Deveria hoje estar escrevendo sobre Lygia Bojunga e sua obra. Vai ficar para quinta-feira. Explico.
Não é habito deste blog reproduzir, integralmente, textos de terceiros.
Na semana passada, porém, li algo escrito pelo Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP - um texto tão bem articulado (mesmo sendo de pequena extensão) e com o qual concordo tão completamente - que não me resta outra alternativa a não ser republicá-lo aqui no Besta Quadrada.
Safatle observa (acertadamente, a meu ver) que uma parcela significativa da "classe média brasileira com sua semiformação característica assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista", como se pode perceber, por exemplo, ao analisar dados da última pesquisa de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2018.
(Sinceramente, estou apreensivo não só pelo atual momento político do Brasil, mas também pelo que está por vir.)
O texto foi originalmente publicado na coluna do autor no jornal Folha de S. Paulo, em 03/03/2017. Entretanto, cheguei a ele através do site da Luciana Genro.
Vale a pena ler. Mesmo.
UM FASCISTA MORA AO LADO
Vladimir Safatle
Há alguns dias, foi publicada a última pesquisa CNT/MDA para a
eleição presidencial de 2018. Três fenômenos são dignos de nota: a
ascensão de Lula, que venceria hoje em todos os cenários, a queda de
todos os candidatos ligados de forma ou outra ao atual desgoverno e a
consolidação do sr. Jair Bolsonaro em segundo lugar, em empate técnico
com Marina Silva.
Um leitura mais detalhada da pesquisa revela fatos ainda mais
surpreendentes. Bolsonaro é o candidato mais votado dentre aqueles que
possuem ensino superior (20,7%) e aparece empatado com Lula na escolha
dos que ganham acima de cinco salários mínimos (20,5%).
Já há algum tempo, o termo “fascista” é utilizado no embate político
de forma meramente valorativa, e não descritiva. Ou seja, não se trata
de descrever algum tipo específico de fenômeno político, mas
simplesmente de desqualificar aquele que gostaríamos de retirar do
debate político.
No entanto, há sim um uso descritivo do termo, há situações nas quais
devemos nomear claramente o que, no final das contas, é a pura e
simples adesão a práticas facilmente qualificadas como fascistas. Pois
poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características
fundamentais.
Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de
Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a
circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e
fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com
situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também
ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim,
ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do
nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a
eixo fundamental do embate político.
Neste sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário
do sr. Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de
saudar e prestar homenagens a torturadores. Não deixa de ser sintomático
que pessoas capazes de se dizerem profundamente indignadas contra a
corrupção reinante afirmem votar em alguém que louva um regime criminoso
e corrupto como a ditadura militar brasileira (vide casos Capemi,
Coroa-Brastel, Paulipetro, Jari, entre tantos outros).
Bem, quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em
manifestações só poderia terminar abraçando toda forma de violência de
Estado.
Por outro lado, sua luta incansável contra a constituição de
políticas de direito, reparação e conscientização da violência contra
grupos vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira
sempre cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.
Por fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto
do direito secular de mando, algo bem expresso no slogan “devolva o meu
país”, fecha o círculo.
Ora, o fato significativo é que a maioria da classe média brasileira
com sua semiformação característica assumiu de forma explícita uma
perspectiva simplesmente fascista.
Ela operou um desrecalque, já que até então se permitia representar
por candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado
de uma reação à “desordem” e à abertura produzida pela revolta de 2013.
Todo evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das
possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de
alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos
lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devemos
“dialogar” com tal setor da população.
Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa
como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos.
Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará
concordando comigo. Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a
adesão a formas de vida radicalmente diferentes. Quem quer um fascista
não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o
escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos desse horizonte
político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os
afetos que sustentam tais escolhas.
De toda forma, há de se nomear claramente o caminho que parte
significativa dos eleitores tomou. Essa radicalização não desaparecerá,
mas é embalada pelo espírito do tempo e suas regressões. Na verdade, ela
se aprofundará. Contra ela, só existe o combate sem trégua.