posto em posição de destaque, mas sem mérito para tal". A segunda acepção é a que nos interessa.

Não é preciso demonstrar competência em nada para ser uma medalhão. O importante é ter os contatos certos, encenar os rapapés de praxe e estar em evidência para obter cargos, ocupar postos e ganhar sinecuras. E embora o "ofício" leve tempo para ser aprendido, assim que o indivíduo é alçado a medalhão, entra "na terra prometida":

"Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo [...]"

Quantas pessoas não temos visto por aí - na imprensa, na política, no mundo artístico e do entretenimento - sem nenhuma credencial de maior quilate do que o seu status de medalhão?

No conto de Machado de Assis o pai diz ao filho que para entrar nessa "carreira" é preciso "por todo o cuidado nas ideias que haverás de nutrir para uso alheio e próprio", mas que o melhor é "não as ter absolutamente". Ele acredita que o filho pode ir longe pois é "dotado na perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício". Para um(a) candidato(a) a medalhão, não é proveitoso fazer uso do pensamento apurado. Fosse assim, ele ou ela nunca transcenderiam "os limites de uma invejável vulgaridade" e assim não conheceriam "os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado".

Porém, para que um medalhão chegue , penso não ser suficiente apenas a sua própria "inópia mental". Aqueles que possibilitaram a sua ascensão, bem como lhe abriram o caminho para a glória certamente são tão ou mais imbecis do que o próprio medalhão. E imbecilidade, convenhamos, é o que nunca faltou nessas terras brasileiras (e alhures).

Há uma expressão, no conto do qual estamos falando, de que gosto particularmente. Insistindo que é fundamental asfixiar as ideias (ou seja, reprimir o exercício do pensamento), o pai apregoa "um regime debilitante" (importante frisar que tanto os medalhões quanto os basbaques que os veneram seguem a mesma dieta). As sugestões do personagem para atingir esse fim descrevem, naturalmente, atividades típicas de sua época (como jogar whist, por exemplo). Não é difícil, entretanto, conjecturar sobre as ações que comporiam um tal regime debilitante em nosso tempo. Posso imaginar algo como: recusar-se a ler textos complexos; usar como "fonte de informação confiável" o WhatsApp e posts apócrifos espalhados em mídias sociais; ir ao cinema para assistir coisas como Velozes & Furiosos; repetir a torto e a direito lugares-comuns surrados, muitas vezes tirados de memes da internet, como se fossem a quintessência da sabedoria humana. E por aí vai.

Escapar do regime debilitante não é tão simples quanto se pode supor. Mas caso se deseje fazê-lo, ler Machado de Assis ajuda bastante.
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¹ ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In:_______________. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 82-90 [seleção, introdução e notas de John Gledson]

² MEDALHÃO. In: DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1262

BG de Hoje

O rock deixou de ser um gênero com apelo junto ao público adolescente/jovem, o principal consumidor de música pop desde que a indústria do setor se estabeleceu. É ouvido, nos dias de hoje, principalmente por gente que envelheceu ou está envelhecendo. E embora ficar idoso seja uma merda, o mesmo não se aplica a uma forma de arte. Como escreveu Bill Flanagan num ótimo artigo publicado pelo New York Times em 2016, "rock is now where jazz was in the early 1980s. Its form is mostly fixed". Tornou-se um know-how, uma tradição e uma escola musicais. Qualquer artista interessado nesse tipo de som terá que levar em conta a história do gênero, caso queira produzir algo relevante. Um dos grandes nomes do rock atual, JACK WHITE, tem essa postura. Isso se reflete em todos os seus trabalhos, inclusive na sua banda recente, THE RACONTEURS. Confira nesta faixa, Sunday Driver.

 

domingo, 7 de julho de 2019

10 anos de Besta Quadrada. O que há pra dizer?


Blogosfera... Alguém ainda usa essa palavra?

Em 2005, quando inciei minha experiência com blogs (através do extinto Ração das Letras), o termo não só era largamente utilizado, como ainda respondia por boa parte da interação buscada pelos diversos perfis "soltos" na rede, além de representar satisfatoriamente, naquela época, o fetiche do "conteúdo produzido pelo próprio usuário", elementos incrementados (e valorizados) a partir da chegada daquilo que se convencionou chamar de Web 2.0.

Escrevia-se ou exibiam-se fotos/vídeos de curta duração. Outros perfis faziam comentários (em geral, respeitosos e civilizados e, por isso, respondidos por quem mantinha o blog). O negócio era bem simples, sem a necessidade de criar (e pagar) por um domínio/website específico. Os mais populares costumavam gerar muitos comentários. Sujeitos insignificantes (como este que vos escreve), bem como jornalistas, acadêmicos/as, escritores/as, artistas em geral - muita gente via a parada com bons olhos. Havia blogs de culinária e moda; de divulgação científica e sobre fotografia; espaços de denúncia e de reportagem independente; narrativas ficcionais e produção de poesia, entre outros. E, naturalmente, ao lado de trabalhos excelentes, circulava também muita porcaria.

Mídias sociais já faziam parte do cotidiano em 2005: o Orkut era uma febre (pelo menos no Brasil) e o MySpace acabava de dar as caras (falando assim, parece que foi tudo numa era distaaaante...). Entretanto, nenhum destes conseguiu canibalizar a blogosfera. Essa tarefa seria executada por tudo aquilo que veio depois - Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Instagram. NOTA: Espero que o(a) eventual leitor(a) não me entenda mal. Não estou colocando a pecha de "vilão" em nenhum desses aplicativos/mídias sociais. As mudanças tecnológicas nesse campo têm sido vertiginosas, numa trajetória praticamente impossível de alterar (ou de deter, caso se deseje fazê-lo). Quando falo em canibalização, quero apenas ressaltar que Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Instagram, de modos diferentes e às vezes complementares, não só incorporaram os recursos existentes nos blogs, como foram muito além, em matéria de interatividade e veiculação de conteúdo, tornando estes obsoletos. Assim opera a tecnologia, ainda mais quando há corporações e perspectivas de lucro permeando e conduzindo o processo.

Claro, os blogs ainda estão por aí. Muitos deles, porém, atrelam-se a portais mantidos por conglomerados de entretenimento/jornalismo e funcionam quase como as tradicionais colunas dos veículos impressos, sem nada de muito singular, inovador ou atrativo. Talvez nem devessem ser chamados de blogs. Pouquíssimos dão atenção à seção de comentários. Seus autores e autoras são geralmente indivíduos cuja experiência profissional ou fama não derivou da blogosfera. E milhões de outros blogs, criados por amadores e diletantes, foram deixando de ser atualizados. De vez em quando alguém topa com um desses "cadáveres" internéticos.

Penso não ser exagero afirmar que os blogs estão fadados a desaparecer. Não obstante, o mundo vai continuar girando. As bolsas de valores não vão cair por causa disso nem lágrimas de desespero e angústia serão derramadas.

Então por que sinto uma aura de lamento e queixume envolvendo esta postagem ?

Bem... Pode não parecer, mas a minha atividade como blogueiro - com a qual, convém lembrar mais uma vez, não ganho nenhum centavo - é a coisa mais importante que faço. Desconfio também de que é a única coisa que não me deixa desmoronar, mentalmente falando.

. . . . . . .

Há alguns meses, escrevi aqui que milhões e milhões de seres humanos, em todo o planeta, veem-se obrigados a realizar, quase diariamente, tarefas das quais não extraem qualquer satisfação ou alegria - e pior -, nem experimentam sentimentos de realização pessoal (sem mencionar que muitas dessas tarefas resultam em muito cansaço físico e/ou esgotamento mental). Embora admita ser um privilegiado por meu emprego não envolver incumbências penosas nem degradação, estou, como a maioria dos indivíduos, atolado até a alma no pantanal da semi-compulsoriedade alienante do trabalho que é impingida a enormes contingentes da população nas sociedades capitalistas.

Não, definitivamente, meu emprego não tem qualquer relevância. Nem social, nem pessoal. Dependo dele para poder sobreviver, contudo, e não posso simplesmente abandoná-lo, a despeito de não me trazer nenhum contentamento.

Talvez devesse então tentar encontrar alento emocional e psíquico na família, nos amigos ou, quem sabe, em potenciais relacionamentos "amorosos", certo?

Errado.

Meu irmão e minhas irmãs nunca me abandonaram. Pelo contrário: se não fosse por eles nem sei onde estaria hoje. Por isso sempre terão minha gratidão, respeito e, quando precisarem, também auxílio. Todavia, nunca desenvolvemos vínculos afetivos fortes entre nós. É duro reconhecer isso, mas é a verdade.

Quanto às amizades, com toda a franqueza, inexistem. Se desejasse telefonar, neste momento, para qualquer um(a) a quem já considerei amigo(a), para combinarmos um simples bate-papo, não encontraria ninguém com disponibilidade. Teríamos que entrar naquele aflitivo jogo das desculpas-clichês que todos damos e ouvimos: "meu tempo tá uma loucura ultimamente!"; "vamos marcar pra outro dia?"... Há algo mais profundo também: nossas trajetórias existenciais tomaram rumos tão diferentes, nossas visões de mundo se modificaram tanto, que já não há possibilidade de compreensão mútua. Sem julgamentos, sem apontar dedos e imputar erros - são circunstâncias da vida. Nada resta a fazer senão aceitar.

Relacionamentos "amorosos" (ênfase nas aspas) são um tópico desagradável. Talvez fale disso noutra oportunidade. Ou, mais provavelmente, não.

O problema é que, infelizmente, assim como as outras pessoas, às vezes também sinto necessidade de me comunicar. Minha atividade blogueira remedia parte dessa necessidade, além de me trazer grande satisfação às vezes, quando avalio que consegui produzir um bom texto sobre um assunto de que gosto.

Tem sido assim desde o Ração das Letras, em 2005. Continuou com o Sinistras Bibliotecas, durante um curto espaço de tempo, entre 2007 e 2008. E prossegue agora, neste Besta Quadrada, que completou uma década em 2019.

Aqui neste espaço posso imaginar o interlocutor que gostaria de ter no mundo offline. Acabo falando sozinho, naturalmente, mas o(a) eventual leitor(a) não tem noção de como isso me faz bem.

É verdade que deixei de lado o Besta Quadrada neste ano. Meu expediente de serviço aumentou, as funções se modificaram, há uma enorme dificuldade de adaptação ao novo posto de trabalho. Não estou sabendo administrar meu tempo longe do emprego. Além disso, nunca me senti tão amofinado e apático como nos últimos meses. Tenho lido pouco - algo bastante prejudicial para minha atividade blogueira, baseada principalmente no relato de minhas impressões de leitura.

Não quero encerrar este blog, contudo. Tornou-se um espaço vital, indispensável para minha sanidade. Espero conseguir me equilibrar nos próximos dias, ao menos o suficiente para continuar falando sozinho por aqui.

Preciso disso. Desesperadamente.

Na próxima postagem, darei uma olhada num dos mais célebres contos de Machado de Assis, Teoria do medalhão.

Inté.
BG de Hoje

Se há um pessoal cujo som escapa das rotulações que costumamos aplicar a artistas pop é a banda norte-americana OZOMATLI. Num mesmo álbum, diferentes gêneros e subgêneros musicais comparecem (embora o hip-hop seja o grande referencial do grupo, temperado com a latinidade originária de seus membros) e, quase sempre, o resultado é excelente, como nesta faixa caracteristicamente funk, Magnolia Soul, presente no 4º disco lançado por eles, em 2007.