quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

As entranhas da Casa Assassinada


"É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos".


Do personagem Timóteo, em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso



Você já parou para pensar que, entre milhares de brasileiras e brasileiros devidamente alfabetizados (vários destes fazendo questão de alardear suas graduações e outras titulações universitárias), poucos, muito poucos têm a disposição necessária - bem como a determinação moral ¹ - para ler uma obra-prima como Crônica da casa assassinada ² ? Ou, ainda mais desalentador, nem sequer sabem de sua existência?

Eis um dos mais nefastos aspectos da não-leitura (ou anti-leitura, que jamais deve ser confundida com o analfabetismo).

O ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, num artigo que não me canso de citar ³, dá a esse fenômeno social o nome de "iletrismo", o qual é caracterizado pela "recusa de ler, mesmo quando [as pessoas] dominam a técnica da leitura".

Para Rouanet,

"O homem não lê porque foi condicionado a deixar de ler, passando por uma pedagogia da não-leitura; não lê porque a leitura exige um esforço, enquanto a mídia lhe oferece uma satisfação instantânea; não lê porque a leitura implica uma historicidade, um mergulho temporal na cronologia dos personagens e da trama, enquanto a mídia acabou por habituá-lo a um eterno presente; finalmente, não lê porque passa por uma aprendizagem regressiva que faz com que regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza, sem vínculos entre si, e que nada podem fazer além de refletir um mundo desconexo - por essa razão, ininteligível - e por consequência, não-transformável. É evidente que o contrário é igualmente verdadeiro: por não ler, o homem não aprende a pensar segundo os princípios da causalidade, do ponto de vista histórico e político".

Ao testemunhar essa recusa de ler, fico desnorteado e aflito muitas vezes, pois conheço, trabalho e convivo com pessoas de quem se poderia (e até se deveria) esperar uma frequência maior no universo da cultura escrita. É pena. Receio tratarem-se de indivíduos um tanto empobrecidos, do ponto de vista existencial e cultural. E, infelizmente, são maioria. Jamais experimentarão o lancinante prazer proporcionado por um romance como este de Lúcio Cardoso.

Mas por que considero Crônica da casa assassinada uma obra-prima? Publicado pela primeira vez em 1959, o livro representa um notável e refinado afastamento do regionalismo , "projeto" estético-literário em voga ainda na época do lançamento do romance. A história é ambientada, a maior parte do tempo, na chácara de uma arruinada família do interior, remanescente de antigos fazendeiros poderosos (Os Meneses), e apesar de se passar numa fictícia cidadezinha de Minas Gerais (Vila Velha), a "cor" regional não define os matizes da narrativa; estes provêm dos "estados de espírito" e dos pontos de vista expressos pelos personagens e entrevistos em suas confissões e depoimentos - alguns destes, pejados de desilusão, quando não de desesperança. NOTA; Penso não ser ocioso mencionar que Crônica da casa assassinada consta na versão brasileira dos 1001 livros para ler antes de morrer , popularíssima (e comercialmente bem-sucedida) publicação lançada na década passada em vários países, numa sacada editorial bem espertinha da britânica Quintessence Editions.

A história, poderosa e inclemente, oferece-nos uma evisceração. Os vários relatos contidos no livro, em que os personagens, falando em primeira pessoa, abrem-se para o leitor (com exceção de Demétrio e do jovem jardineiro Alberto), acabam sempre afluindo para Nina - um dos eixos estruturantes da narrativa e uma das maiores criações da ficção brasileira em todos os tempos, não tenho dúvida. O outro sustentáculo da obra, ambiente no qual a maioria desses personagens se encontra (um lugar onde "a felicidade não era comum", segundo Nina), é a Chácara. A estripação dessa casa é o que nos interessa agora.

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Os Meneses eram "nobres da roça", no dizer do farmacêutico de Vila Velha. Seus remanescentes - os irmãos Valdo, Demétrio e Timóteo - debatiam-se, no momento em que a narrativa transcorre, com "investimentos fracassados, operações bancárias mal alicerçadas, empréstimos que jamais eram reembolsados, enfim, toda uma série de desastres financeiros". Mas ainda conservavam uma certa aura.

O médico da família se pergunta, a certa altura:

"E de onde vinha esse prestígio, que poder garantia a essa mansão em decadência o seu fascínio, ainda intato como um herança poética que não fora roída pelo tempo? Seu passado, exclusivamente seu passado, feito de senhores e sinhazinhas que haviam sido tios, primos e avós daquele Sr. Valdo que agora ia ao meu lado - Meneses todos, que através de lendas, fugas e romances, de uniões e histórias famosas, tinha criado a 'alma' da residência, aquilo que, incólume e como suspenso no espaço, sobreviveria, ainda que seus representantes mergulhassem para sempre na obscuridade".

Esse passado, em que mando e riqueza misturavam-se (propiciados, obviamente, pela exploração de pessoas escravizadas, como o leitor facilmente intui), permite aos sucessores, não obstante a ruína circundante, sustentar um "insuportável ar de fidalgo da província", desabafa André, "herdeiro" desse clã decadente.

Demétrio, o mais orgulhoso desses últimos Meneses (de "natureza tão arragaidamente mineira", como observa Betty, a sábia e sensível governanta da Chácara), apega-se com unhas e dentes a esse passado em dissipação.

"Mais do que o seu estado natal" - conta-nos a governanta - "amava ele a Chácara, que aos seus olhos representava a tradição e a dignidade dos costumes mineiros - segundo ele, os únicos realmente autênticos existentes no Brasil. 'Podem falar de mim', costumava dizer, 'mas não ataquem essa casa. Vem ela do Império, e representa várias gerações de Meneses que aqui vieram com altaneria e dignidade".

Julgo ser necessário comunicar ao(à) eventual leitor(a) desta postagem que, para mim, um dos maiores atrativos de Crônica da casa assassinada é o modo como Minas Gerais e os mineiros são desancados impiedosamente.

Espero que o(a) eventual leitor(a) me compreenda. Sou mineiro e não odeio Minas Gerais. Porém, há um lado terrível na, digamos, “mineiridade”. Muitos nascidos nesse estado refugiam-se na palavra tradição quando não desejam ser atacados em seu conservadorismo tacanho: vários destes são escancaradamente reacionários. Há, por certo, coisas esplêndidas na “Terra das Alterosas”, mas há também, sinto, muita mágoa represada, muito disse-me-disse e um orgulho bobo, mesclado a um anseio de autossufiência. A esse propósito, Nina (personagem nascida e criada no Rio de Janeiro, até então a principal cidade do Brasil) é implacável. Numa das passagens do diário de Betty, ela lamenta: “Ah, Minas Gerais […] essa gente calada e feia que viera observando no trem. Pelo jeito eram tristes e avarentos [...]”. A aversão pelos mineiros naturalmente foi agravada pelo tipo de vida experimentado dentro da Chácara, junto aos rígidos Meneses. “- Não sei, não sei – murmurou [Nina] – Essas velhas famílias sempre guardam um ranço no fundo delas. Creio que não suportam o que eu represento: uma vida nova, uma paisagem diferente”.

Claro que outras localidades não são por isso ilhas de perfeição – ainda que os execráveis clamores separatistas provenientes do sul do Brasil, sobretudo no Rio Grande, queiram difundir o contrário. Quem, por exemplo, tem paciência para a arrogância de São Paulo e aquele papo de “locomotiva” do país ou para quando os moradores do Rio de Janeiro apresentam-se como os definidores das “tendências” e do jeito-de-ser-brasileiro?

Voltemos, contudo, à casa dos Meneses, que, segundo Ana, a desventurada esposa de Demétrio, esvaiu-a “como uma planta de pedra e cal que necessitasse do meu sangue para viver”.

A doença, a ferida e a morte são signos constantemente trabalhados nesse romance de Lúcio Cardoso. Em determinada passagem o autor, por meio do médico, faz um diagnóstico brilhante sobre a casa:

"Aquele reduto, que desde a minha infância - há quanto tempo, quando a estrada principal ainda se apertava entre ricos vinháticos e pés de aroeira, tortuosa, cheia de brejos e de ciladas, um prêmio quase para quem se aventurasse tão longe... - eu aprendera a respeitar e a admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue (Ah, esta imagem de gangrena, quantas vezes teria de voltar a ela - não agora, mais tarde - a fim de explicar o que eu sentia, e o drama que se desenrolava em torno de mim. Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue já não circula, e a força se esvai, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente miséria da carne humana. Veias em fúria, escravizadas à alucinação de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composição final de nossa trama, famélico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vitória mortal e purulenta)".

O leitor sabe que não há salvação para essa casa: é de um romance trágico que estamos falando. Um extraordinário romance trágico, devo acrescentar, que "paira solitário dentro da ficção brasileira", como pensava o escritor Walmir Ayala: não há nada parecido nas letras nacionais. Chamar a escrita de Lúcio Cardoso de prosa intimista (como muitos críticos fazem) não é suficiente para dizer o que é esse livro.. Crônica da casa assassinada é uma obra sombria, cujos personagens nos ensinam duras lições. Como não ficar pensando nesta fala de Nina, muito tempo após sua leitura?

" - Somos sempre cruéis quando queremos ser nós mesmos [...] Mas os outros, os que nos impedem, os que nos tolhem o caminho... que dizer deles?"

Ou ainda essa lúcida afirmação do incompreendido, rejeitado e enlouquecido Timóteo?

"É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos".

Deveria ainda falar mais detalhadamente sobre Nina, mas a postagem já está enorme. Deixarei para outra ocasião - quem sabe, por exemplo, numa série sobre grandes personagens da literatura brasileira (e, nesse caso, não poderei deixar de mencionar também Ana, a antagonista de Nina, outra esplêndida criação de Lúcio Cardoso).

Na próxima semana, escreverei sobre um poema de Manoel de Barros.
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¹ Ao falar em "determinação moral", tenho em mente uma observação do escritor catalão Emili Teixidor, citada pela pesquisadora Teresa Colomer em Andar entre livros (Editora Global, 2007, p. 68). Para ler determinadas obras, o leitor necessitaria de "um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber' ". Ou seja, o leitor precisaria querer, com maior intensidade, ler certos livros, não porque estes estejam na moda ou atendam a seu - natural e legítimo - desejo de evasão, mas porque são importantes enquanto obras de arte. E mais uma coisa: ler de fato Literatura significa também acreditar em sua importância.

² CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 8 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008

³ ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 57-77

⁴ Importante salientar que nada tenho contra o regionalismo dentro da história da Literatura brasileira. Quero salientar apenas que o trabalho de Lúcio Cardoso conseguiu realizar algo extraordinariamente inovador, mesmo tendo diante de si um conjunto de narrativas bem diferentes da sua, em matéria de expressividade e temática, e que eram as mais representativas da nossa Literatura naquele momento.

1001 livros para ler antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2010 [Tradução de Ivo Korytowski, Marcelo Mendes e Paulo Polzonoff]. Sobre o trabalho de Lúcio Cardoso, o jornalista e escritor José Castello (conhecido pela biografia de Vinícius de Moraes), escreveu: "Com ênfase na prospecção psicológica, a literatura de Cardoso se opõe aos padrões regionalistas e sociológicos que vigoram na literatura brasileira a partir dos anos 1930. Ele está mais próximo de escritores de ascendência católica, como Cornélio Penna, Octávio de Faria, Augusto Frederico Schmidt e o Vinícius de Moraes da primeira fase, a 'metafísica'. Sofre, ainda, a influência velada da psicanálise e guarda vestígios do romantismo. Seu tema central é a insolúvel solidão do homem".

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Quando se pensa que ninguém mais quer se aventurar num blog, somos surpreendidos por pessoas que ainda utilizam essa ferramenta, com intenções e desejos vários. Por exemplo, como vários poetas, Norma de Souza Lopes (trabalhamos hoje na mesma escola, aliás) mantém um endereço na blogosfera (Norma Din) para apresentar seus poemas. E dias atrás fiquei sabendo que minha sobrinha, Gabriela, prosadora (a maior parte do tempo), também criou o seu cantinho (Escrever é preciso, viver não é preciso).

Creio que o(a) eventual leitor(a) não se arrependerá de conhecer ambos.


BG de Hoje

Falecido no final do ano passado, GEORGE MICHAEL já não era a o mesmo popstar que fora nos anos 1980 e no início da década seguinte. Vivia recluso, fazendo pouquíssimos shows. Não posso dizer que fosse um grande fã do cantor e compositor britânico (cujo nome original era Georgios Kyriacos Panayiotou), mas gosto de alguns de seus hits. Minha faixa predileta é Kissing A Fool, uma canção romântica sem final feliz.