quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"... só faço coisas inúteis"


Vivo estivesse, o poeta Manoel de Barros teria completado um século no ano que passou. Nascido em 1916 na capital do Mato Grosso, Barros estabeleceu dentro da poesia brasileira uma gramática (ele diria "agramática") e um léxico singularíssimos. Como se lê no início de um de seus poemas:

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
         leituras não era a beleza das frases, mas a doença
         delas". ¹

Ou neste outro:

"A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente". ²


No entanto, tenho pensado muito é num outro texto dele - meu favorito, aliás -, provavelmente por causa da tal crise da meia-idade, que resolveu abater-se sobre este blogueiro:

AUTO-RETRATO FALADO

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
       Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
       chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
       estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
        sinto como que desonrado e fujo para o
       Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
       que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
       gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
       faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Todo leitor habituado à poesia de Manoel de Barros sabe o quanto esta é marcadamente memorialística (ainda que boa parte das lembranças do eu-lírico tenha sido imaginada), pululante, num primeiro relance, de elementos biográficos (dando falsas pistas a quem lê, pois, não poucas vezes, são pura criação também). Os cinco primeiros versos de Auto-retrato falado são a demonstração disso tudo.

Nos três versos seguintes, encontramos a "doutrina" poética de Manoel de Barros, condensada numa aliteração bem humorada: "Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz". A "doutrina" é constantemente reiterada. No Livro sobre nada ³, por exemplo, o poeta deseja "fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora". Neste mesmo volume, mais à frente, lemos: "Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário". E também

"Nasci para administrar o à-toa
                                         o em vão
                                         o inútil".

Manoel de Barros é "um apanhador de desperdícios" .

Mas não percamos de vista o Auto-retrato falado.

Por que o poeta sente-se "como que desonrado" pelos livros publicados? Certamente, não por pudicícia. Se pensarmos, entretanto, que o poeta quer "ser admirado pelos pássaros" e entende "o idioma inconversável das pedras" , a poesia fixada no impresso das páginas talvez acabe significando uma traiçãozinha aos "bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios", que prescindem dos livros.

Mas o que mais tem a ver com minha crise da meia-idade, aludida acima, são os penúltimos versos:

"Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
         gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
         faço coisas inúteis".

"Poesia não enche barriga" não é um dito corrente? "Literatura serve pra quê?" não é uma pergunta corriqueira? Produtividade e rendimento: qualquer um que não reze por essa cartilha está condenado à sarjeta - a menos que herde uma fazenda de gado... Não falta tino ao poeta quanto a seu estatuto em nossa medonha sociedade do lucro. E também quanto às implicações das escolhas que fez:

"Hoje eu completei oitenta e cinco anos" - escreve Barros em Fraseador- "O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada".

O futuro já passou por mim faz tempo. E, obviamente, não há mais opções e destinos a considerar - não estou certo, porém, se cheguei a ter um número satisfatório deles numa época anterior. Botar mantimento em casa é um imperativo poderoso.

Literatura e Filosofia, essas duas furibundas inutilidades - só sei trabalhar com elas. Mal e porcamente, reconheço, mas tornou-se a minha vida. Agora, aos 45 do segundo tempo, como mudar? Aliás, por que precisaria mudar?

"Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
         faço coisas inúteis".

Quer saber? Vou continuar fazendo.

¹ BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 87

²  ________. Ensaios fotográficos. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 17

________. Livro sobre nada. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

________. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2006. p. 15

Em poemas de Ensaios fotográficos.

_______. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2006. p. 13

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Como havia dito aqui, passo a manter também um blog escrito apenas em inglês. O nome é Colonized? Os textos, infelizmente, não têm ainda a qualidade que eu desejo (não domino a língua inglesa como gostaria). Por enquanto está servindo apenas para exercitar minha redação num idioma que não é o meu. As postagens por lá são mais curtas e muito mais leves do que as do Besta Quadrada. Caso o(a) eventual leitor(a) queira conferir, o endereço é https://lousantino.blogspot.com.br

BG de Hoje

Ah, como essa canção está casando direitinho com meu atual estado de espírito: Coçando, de ANA CAÑAS.