Iria escrever hoje sobre outro assunto. Vai ficar pra próxima, porque, felizmente, acabou chegando às minhas mãos um livro que eu queria muito ler, desde o ano passado.
É O tribunal da quinta-feira ¹, de Michel Laub.
Li-o numa tarde (são apenas 183 páginas). Matutei por um tempinho e o reli daí a dois dias. E se o(a) eventual leitor(a) me perguntasse, na lata, "Gostou ou não?", confesso que teria dificuldade para responder prontamente.
Antes de entrarmos no livro, acho conveniente destacar uma declaração do escritor gaúcho feita em entrevista para O Globo, publicada em novembro de 2016:
"Minha posição é a favor da liberdade do escritor de fazer o que quiser. O dia que abrirmos mão disso, acaba a literatura. Claro que o escritor paga o preço pelas suas escolhas, de acordo com os parâmetros de sua época. O que eu fiz pode desagradar a muitos leitores de hoje, mas é uma briga que vale a pena. No momento que passamos a discutir a legitimidade de um narrador de ficção, defender valores X ou Y, entramos num debate alheio aos mecanismos da arte. Ficção é empatia, e empatia é algo necessariamente difícil - se fosse para ver os nossos próprios valores confirmados no que lemos, melhor ficarmos com o discurso das redes sociais".
Creio não ser por acaso que Laub fale em "uma briga que vale a pena". O autor sabe, é claro, que seu livro não será discutido apenas tendo em mente os "mecanismos da arte". Parte significativa do interesse despertado por O tribunal da quinta-feira decorre, penso eu, não de seus méritos estéticos/literários, mas sim da atualidade de alguns de seus temas - a privacidade em risco na era digital; o suposto cerceamento dos discursos em nome do chamado politicamente correto; o moralismo/puritanismo de parte dos usuários das mídias sociais. A "tese" principal do romance pode ser localizada mais nitidamente no capítulo 24.
Primeiro, alguns dados.
O narrador dessa ficção é José Victor, 43 anos, branco, heterossexual, publicitário relativamente bem-sucedido - ou seja, "um privilegiado do pênis que desde cedo colheu os devidos e respectivos privilégios", como ele diz de si próprio em determinada passagem. Um dia, parte de sua correspondência por e-mail é exposta pela ex-mulher, Teca. As mensagens trocadas entre o narrador e Walter (amigo de longa data, na mesma faixa etária, também publicitário, homo(bi?)ssexual, HIV positivo) são permeadas por um linguajar chulo e até cruel (mas cujas nuanças de conotação - uma espécie de humor interno - não podem ser alcançadas por outros que não os dois correspondentes). O conteúdo é vazado, circula pelo Facebook e em pouquíssimo tempo "uma multidão acima de qualquer pecado" desce a lenha, cheia de fúria santa, em José Victor, Walter e Dani, a namorada do narrador, 23 anos mais jovem do que ele.
A ex-mulher de José Victor, Teca, é arquiteta, filha de pais ricos também arquitetos, e, assim como suas amigas que vazaram o conteúdo dos e-mails, é culta, possui o que se chama hoje de sensibilidade social, tem consciência ambiental e engajamento feminista. Pessoas assim diferem muito, portanto, das turbas ignorantes, preconceituosas e coléricas que infestam e inviabilizam o debate nas seções de comentários dos sites/blogs e nas mídias sociais, certo? Não é bem assim - é o que nos diz o romance de Michel Laub.
Um considerável número de indivíduos usa a internet sobretudo para expor pontos de vista e opiniões, além de defender posicionamentos políticos/ideológicos, notadamente nas mídias sociais. À medida que muitos desses pontos de vista e desses posicionamentos podem ser agrupados em conjuntos maiores, não é descabido falar em campos opostos que se altercam, disputando corações e mentes. E de que lado estaria Teca? Vamos ler este excerto do capítulo 24:
"O lado correto desta briga. Teca pode ficar tranquila a respeito, não é o [lado] dos aposentados, pregadores religiosos e integrantes de torcidas organizadas que se manifestaram logo depois do vazamento. Foram dezenas, centenas deles. [...] É esse lado [o de Teca] que me trouxe ao tribunal. Todos imaginamos fazer parte dele, nós que somos a favor da tolerância, do equilíbrio, da solidariedade que é tão fácil declarar, então uma briga com quem fala em nome disso tudo não deixa de ser uma briga com você mesmo".
E o narrador complementa:
"Eu já criei anúncio de um banco que dizia, aproveite a vida, dinheiro não é a coisa mais importante. Já criei anúncios sobre peças de teatro, creches e espaços públicos de convivência cidadã financiados por fábricas de inseticidas e fomentadores de trabalho infantil. Cada vez que penso na reação de Teca às mensagens, e das amigas de Teca ao vazamento posterior, é como se elas e a internet inteira fossem locutoras de um desses textos. O importante é o tempo para você se dedicar à família e ir atrás dos seus sonhos. O importante é não fazer de sua passagem pelo nosso rico planeta uma aventura em vão. Mostre que a aventura nasceu com você e independe do conflito dos seus interesses com os de outras pessoas, sejam eles puros ou impuros, e não há em você resquício da ambição, inveja, competitividade, agressividade e hipocrisia que vemos no resto do mundo".
Um dos pontos altos de O tribunal da quinta-feira, a meu ver, é o modo como aborda a hipocrisia de determinados tipos de usuários da internet. Não é por acaso que o narrador trabalhe com publicidade. Publicitários não só precisam, por questões de ofício, produzir anúncios hipócritas, como também devem ser capazes de atenuar ou dissimular a falta de sinceridade de seus clientes perante o público. José Victor, ao longo da narrativa, é muitas vezes irônico e mordaz porque não tem dificuldade em detectar a hipocrisia contida em boa parte das falas de quem se perfila no "lado correto da briga".
Pregamos empatia, mas não fazemos questão nenhuma de ouvir com cuidado quem não pensa exatamente como nós. Defendemos tolerância, mas não demoramos a apontar dedos acusadores e a rotular outros indivíduos. Sim, uso a primeira pessoa do plural porque suponho estar do mesmo lado de Teca. E é por isso que o livro de Michel Laub me deixou tão desconfortável.
Por falar em desconforto, não sei se o(a) eventual leitor(a) costuma sentir, durante sua navegação na internet, algo que - na falta de uma expressão melhor - chamo de "mal-estar internético". Esse sentimento engloba, naturalmente, o dissabor e o asco experimentados, por exemplo, durante a leitura de um sem-número de comentários postados em portais de notícias, pejados de selvageria e ódio concentrado. O mal-estar de que estou falando, entretanto, abarca também uma desagradável sensação que surge quando me dou conta de que muitos usuários da internet - posicionados no "lado correto da briga", como este blogueiro imagina estar - acreditam ser dotados de uma superioridade moral incontestável. Ora, é relativamente fácil identificar o discurso intolerante e agressivo em estado puro e a ele se opor ou dele se distanciar. Outra coisa, contudo, é lidar com alguém que se julga moralmente superior, ou pelo menos virtuoso o suficiente para estabelecer, de acordo com a sua agenda (pois está do "lado certo da briga"), o que é ou não aceitável.
Noutra entrevista, desta vez publicada no El País, Michel Laub declarou:
"Todo mundo dá opinião sobre tudo hoje. Ao mesmo tempo, posso apostar que a maioria das pessoas cuida muito para dar certas opiniões. É um mundo contraditório e muito controlado. Existe muita liberdade, supostamente, mas muito puritanismo também. Acho que as coisas não estão bem postas, porque existe, de um lado, muito medo de pensar e, de outro, muita pressão para as pessoas pensarem. Só que o pensamento às vezes é amoral. Precisa testar hipóteses. Você vê uma notícia terrível na TV e se, por um minuto, ponderar, é massacrado. Essa certeza prévia que nos é cobrada é o contrário da ciência... Você não avança nada no conhecimento, na moral, na cultura e em lugar algum se você não puder testar hipóteses, mesmo as mais antipáticas a você".
De fato, aqui no Besta Quadrada, tenho tido muito cuidado antes de postar qualquer texto. Porém, pra deixar claro, não me sinto censurado ou tolhido pelo chamado politicamente correto (parte de minhas opiniões sobre o tema foram publicadas aqui). Simplesmente reconheço que o zeitgeist atual espera de nós outra postura discursiva (o que é positivo em muitos aspectos) e também constato que essa nova postura discursiva (favorecida pela moderna tecnologia de comunicação/informação) dá voz a pessoas e segmentos sociais historicamente silenciados e marginalizados (e isso também é positivo em muitos aspectos). Algumas vezes tenho notado que a grita contra o politicamente correto é mais uma tentativa de disfarçar certa incapacidade de adaptar-se ao atual cenário do que uma defesa da liberdade de expressão.
Nem tudo é positivo, porém.
Como escrevi acima, assim como a propagação do ódio concentrado daqueles que não estão do "lado certo da briga", causa-me tremendo mal-estar a jactância dos que se julgam moralmente superiores e infalíveis em muitas falas propagadas pela internet. Algo não só prepotente, como - e às vezes de forma concomitante - hipócrita.
Numa outra passagem, já nos últimos capítulos, José Victor diz:
"Responderei a todas as pessoas que fizeram comentários ou enviaram mensagens. Entrarei em vinte, duzentos posts sobre o assunto, e darei um like irônico como resposta a quem é incapaz de entender ironia. Não adiantará coisa alguma, tudo continuará onde sempre esteve no debate público dos últimos tempos, a glória do próprio ego numa batalha inútil que ninguém é capaz de interromper, mas ao menos uma vez eles ouvirão algo distinto da própria voz de criança, as certezas de quem nunca saiu do próprio bairro mental".Não dá pra negar que o debate público contemporâneo é dependente do que acontece nas mídias sociais. E penso que todos deveríamos nos perguntar se ele permanecerá "a glória do próprio ego numa batalha inútil" e onde chegaremos com isso.
Teria mais coisas a dizer sobre o livro de Michel Laub, mas meu texto seguiu por um rumo não planejado antes e acabei me perdendo. Voltarei a O tribunal da quinta-feira assim que possível.
Na próxima postagem, finalmente, escreverei sobre a biografia de Lima Barreto, cuja autora é a antropóloga/historiadora Lilia Moritz Schwarcz.
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¹ LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BG de Hoje
Quando Chris Cornell morreu no ano passado, alguns artistas homenagearam-no (merecidamente). Fiquei surpreso, por exemplo, com a singela interpretação da cantora/compositora/pianista Norah Jones para Black Hole Sun, pois a pegada do Soundgarden nada tem a ver com o tipo de música feito habitualmente por ela. Por falar nessa canção, o veterano PETER FRAMPTON arrebentou no programa Guitar Center Sessions, sete anos atrás. Sua versão instrumental do grande hit de Cornell & Cia. é esplêndida. Confira abaixo.
P. S. Não sou músico, portanto, me dê um desconto. Mas não consigo entender como Peter Frampton raramente é reverenciado como o grande guitarrista que é (e sempre foi). Por exemplo, ele não está na lista dos 100 maiores guitarristas de todos os tempos da revista Rolling Stone. Na minha opinião, injustiça.