sábado, 28 de outubro de 2017

Luis Fernando Verissimo e a sinceridade de um escritor profissional (II)


Na semana passada fiz uma mistureba daquelas aqui no Besta Quadrada.

Se o(a) eventual leitor(a) tiver a amabilidade de conferir a postagem anterior, verificará que iniciei o texto com duas citações do filósofo e crítico literário francês Maurice Blanchot (extraídas de um ensaio¹ publicado, creio eu, em 1949), nas quais há reflexões sobre a condição dos escritores (lá, na acepção de literatos). A seguir, mencionei uma entrevista de Luis Fernando Verissimo ao jornal Extra Classe e comentei o fato do autor gaúcho habitualmente ter aspirações modestas como artista, a despeito de seu talento. Ao enfatizar que Verissimo é reconhecido sobretudo por escrever crônicas, obstinei-me - não sei por que cargas d'água - em estabelecer se estas deveriam ou não ser consideradas literatura, o que me volveu para outra questão ainda mais ampla: afinal, que diabos seria a própria literatura? Retornei, então, a Maurice Blanchot e ao seu ensaio A literatura e o direito à morte, observando que o crítico francês, influenciado por Martin Heidegger, acreditava que o ideal da escrita literária é "nada dizer, falar para nada dizer" - expressar, pois, um vazio. Assim sendo, como localizar a literariedade de um texto, se é que isso existe? Como detectá-la nas crônicas? Por que, para muitos, a crônica teria menos "investidura" literária do que outros gêneros? Como se vê, as perguntas assomam. Porém, ao invés de respondê-las, fui citar outro trecho da entrevista de Luis Fernando Verissimo, no qual ele afirma nunca escrever para si, querendo dizer com isso que trabalha seu texto visando o público leitor. Algo execrado por Maurice Blanchot: segundo ele, as obras feitas para serem lidas acabam não sendo lidas por ninguém. Mas, quando paramos para pensar, percebemos que esse ninguém a quem o afetado pensador francês se refere são aquelas raras (e privilegiadas) pessoas que tiveram uma educação literária como a dele ou que compartilharam do mesmo substrato cultural no qual ele cresceu. Senti que precisava desvencilhar-me do enfoque excludente de Blanchot.

E aqui estamos. 

Meu objetivo hoje é apresentar um outro conceito de literatura, para, a partir deste, defender o genuíno lugarzinho da crônica junto aos demais gêneros literários. Mantenho também, desde a postagem anterior, a intenção de desmitificar um pouco o ofício dos(as) escritores(as) e, para isso, as declarações de um autor nada deslumbrado como Luis Fernando Verissimo serão muito oportunas.

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No livro Teoria da Literatura: uma introdução ², de Terry Eagleton, encontramos a seguinte passagem:

"John M. Ellis [atualmente professor de Literatura Alemã na University of California, Santa Cruz] argumentou que a palavra 'literatura' funciona como a palavra 'mato': o mato não é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que por uma razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim. 'Literatura' talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. Como os filósofos diriam, 'literatura' e 'mato' são termos antes funcionais do que ontológicos: falam do que fazemos, não do estado fixo das coisas. Eles nos falam do papel de um texto ou de um cardo num contexto social, suas relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente, a maneira pela qual se comporta, as finalidades que lhe podem ser dadas e as práticas humanas que se acumularam à sua volta. 'Literatura' é, nesse sentido, uma definição puramente formal, vazia. Mesmo se pretendermos que ela seja um tratamento não-pragmático da linguagem, ainda assim não teremos chegado a uma 'essência' da literatura, porque isso também acontece com outras práticas linguísticas, como as piadas".

A literatura não é uma coisa - não é um ente com a mesma, digamos, "densidade" ontológica das rochas ou das células do nosso corpo, por exemplo. Também não seria o caso de classificá-la como algo etéreo, inefável. É claro que o literário se dá por meio da linguagem, sendo os diversos idiomas do mundo o seu sustentáculo. Muitos estudiosos, inclusive, entendem a literatura como uma forma peculiar no uso de um sistema linguístico (o tal "tratamento não-pragmático" mencionado acima), empregando propositalmente determinados artifícios e, com isso, transformando, intensificando ou mesmo deformando esse sistema (Terry Eagleton cita aquele famoso aforismo de Roman Jakobson, segundo o qual a literatura seria uma "violência organizada contra a fala comum"). No momento, interessa-nos mais de perto, porém, a sugestão de que um texto literário é aquele ao qual atribuímos um alto valor, distinguido-o do conjunto dos outros textos produzidos na sociedade. E isso gera "uma consequência bastante devastadora", segundo Terry Eagleton:

"Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria 'literatura' é 'objetiva', no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente - Shakespeare, por exemplo - , pode deixar de sê-lo. Qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe".

Importante: sendo um qualificativo um tanto flutuante, o adjetivo literário não deveria ser empregado de forma taxativa ³.

A literatura é, pois, uma modalidade de escrita à qual costumamos atribuir um alto valor e que não partilha da estabilidade de outros objetos de conhecimento/estudo (como as rochas e as células, por exemplo). Sua vicissitude "resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor". Uma obra pode receber (ou perder) o status de literatura com a passagem do tempo, mudar de classe. Além do mais, "pode variar o conceito do público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor". Os critérios para avaliar uma boa escrita literária modificam-se dentro de uma cultura - o que era aclamado em um texto no século XVIII pode não ter nenhum apelo para o leitor atual, do mesmo modo que técnicas de escritura e composição hoje em alta sejam desprezadas daqui a algumas décadas.

"Isso" - escreve Eagleton - "não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa que o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura nacional', tenha de ser reconhecido como um construto modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. 'Valor' é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. Assim é possível que, ocorrendo uma transformação bastante profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor a Shakespeare. Suas obras passariam a parecer absolutamente estranhas, impregnadas de modos de pensar e sentir que essa sociedade considerasse limitados ou irrelevantes. Em tal situação, Shakespeare não teria mais valor do que muitos grafitos de hoje. E embora para muitos essa condição social possa parecer tragicamente empobrecida, creio que seria dogmatismo não considerar a possibilidade de que ela resultasse de um enriquecimento humano em geral".

(Bem, como pessimista crônico, este blogueiro, apesar de concordar com o crítico literário britânico a respeito da transitividade da noção de valor, não crê que os seres humanos progridam como espécie ou sociedade e, portanto, não acredita na possibilidade de melhoria aventada acima)

Todavia, não pensemos que os valores são cambiantes simplesmente por causa da arbitrariedade e dos caprichos de nossas inclinações pessoais. Valores tem muito menos a ver com nossa subjetividade e são menos particulares do que costumamos supor. Como observa Terry Eagleton, "todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos outros". Além do mais, os juízos de valor "têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício Empire State". Embora um pouco fora de moda hoje em dia, há uma palavra adequada para designar "essas estruturas mais profundas de crenças": ideologia.

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A literariedade de um texto, como acabamos de ver, é um valor atribuído, escorado, em última análise, nas diversas ideologias em circulação. Creio não ser difícil imaginar aquele que lê - seja um acadêmico ou crítico experimentado, seja um diletante sem maiores credenciais do que seu interesse, curiosidade ou paixão - nesse papel atribuidor. Mas e quanto àquele que escreve? Suponho que boa parte dos(as) autores(as), ao elaborarem seus textos - sejam estes romances, poemas, contos ou crônicas (porque, a esta altura, já não temos dúvida de que a crônica é um gênero literário, não é mesmo?) -, agem, intencional e conscientemente, para que sua escrita exiba certos elementos e traços passíveis de serem valorizados (e isso diz respeito ao aspecto verbal/formal do texto) como literatura, do mesmo modo que o fazem outros artistas nos seus respectivos campos.

Imagino, porém, que os artistas, independentemente do talento individual, não são capazes de produzir obras-primas o tempo todo. Noutras vezes, aquilo que o artista considera um trabalho estupendo pode não ir ao encontro daquilo que os atribuidores de valor - crítica, academia, imprensa, público em geral - têm em mente. Convém também lembrar que os artistas, até segunda ordem, estão sujeitos ao implacável capitalismo, assim como você e eu. E é nesse ponto que entra o tema do escritor profissional.

Parece haver certa vergonha (ou pudor, sei lá) da parte de muitos autores(as) em se assumirem como profissionais. Certamente não é o caso de Luis Fernando Verissimo. Em diversas ocasiões, até mesmo em algumas de sua crônicas, ele trata sem melindres dessa questão.

Já fui, noutros tempos, dessas pessoas que concebem a atividade literária como compromisso puramente artístico, sem qualquer transigência de natureza comercial. E isso é uma tolice! Nem todo(a) escritor(a) que "vende" é, necessariamente, um(a) mau(má) escritor(a) - embora muitos(as) o sejam. E vários(as) autores(as) populares ou bem sucedidos(as) nas livrarias não deixam de estabelecer para si padrões de escrita que avaliaríamos como literários, caso usássemos os critérios empregados no julgamento de obras mais "respeitáveis". Luis Fernando Verissimo, penso eu, é um desses.

Antes de terminar, gostaria de lembrar uma resposta do cronista gaúcho na entrevista ao jornal Extra Classe mencionada lá no início da postagem. Ele dissera, a respeito dos romances de sua autoria, que não tem grandes pretensões literárias. O entrevistador, então, pergunta: "Por escrever entretenimento?". E Verissimo diz:

"É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito... (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial".

Nós que gostamos de literatura temos a mania de só pensar na sublimidade da arte e não costumamos dar a devida atenção à dimensão material e mercadológica dessa atividade cultural. Por isso é sempre bom ouvir o que tem a dizer sobre isso sujeitos lúcidos e sinceros (além de talentosos) como Luis Fernando Verissimo.
__________
¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: __________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]

² EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [Tradução de Waltensir Dutra]

³ "Quando, deste ponto em diante, eu utilizar as palavras 'literário' e 'literatura' neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento", registra Terry Eagleton em seu livro

Eagleton faz ainda um importante acréscimo: "Não entendo por 'ideologia' apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social".

BG de Hoje

Tenho gostado muito do som da banda potiguar FAR FROM ALASKA. Ouvindo direto nos últimos dias, sobretudo a faixa Cobra.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Luis Fernando Verissimo e a sinceridade de um escritor profissional (I)


Num ensaio cujo título é um tanto lúgubre - A literatura e o direito à morte ¹ -, publicado, se não me engano, no final dos anos 1940, o escritor e crítico literário Maurice Blanchot escreveu:

"Desde o seu primeiro passo, diz mais ou menos Hegel, o indivíduo que quer escrever é impedido por uma contradição: para escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons não são nada. Enquanto não se puser à mesa e escrever uma obra, o escritor não é escritor e não sabe se tem capacidade para vir a ser um. Só terá talento após ter escrito, mas dele necessita para escrever".

É possível que muitos(as) - talvez a maioria - dos(as) escritores(as) tenham estacado frente à contradição mencionada por Blanchot, nem que seja ao menos no início de suas trajetórias. "Terei jeito pra coisa?", perguntaram-se, hesitantes, nalgum momento. Mas só há um modo de saber: escrevendo. O texto resultante (a obra resultante) dirá se existe ou não talento. O ensaísta francês acrescenta:

"O escritor não é um sonhador idealista, não se contempla na intimidade da sua bela alma, não se enterra na certeza interior de seus talentos. Seus talentos, ele os põe na obra, isto é, necessita da obra que produz para se conscientizar deles e de si mesmo. O escritor só se encontra, só se realiza em sua obra; antes de sua obra, não apenas ignora o que é, mas também não é nada".

Maurice Blanchot tinha em mente neste ensaio os(as) escritores(as), digamos, com amplas veleidades literárias. Digo isso porque suas observações talvez pouco tenham a ver com autores mais modestos em suas aspirações artísticas, como Luis Fernando Verissimo, por exemplo. Ou talvez não. Vejamos.

Aos 81 anos, o escritor gaúcho acaba de doar parte significativa de seu acervo pessoal (incluindo textos não publicados, rascunhos, traduções, cartuns, etc.) para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que, segundo ele, bem-humorado, vai compor "um cantinho ali da biblioteca" central do novo campus da instituição, recém-inaugurado em Porto Alegre. Sinal inequívoco de que o reconhecido trabalho de Luis Fernando Verissimo já faz parte da história (afinal, acervos do tipo costumam ser demandados por pesquisadores e estudiosos interessados na obra e vida dos autores). E, penso eu, também sinal de aclamação de seu talento, muito embora o criador d'O analista de Bagé e um dos idealizadores da Comédia da vida privada, mesmo após quase cinco décadas de carreira, não costume olhar para si como um literato, na acepção mais requintada do termo. Bem recentemente, em entrevista concedida no mês passado ao jornal Extra Classe, Verissimo declarou:

"A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os orangotangos eternos (Cia das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias".
Esse escritor, contudo, não se notabilizou nacionalmente por obras de grande fôlego (ao contrário do pai, Erico Verissimo) e sim por sua atividade de cronista. O que nos obriga a fazer a velha pergunta, meio embaraçosa, chata e deselegante, mas ainda não completamente vencida: "E a crônica, deve ser considerada Literatura ou não?" Mas melhor seria, pra começo de conversa, perguntar que diabos é a própria Literatura?

Voltemos a Maurice Blanchot.

Em seu ensaio, lemos:

"Constatamos com surpresa que a pergunta: 'O que é a literatura?' só recebeu respostas insignificantes. Mas existe algo mais estranho: na forma dessa pergunta, algo parece retirar-lhe toda a seriedade. Perguntar: O que é a poesia?, O que é a arte? ou mesmo: O que é o romance?, podemos fazê-lo e foi feito. Mas a literatura, que é poema e romance, parece ser elemento do vazio, presente em todas essas coisas graves, e sobre que a reflexão, com sua própria gravidade, não se pode voltar sem perder sua seriedade. Se a reflexão imponente se aproxima da literatura, esta se torna uma força cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão se poderia impor. Se a reflexão se afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca".

Por que perguntar o que é a literatura retiraria, aparentemente, a seriedade da própria pergunta, como pensava Blanchot? Bem, antes de responder, é preciso dizer de saída que o pensador francês foi muito influenciado por Hegel e, especialmente, por Heidegger, dois filósofos famosos pelas ideias meio herméticas e pelos escritos difíceis de ler. Mas procuremos simplificar.

Tentar encontrar o ser da literatura, buscar situá-la ontologicamente -  ou seja, responder, afinal, o que é a literatura -, não pareceria algo sério porque a literatura, segundo Maurice Blanchot, tem como ideal "nada dizer, falar para nada dizer". A literatura se liga a uma linguagem, claro, mas essa linguagem expressa, no fim das contas, o vazio, diz Blanchot, ao modo heideggeriano. Podemos definir determinadas formas de organização da linguagem e chamá-las literárias - romances, poemas, contos -, mas a essência do que responde pelo literário nelas mesmas nos escaparia.

Suponhamos que você receba uma folha de papel na qual esteja escrito, sem qualquer indicativo, apenas o seguinte:

"As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz".

É um texto literário ou não?

Adianto que sim.

Mas o que, precisamente, demonstra a sua literariedade?

A disposição formal do texto? Creio que não. Um léxico particularmente especial, raro, fora do comum? Menos ainda. Então o que é?

Penúltima parte de um ótimo livro de Arnaldo Antunes ², o poema reproduzido acima, se colocado numa folha de papel avulsa, sem indicação de autor, pouco diferiria de um texto convencional, não-poético. Mas há algo difícil de precisar (um nada? um vazio?) naquela organização de palavras que alguns de nós percebemos e interpretamos prontamente como literatura. Um fenômeno assim acontece com as crônicas?

O falecido jornalista (e político) Artur da Távola escreveu certa vez que a crônica é "a literatura do jornal. O jornalismo da literatura". Sérgio Roberto Costa, no seu Dicionário de gêneros textuais ³, afirma que a "crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem".

Quanto ao estilo, "deve dar a impressão de naturalidade e a língua escrita aproximar-se da fala. Daí porque a crônica seja considerada por muitos críticos um gênero menor: aquela vontade de forma que todo grande artista possui termina subjugada pela necessidade de ser acessível a todos. Mesmo assim, alguns desses prosadores são capazes de alcançar uma linguagem de singular beleza".

Estariam todos os cronistas condenados a uma escrita destituída de qualidade artística por causa dessa "necessidade de ser acessível a todos", dessa obrigação de "agradar aos leitores", decorrente, por sua vez, da "finalidade utilitária e predeterminada" do gênero textual que produzem? É óbvio que não. Há centenas de textos - assinados por Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, pelo próprio Luis Fernando Verissimo, por Antonio Prata (na minha opinião, um dos melhores cronistas da atualidade), entre muitos outros - nos quais a composição e  o acabamento primorosos (entre outros elementos) não nos fazem duvidar de que se trata de arte literária. Ainda assim, dedos acusadores são apontados para os cronistas por estes fazerem demasiadas concessões ao leitor... Na entrevista anteriormente mencionada, quando perguntado se obedece a alguma metodologia quando escreve, Luis Fernando Verissimo não faz rodeios: "Escrevo sempre para ser publicado, nunca para deleite próprio. Só com esse foco. Nunca fiz isso de escrever para mim".  E ele não se sente nem um pouco incomodado. Seus leitores, idem. Sou remetido, então, a outra passagem de A literatura e o direito à morte:

"O autor que escreve especialmente para um público", diz Maurice Blanchot, "na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a verdade".

Ao que tudo indica, o critico francês, por meio desse ensaio, visava rebater a concepção de literatura engajada (e, portanto, assumidamente política), defendida por Jean-Paul Sartre em Que é a Literatura? (publicado originalmente em 1948). Percebe-se essa intenção no trecho "daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos" encontrado no excerto acima. No entanto, o que mais me chama a atenção é a sentença "Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê". É um tipo de arrogância aristocrática - diríamos, nos dias de hoje, elitista - antipática até para um cara esnobe como Maurice Blanchot, não obstante seu traquejo intelectual. Ora, quando diz que ninguém lê as "obras feitas para serem lidas" (ou seja, textos artisticamente menos ambiciosos e, em boa parte dos casos, bastante populares), ele quer denotar, com o pronome indefinido ninguém, simplesmente o seguinte: nenhuma-daquelas-raras-pessoas-que-tiveram-uma-educação-literária-como-a-minha-ou-que-compartilham-do-mesmo-substrato-cultural-no-qual-cresci.

Luis Fernando Verissimo escreve para o público, escreve para ser lido. E como seria possível, se seguíssemos de perto o que diz Maurice Blanchot, afirmar que ninguém lê seus textos, quando sabemos ser o escritor gaúcho um dos mais estimados autores brasileiros? Pode-se contra-argumentar, contudo, lembrando que o trabalho de Verissimo não se encaixaria naquilo que o ensaísta francês considera ser literatura.

Precisarei, então, deixar pra lá Maurice Blanchot.

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Só agora, eventual leitor(a), estou me dando conta de que a postagem seguiu por direções não planejadas quando comecei a escrevê-la. O objetivo inicial era apenas destacar alguns pontos da entrevista de Veríssimo ao jornal Extra Classe, mas acabei enveredando por outros rumos, pois também tinha acabado de ler o ensaio A literatura e o direito à morte. E nem sei por que acabei juntando as duas coisas nesta mistura estranha.

Prossigo com a discussão na próxima semana, retomando de onde parei hoje e tentando tornar tudo um pouco menos confuso. Mas não garanto nada.
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¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: _________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]

² ANTUNES, Arnaldo. As coisas. 9 ed. São Paulo: Iluminuras, 2000.

³ COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

BG de Hoje

Nos meus dias ruins (e estes suplantam, com folga, os dias bons) costumo escolher determinadas canções para ouvir pela madrugada afora e tentar aliviar a barra. Uma das que mais tenho escutado ultimamente é a linda Enjoy the Ride, do MORCHEEBA. Ah, importante dizer que essa faixa, na gravação, é interpretada pela cantora Judie Tzuke. A "titular" do Morcheeba, Skye Edwards, estava fora da banda em 2008, quando foi lançado o disco Dive Deep, do qual faz parte Enjoy the ride (Edwards retornaria algum tempo depois).

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Falou e disse...

"É preciso coragem para assumir os riscos de escutar: a escuta tem a capacidade de nos mover de nós mesmos. Determina um jogo instável em que transitamos de falantes a ouvintes para depois retomarmos a fala. Em última instância, é preciso não impor ao outro que, para ser ouvido, se encaixe numa determinada matriz de discurso e sirva a determinados interesses.

É como nos versos de Anna Akhmátova: 'E finalmente pronunciaste a palavra, não como quem se ajoelha, mas como quem escapa da prisão'". *

* LIMA, Daniela. Podem as mulheres falar?: contra a violência naturalizada, sejamos todos bárbaros. Folha de S. Paulo, 6 dez. 2015, Caderno Ilustríssima, p. 6 (também disponível aqui)