quinta-feira, 2 de março de 2017

Comer, Ler, Pensar


Definitivamente, a gastronomia e a culinária estão na moda. Há muita procura por cursos de graduação nessa área, motivada, em parte, pelas dúzias de insuportáveis reality shows que, entre trocas de grosserias e lacrimejos, exibem a preparação de refeições. Deve-se mencionar também os programas do tipo "cozinha simpática" - com bate-papos sem sal e receitinhas saudáveis - mas tão desagradáveis de engolir quanto os que mostram chefs dando chilique. Sem falar no presunçoso fenômeno da "gourmetice" - livrai-me, Nossa Senhora do Caldo de Mocotó!

Apesar de detestar o entretenimento culinário, sou racional o suficiente para reconhecer que a humanidade não seria a mesma sem sua capacidade de cozinhar (e de incrementar tal habilidade ao longo de milênios). E embora a afetação e o exibicionismo dos foodies me irritem bastante, todos gostamos de saborear um bom prato, não?

Contudo, não se encontram, na obra dos filósofos, passagens significativas sobre a comida ou sobre o ato de comer. Por quê? Será um tema banal em demasia? Algo que pertenceria exclusivamente ao terreno da fisiologia e não ao do pensamento? Seja lá o que for, não há sequer alusões a esse assunto no trabalho de muitos pensadores. Não é, entretanto, o caso de Walter Benjamin.

Num breve texto chamado Ler romances ¹, Benjamin escreveu:

"Ora, sem dúvida existe um alimento cru da experiência - exatamente como existe um alimento cru do estômago - , ou seja: experiências no próprio corpo. Mas a arte do romance como a arte culinária só começa além do produto cru. E quantas substâncias nutritivas existem que, no estado cru, são indigestas! Sobre quantas vivências é aconselhável ler para tê-las, hein? Golpeiam de modo a fazer sucumbir aquele que as encontrasse in natura. Em suma, se há uma musa do romance - a décima - , ela traz os emblemas que pertencem à fada da cozinha. Eleva o mundo de seu estado cru para produzir seu algo comestível, para fazê-lo adquirir seu paladar. Ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um romance. São obrigações que se excluem".

Acho maravilhoso o modo como o autor relaciona o ato de ler uma obra literária a uma disposição biológica tão vital como comer. As experiências nutrem-nos de várias maneiras, mas a experiência que nos vem por meio de um romance - este, por sua vez, resultado do "cozimento" literário, decorrente do trabalho artístico do romancista - também atende nosso apetite de viver (distintamente, porém, das "experiências no próprio corpo"). Nesse mesmo texto, o filósofo alemão nos diz que os romances "existem para serem devorados. Lê-los é uma volúpia da incorporação. Não é empatia. O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora ao que sucede a este. Mas a clara descrição disso é a guarnição apetitosa, na qual vem à mesa o prato nutritivo".

Essa "volúpia da incorporação", essa gulodice, familiar a todo leitor de textos literários robustos, remete-me a outro escrito de Benjamin, Figos frescos, que faz parte de um conjunto de seis pequenas crônicas nas quais alimentos e bebidas triviais alcançam um outro patamar de significação, que não suporíamos de início.

"Jamais provou uma iguaria" - escreve ele em Figos frescos -, "jamais degustou uma iguaria quem sempre a comeu com moderação", embora frequentemente o prazer seja comprometido pela "imoderação do desejo", como, "por exemplo, quando alguém dá uma dentada na mortadela como se fosse pão, se chafurda no melão como numa almofada, lambe caviar de papel farfalhante e sobre uma cuia de queijo Edam se esquece de tudo o mais que existe na Terra para comer".

O autor nos conta que essa reflexão ocorreu-lhe pela primeira vez quando teve que tomar uma decisão difícil: enviar ou destruir uma carta. Caminhando por uma rua de Nápoles, avistou uma vendedora de figos. "Foi por falta do que fazer que me dirigi até ela; foi por desperdício que, em troca de alguns soldi, pedi meio quilo". Não havia como embalar as frutas. Ele então carrega-as nos bolsos, nas mãos, algumas enfiadas na boca.

"Agora não podia parar de comer, precisava tentar me defender, o mais rápido possível, contra a massa de frutas robustas que havia me atacado. Mas aquilo já não era um comer, mas um banhar-se, pois o aroma resinoso penetrava minhas coisas, se grudava à minhas mãos, emprenhava o ar, através do qual eu levava minha carga. E, então sobreveio a culminância do sabor, na qual, quando o fastio e a náusea - as últimas curvas - estão dominadas, o panorama se abre numa imprevista paisagem do palato: uma maré de avidez, sem sabor, sem limite, verdoenga, que nada conhece a não ser a onda viscosa e fibrosa da polpa da fruta aberta, a total transmutação de prazer em hábito, de hábito em vício".

Ao final, esse desastrado incidente acabou por facilitar-lhe a decisão com relação à carta.

Benjamin pertence àquela reduzida família de pensadores cuja produção filosófica/crítica tem um élan mais próprio da escrita literária do que da escrita analítica/técnica. Nessa família encontram-se também Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Bertrand Russel... Todos excepcionais escritores, no mais requintado sentido da palavra. Seu trabalho de jornalista, com o qual garantia seu sustento, certamente deu a ele uma capacidade de concisão notável e uma encantadora leveza. Essas características são claramente percebidas em Café crème. Num bistrô de Paris, Benjamin prepara-se para tomar seu café, ao mesmo tempo em que pensa sobre temas profundos: a perda irrecuperável do tempo, a solidão e o isolamento experimentados nas grandes cidades.

"E tu mesmo estás sentado, talvez ao lado dele [um viajante qualquer, de passagem por Paris], à mesma mesa, no mesmo banco, e, contudo, te sentes distante e sozinho. Sacrificas tua sobriedade matinal para tomar alguma coisa. E o que não tomas com este café: toda a manhã, a manhã deste dia e, às vezes também, a manhã perdida da vida! Se, quando criança, tivesses sentado a esta mesa, quantos navios não teriam deslizado sobre o mar de gelo do tampo de mármore? Terias sabido como é o Mar de Mármara. Ao avistar um iceberg ou um veleiro, terias tomado um gole para o pai e um para o tio e um para o irmão, até que o creme boiando vagarosamente tivesse chegado à borda espessa de tua xícara, amplo promontório, onde os lábios repousam. Como desvaneceu o teu fastio! Como tudo se passa rápida e higienicamente: bebes, não embebes, não ensopas. Sonolento, estendes a mão para apanhar a madeleine na cesta de pão e, partindo-a, nem sequer notas como te entristece não poder reparti-la".

Assim é o belíssimo estilo de Benjamin. Em Falerno e bacalhau, descreve como se sentiu irmanado a um grupo de pequenos burgueses numa osteria de Roma (justamente ele, que se opunha a essa classe). Narra, em Borscht, como, dentro deste tradicional prato russo, "existe neve, flocos derretidos, avermelhados, comida feita de nuvens, da espécie do maná que, um dia. veio também lá de cima". E, diante de uma refeição pouco convidativa à primeira vista - "vapor de alho, feijões, gordura de carneiro, tomates, cebolas, azeite" -. oferecida por uma ex-prostituta sexagenária, o pensador, em Pranzo caprese, traz para seu texto a passagem de Ulisses pela ilha de Circe.

Na última das crônicas, Walter Benjamin reconta uma linda fábula. Vale a pena lê-la integralmente. Bom apetite!

OMELETE DE AMORAS

Esta velha história, conto-a àqueles que agora gostariam de experimentar figos ou Falerno, o borscht ou uma comida camponesa de Capri. Era uma vez um rei que chamava de seu todo o poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: - Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e tens servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de teu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinquenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma vovozinha, que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão, e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer. - Então o cozinheiro disse: - Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes; o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro. - Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes.

Na próxima postagem presto uma homenagem a uma das maiores e melhores escritoras brasileiras: Lygia Bojunga.
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¹ BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento. In:________. Obras escolhidas, vol. II. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 143-277 [Tradução de José Carlos Martins Barbosa]

BG de Hoje

Nunca considerei The Edge (cujo nome verdadeiro, a propósito, é David Howell Evans) um virtuose (olha quem tá falando; não sei tocar nem campainha...). Obviamente, contudo, as canções do U2 quase sempre carregam a marca inconfundível do seu jeito de tocar guitarra. E penso que Until The End Of The World é aquela em que seu instrumento mais se destaca.