sábado, 18 de fevereiro de 2017

A preocupação com as calorias e a desnutrição da política


No mês passado, li um ótimo texto de Nathali Macedo, colunista do Diário do Centro do Mundo, que me levou a pensar na relação entre a preocupação com quilos "a mais" e a diminuição da consciência política. Na ocasião, ela apontava para o anacronismo dos famigerados concursos de beleza, em particular os de misses - sendo o Miss Universo, o de maior visibilidade, "mais obsoleto que aparelho de fax. Mais cafona que os quadros de Romero Britto. Mais desnecessário que os tweets de Janaína Paschoal".

A articulista, lembrando as surreais críticas surgidas nas mídias sociais e direcionadas à representante do Canadá na última edição do referido concurso (supostamente, a candidata estaria "acima do peso" e "não teria corpo de miss"), afirma: "Ter 'corpo de miss', lamento, está fora de moda. A ressignificação da beleza é um sintoma do empoderamento feminino, quer queira a indústria da moda, quer não".

Mas a indústria da moda e da beleza, mancomunada com a indústria do entretenimento e a publicidade, formam um troço poderoso, difícil de escapar. Não a ponto, porém, de impedir a resistência e o questionamento: "Quantos bilhões ela deixaria de lucrar se todas as mulheres acordassem amanhã se sentindo fabulosas?"

A indústria da moda e da beleza busca impor uma lógica cruel, cujos desdobramentos são danosos para o conjunto da sociedade:

"Quanto mais nos sentirmos gordas, feias e insuficientes, mais seremos lucrativas. Não importa se isso custa vidas de mulheres anoréxicas/bulímicas, ou das que morrem em procedimentos estéticos mal feitos. Não importa se isso custa a felicidade de quem vive todos os seus anos buscando uma beleza fictícia.

Permitam-me repetir o óbvio: O padrão de beleza não existe na realidade – é criado na mídia, retocado no photoshop e endossado pelos concursos de beleza e blogueiras fitness.

A beleza plástica reverenciada por estes concursos é uma fraude: as mulheres reais – que pagam contas, vão ao supermercado, buscam o filho na creche – nunca chegarão lá, não importa o quanto se esforcem, e não importa o quanto a indústria da beleza procure convencê-las de que basta que se esforcem. Não basta".
O texto termina com um bela frase que, suponho, refere-se a uma postagem escrita pela professora e blogueira feminista Lola Aronovich, do conhecido blog Escreva Lola Escreva:
"Comece uma revolução. Ame o seu corpo".
A obsessiva (e por vezes insana) preocupação de muitos e muitas com a "boa" aparência, decorrente, por sua vez, da "boa" forma física produz outros efeitos nocivos no terreno da política, além desses ressaltados por Nathali Macedo. No seu livro Em busca da política¹, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (falecido no mês passado) escreve:

"Ocupados como estamos em combater ou manter à distância uma sempre crescente variedade de alimentos venenosos, de substâncias que engordam, de emanações cancerígenas, de estilos de vida prejudiciais à saúde e uma miríade de aflições que ameaçam a boa forma física, sobra pouco tempo (e esperamos que não sobre nenhum) para ficar remoendo sobre a futilidade disso tudo".

Por que tudo isso seria fútil? Bem, sendo curto e grosso, é porque não podemos excluir a morte da equação existencial.

Há doenças relacionadas com o aumento de peso? Sem dúvida. Ter uma dieta saudável e praticar atividades físicas regularmente faz bem? Concordo. Porém, não tenhamos ilusões: ao final, morro eu e morre o triatleta vegano não-fumante campeão mundial (muito provavelmente, admito, bem depois de mim). Mas tem mais. Fala-se bastante em garantir "qualidade de vida" (prefiro pensar em qualidade de morte) para se justificar a preocupação com a "boa" forma física. Nada contra. Mas desconfio que, no fundo, esse não é o real motivo na maioria dos casos. Retornemos a Bauman:

"Na sua forma pura e bruta, o medo existencial que nos torna ansiosos e preocupados é incontrolável, intratável e portanto incapacitante. A única maneira de suprimir essa verdade horripilante é dividir o grande medo esmagador em pedacinhos menores e controláveis - reformular a grande questão (sobre a qual nada podemos fazer) num conjunto de pequenas tarefas 'práticas' que podemos esperar realizar. Nada acalma mais o ser pavoroso que não conseguimos erradicar [a insegurança inerente ao estar vivo, representada em última instância pela morte] do que se preocupar e 'fazer algo' a respeito do problema que podemos enfrentar. Considerando tal necessidade, a gordura parece mais uma mania coletiva, uma dádiva divina. Pode ser uma ilusão (e é: nenhum acúmulo de gramas e polegadas perdidas jamais vai preencher o abismo), mas enquanto pudermos nos iludir podemos pelo menos continuar vivendo - e vivendo com um propósito, vivendo portanto uma vida com sentido [ainda que este propósito se resuma a manter a "boa" forma e protelar a morte].
A gordura é apenas uma questão da grande família das 'tarefas práticas' que o eu órfão pode estabelecer para si mesmo apenas para afundar e afogar o horror da solidão no mar das pequenas mas absorventes preocupações que consomem o nosso tempo e a nossa mente [...]".

Caso consiga emagrecer "X" kg em "Y" meses, divido assim meu "grande medo esmagador [do desamparo inerente ao estar vivo] em pedacinhos menores e controláveis". - são menos 200 gramas essa semana (viva!); não vou comer esse sanduíche podrão, nem aquela taça de sorvete (que resistência heroica!). E por aí vai. Convenço-me de que nada posso fazer quanto aos outros fatores que me inquietam e perturbam: a precarização das condições de trabalho e a ameaça de desemprego, o enfraquecimento dos instrumentos de proteção social, a concentração da renda nas mãos de poucos, tudo isso está muito além de meu raio de ação. Dieta e academia três vezes por semana, por outro lado... Pois, ilusoriamente, acredito que manter a "boa" forma é um objetivo existencial suficiente - "vamos todos morrer esbeltos", como ironizou uma vez Frei Betto - e, em última análise, é uma das únicas "tarefas práticas" das quais posso dar conta sem ser instado a me associar com outros seres humanos.

Individualista em essência,

"o que o caso da gordura mostra - prossegue o sociólogo polonês - é que uma vez privatizada e entregue aos recursos pessoais a tarefa de lidar com a insegurança existencial humana, os medos que cada um sente só podem ser 'contados' mas não partilhados ou unidos numa causa comum com a qualidade nova da ação conjunta. Não há um caminho óbvio que leve dos terrores privatizados às causas comuns que podem se beneficiar do confronto e do enfrentamento conjunto".
Ou seja, o caso da inquietação com o peso e a gordura corporal (e, por favor, é claro que não estou, com essa discussão, negligenciando os danos à saude decorrentes da obesidade) indica nossa incapacidade de encontrar meios para a organização coletiva, bem como sustentar um verdadeiro domínio público, lembrando Hannah Arendt.

Na introdução de Em busca da política, Zygmunt Bauman já adiantara que

"[...] todo o argumento deste livro é a ideia de que a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo (só pode ser assegurada e garantida coletivamente). Caminhamos, porém, hoje, rumo à privatização dos meios de garantir/assegurar/firmar a liberdade individual - e se isso é uma terapia para os males atuais, é um tratamento fadado a produzir doenças iatrogênicas dos tipos mais sinistros e atrozes (destacando-se a pobreza em massa, a superfluidade social e o medo ambiente). Para tornar ainda mais complexas as agruras atuais e as perspectivas de solucioná-las, vivemos também uma época de privatização da utopia e dos modelos do bem (com modelos de 'boa vida' expulsos e eliminados do modelo de boa sociedade). A arte de reiventar os problemas pessoais sob a forma de questões de ordem pública tende a se definir de modo que torna excessivamente difícil 'agrupá-los' e condensá-los numa força política. O argumento deste livro é uma luta (reconhecidamente inconclusiva) para tornar de novo possível a tradução".

É possível traduzir a preocupação com a forma do corpo - reitero, aquela motivada unicamente pela noção furada de "padrão de beleza" e não por razões médicas - numa questão de ordem pública, fazer dela uma força política? Não acho provável. Visar a "boa" forma não me parece um bom caminho para desenvolver um modelo de boa sociedade.

Na próxima semana falo sobre... comida. Mas a partir das reflexões de Walter Benjamin.

. . . . . . .

O(a) eventual leitor(a) talvez esteja informado(a) sobre um incidente lamentável envolvendo o escritor Raduan Nassar e o Ministro da Cultura do ilegítimo (des)governo atual. Dei uma opinião sobre o assunto no meu outro blog, o Colonized? (em inglês). Caso tenha interesse, fique à vontade para conferir. Mas o melhor texto que li até agora, tratando desse desrespeito absurdo com o autor de Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, foi o do sociólogo Rafael Alves, que compareceu à cerimônia de entrega do Prêmio Camões (confira aqui).

¹ BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 [Tradução de Marcus Penchel]

BG de Hoje

O rock que vai direto ao ponto, sem firulas, sempre terá o seu lugar, penso eu. É o caso da banda RIVAL SONS. As boas músicas dos caras (por exemplo, Open my eyes) sempre trazem um riff de guitarra como a essência da canção, lembrando as composições mais clássicas do gênero. É pra bater palma de pé!


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Falou e disse...

"This is a serious project. All immigrants to the United States know (and knew) that if they want to become real, authentic Americans they must reduce their fealty to their native country and regard it as secondary, subordinate, in order to emphazise their whiteness. Unlike any nation in Europe, the United States holds whiteness as the unifying force. Here, for many people, the definition of 'Americaness' is color.

Under slave laws, the necessity for color rankings was obvious, but in America today, post-civil-rights legislation, white people's conviction of their natural superiority is being lost. Rapidly lost. There are 'people of color' everywhere, threatening to erase this long-understood definition of America. And what then? Another black President? A predominantly black Senate? Three black Supreme Court Justices? The treat is frightening.

[...]

So scary are the consequences of a collapse of white privilege that many Americans have flocked to a political platform that supports and translates violence against the defenseless as strength. These people are not so much angry than as terrified, with the kind of terror that makes knees tremble". *  **

* Trechos de Mourning for Whiteness, pequeno ensaio escrito pela romancista norte-americana Toni MORRISON para a série de textos intitulada  Aftermath: Sixteen writers on Trump's America , sobre o que esperar de um governo do famigerado Donald Trump, e publicada pela revista New Yorker em 21 de novembro de 2016.

** [Tradução aproximada: "Esse é um projeto sério. Todos os imigrantes para os Estados Unidos sabem (e sabiam) que se eles querem tornar-se autênticos norte-americanos de verdade eles precisam reduzir sua fidelidade ao seu país natal e considerá-la secundária, subordinada, para enfatizar sua branquitude. Diferente de qualquer nação europeia, os Estados Unidos mantém a branquitude como a  força unificadora. Aqui, para muitas pessoas, a definição da "norte-americanidade" é a cor. Sob as leis escravistas, a necessidade de rankings da cor era óbvia, mas nos Estados Unidos de hoje, pós-legislação de direitos civis, a convicção das pessoas brancas de sua superioridade está sendo perdida. Rapidamente perdida. Há 'pessoas de cor' em todo lugar, ameaçando apagar essa definição há tanto tempo aceita de Estados Unidos. E o que mais então? Outro presidente negro? Um senado predominantemente negro? Três ministros negros na Suprema Corte? A ameaça é assustadora [...] Tão pavorosas são as consequências de um colapso do privilégio branco que muitos norte-americanos foram em bando para uma plataforma política que apóia e traduz a violência contra os desprotegidos como um ponto forte. Essas pessoas não estão tão raivosas quanto aterrorizadas, com o tipo de terror que faz joelhos tremerem"]

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"... só faço coisas inúteis"


Vivo estivesse, o poeta Manoel de Barros teria completado um século no ano que passou. Nascido em 1916 na capital do Mato Grosso, Barros estabeleceu dentro da poesia brasileira uma gramática (ele diria "agramática") e um léxico singularíssimos. Como se lê no início de um de seus poemas:

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
         leituras não era a beleza das frases, mas a doença
         delas". ¹

Ou neste outro:

"A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente". ²


No entanto, tenho pensado muito é num outro texto dele - meu favorito, aliás -, provavelmente por causa da tal crise da meia-idade, que resolveu abater-se sobre este blogueiro:

AUTO-RETRATO FALADO

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
       Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
       chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
       estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
        sinto como que desonrado e fujo para o
       Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
       que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
       gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
       faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Todo leitor habituado à poesia de Manoel de Barros sabe o quanto esta é marcadamente memorialística (ainda que boa parte das lembranças do eu-lírico tenha sido imaginada), pululante, num primeiro relance, de elementos biográficos (dando falsas pistas a quem lê, pois, não poucas vezes, são pura criação também). Os cinco primeiros versos de Auto-retrato falado são a demonstração disso tudo.

Nos três versos seguintes, encontramos a "doutrina" poética de Manoel de Barros, condensada numa aliteração bem humorada: "Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz". A "doutrina" é constantemente reiterada. No Livro sobre nada ³, por exemplo, o poeta deseja "fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora". Neste mesmo volume, mais à frente, lemos: "Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário". E também

"Nasci para administrar o à-toa
                                         o em vão
                                         o inútil".

Manoel de Barros é "um apanhador de desperdícios" .

Mas não percamos de vista o Auto-retrato falado.

Por que o poeta sente-se "como que desonrado" pelos livros publicados? Certamente, não por pudicícia. Se pensarmos, entretanto, que o poeta quer "ser admirado pelos pássaros" e entende "o idioma inconversável das pedras" , a poesia fixada no impresso das páginas talvez acabe significando uma traiçãozinha aos "bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios", que prescindem dos livros.

Mas o que mais tem a ver com minha crise da meia-idade, aludida acima, são os penúltimos versos:

"Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
         gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
         faço coisas inúteis".

"Poesia não enche barriga" não é um dito corrente? "Literatura serve pra quê?" não é uma pergunta corriqueira? Produtividade e rendimento: qualquer um que não reze por essa cartilha está condenado à sarjeta - a menos que herde uma fazenda de gado... Não falta tino ao poeta quanto a seu estatuto em nossa medonha sociedade do lucro. E também quanto às implicações das escolhas que fez:

"Hoje eu completei oitenta e cinco anos" - escreve Barros em Fraseador- "O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada".

O futuro já passou por mim faz tempo. E, obviamente, não há mais opções e destinos a considerar - não estou certo, porém, se cheguei a ter um número satisfatório deles numa época anterior. Botar mantimento em casa é um imperativo poderoso.

Literatura e Filosofia, essas duas furibundas inutilidades - só sei trabalhar com elas. Mal e porcamente, reconheço, mas tornou-se a minha vida. Agora, aos 45 do segundo tempo, como mudar? Aliás, por que precisaria mudar?

"Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
         faço coisas inúteis".

Quer saber? Vou continuar fazendo.

¹ BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 87

²  ________. Ensaios fotográficos. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 17

________. Livro sobre nada. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

________. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2006. p. 15

Em poemas de Ensaios fotográficos.

_______. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2006. p. 13

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Como havia dito aqui, passo a manter também um blog escrito apenas em inglês. O nome é Colonized? Os textos, infelizmente, não têm ainda a qualidade que eu desejo (não domino a língua inglesa como gostaria). Por enquanto está servindo apenas para exercitar minha redação num idioma que não é o meu. As postagens por lá são mais curtas e muito mais leves do que as do Besta Quadrada. Caso o(a) eventual leitor(a) queira conferir, o endereço é https://lousantino.blogspot.com.br

BG de Hoje

Ah, como essa canção está casando direitinho com meu atual estado de espírito: Coçando, de ANA CAÑAS.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

As entranhas da Casa Assassinada


"É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos".


Do personagem Timóteo, em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso



Você já parou para pensar que, entre milhares de brasileiras e brasileiros devidamente alfabetizados (vários destes fazendo questão de alardear suas graduações e outras titulações universitárias), poucos, muito poucos têm a disposição necessária - bem como a determinação moral ¹ - para ler uma obra-prima como Crônica da casa assassinada ² ? Ou, ainda mais desalentador, nem sequer sabem de sua existência?

Eis um dos mais nefastos aspectos da não-leitura (ou anti-leitura, que jamais deve ser confundida com o analfabetismo).

O ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, num artigo que não me canso de citar ³, dá a esse fenômeno social o nome de "iletrismo", o qual é caracterizado pela "recusa de ler, mesmo quando [as pessoas] dominam a técnica da leitura".

Para Rouanet,

"O homem não lê porque foi condicionado a deixar de ler, passando por uma pedagogia da não-leitura; não lê porque a leitura exige um esforço, enquanto a mídia lhe oferece uma satisfação instantânea; não lê porque a leitura implica uma historicidade, um mergulho temporal na cronologia dos personagens e da trama, enquanto a mídia acabou por habituá-lo a um eterno presente; finalmente, não lê porque passa por uma aprendizagem regressiva que faz com que regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza, sem vínculos entre si, e que nada podem fazer além de refletir um mundo desconexo - por essa razão, ininteligível - e por consequência, não-transformável. É evidente que o contrário é igualmente verdadeiro: por não ler, o homem não aprende a pensar segundo os princípios da causalidade, do ponto de vista histórico e político".

Ao testemunhar essa recusa de ler, fico desnorteado e aflito muitas vezes, pois conheço, trabalho e convivo com pessoas de quem se poderia (e até se deveria) esperar uma frequência maior no universo da cultura escrita. É pena. Receio tratarem-se de indivíduos um tanto empobrecidos, do ponto de vista existencial e cultural. E, infelizmente, são maioria. Jamais experimentarão o lancinante prazer proporcionado por um romance como este de Lúcio Cardoso.

Mas por que considero Crônica da casa assassinada uma obra-prima? Publicado pela primeira vez em 1959, o livro representa um notável e refinado afastamento do regionalismo , "projeto" estético-literário em voga ainda na época do lançamento do romance. A história é ambientada, a maior parte do tempo, na chácara de uma arruinada família do interior, remanescente de antigos fazendeiros poderosos (Os Meneses), e apesar de se passar numa fictícia cidadezinha de Minas Gerais (Vila Velha), a "cor" regional não define os matizes da narrativa; estes provêm dos "estados de espírito" e dos pontos de vista expressos pelos personagens e entrevistos em suas confissões e depoimentos - alguns destes, pejados de desilusão, quando não de desesperança. NOTA; Penso não ser ocioso mencionar que Crônica da casa assassinada consta na versão brasileira dos 1001 livros para ler antes de morrer , popularíssima (e comercialmente bem-sucedida) publicação lançada na década passada em vários países, numa sacada editorial bem espertinha da britânica Quintessence Editions.

A história, poderosa e inclemente, oferece-nos uma evisceração. Os vários relatos contidos no livro, em que os personagens, falando em primeira pessoa, abrem-se para o leitor (com exceção de Demétrio e do jovem jardineiro Alberto), acabam sempre afluindo para Nina - um dos eixos estruturantes da narrativa e uma das maiores criações da ficção brasileira em todos os tempos, não tenho dúvida. O outro sustentáculo da obra, ambiente no qual a maioria desses personagens se encontra (um lugar onde "a felicidade não era comum", segundo Nina), é a Chácara. A estripação dessa casa é o que nos interessa agora.

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Os Meneses eram "nobres da roça", no dizer do farmacêutico de Vila Velha. Seus remanescentes - os irmãos Valdo, Demétrio e Timóteo - debatiam-se, no momento em que a narrativa transcorre, com "investimentos fracassados, operações bancárias mal alicerçadas, empréstimos que jamais eram reembolsados, enfim, toda uma série de desastres financeiros". Mas ainda conservavam uma certa aura.

O médico da família se pergunta, a certa altura:

"E de onde vinha esse prestígio, que poder garantia a essa mansão em decadência o seu fascínio, ainda intato como um herança poética que não fora roída pelo tempo? Seu passado, exclusivamente seu passado, feito de senhores e sinhazinhas que haviam sido tios, primos e avós daquele Sr. Valdo que agora ia ao meu lado - Meneses todos, que através de lendas, fugas e romances, de uniões e histórias famosas, tinha criado a 'alma' da residência, aquilo que, incólume e como suspenso no espaço, sobreviveria, ainda que seus representantes mergulhassem para sempre na obscuridade".

Esse passado, em que mando e riqueza misturavam-se (propiciados, obviamente, pela exploração de pessoas escravizadas, como o leitor facilmente intui), permite aos sucessores, não obstante a ruína circundante, sustentar um "insuportável ar de fidalgo da província", desabafa André, "herdeiro" desse clã decadente.

Demétrio, o mais orgulhoso desses últimos Meneses (de "natureza tão arragaidamente mineira", como observa Betty, a sábia e sensível governanta da Chácara), apega-se com unhas e dentes a esse passado em dissipação.

"Mais do que o seu estado natal" - conta-nos a governanta - "amava ele a Chácara, que aos seus olhos representava a tradição e a dignidade dos costumes mineiros - segundo ele, os únicos realmente autênticos existentes no Brasil. 'Podem falar de mim', costumava dizer, 'mas não ataquem essa casa. Vem ela do Império, e representa várias gerações de Meneses que aqui vieram com altaneria e dignidade".

Julgo ser necessário comunicar ao(à) eventual leitor(a) desta postagem que, para mim, um dos maiores atrativos de Crônica da casa assassinada é o modo como Minas Gerais e os mineiros são desancados impiedosamente.

Espero que o(a) eventual leitor(a) me compreenda. Sou mineiro e não odeio Minas Gerais. Porém, há um lado terrível na, digamos, “mineiridade”. Muitos nascidos nesse estado refugiam-se na palavra tradição quando não desejam ser atacados em seu conservadorismo tacanho: vários destes são escancaradamente reacionários. Há, por certo, coisas esplêndidas na “Terra das Alterosas”, mas há também, sinto, muita mágoa represada, muito disse-me-disse e um orgulho bobo, mesclado a um anseio de autossufiência. A esse propósito, Nina (personagem nascida e criada no Rio de Janeiro, até então a principal cidade do Brasil) é implacável. Numa das passagens do diário de Betty, ela lamenta: “Ah, Minas Gerais […] essa gente calada e feia que viera observando no trem. Pelo jeito eram tristes e avarentos [...]”. A aversão pelos mineiros naturalmente foi agravada pelo tipo de vida experimentado dentro da Chácara, junto aos rígidos Meneses. “- Não sei, não sei – murmurou [Nina] – Essas velhas famílias sempre guardam um ranço no fundo delas. Creio que não suportam o que eu represento: uma vida nova, uma paisagem diferente”.

Claro que outras localidades não são por isso ilhas de perfeição – ainda que os execráveis clamores separatistas provenientes do sul do Brasil, sobretudo no Rio Grande, queiram difundir o contrário. Quem, por exemplo, tem paciência para a arrogância de São Paulo e aquele papo de “locomotiva” do país ou para quando os moradores do Rio de Janeiro apresentam-se como os definidores das “tendências” e do jeito-de-ser-brasileiro?

Voltemos, contudo, à casa dos Meneses, que, segundo Ana, a desventurada esposa de Demétrio, esvaiu-a “como uma planta de pedra e cal que necessitasse do meu sangue para viver”.

A doença, a ferida e a morte são signos constantemente trabalhados nesse romance de Lúcio Cardoso. Em determinada passagem o autor, por meio do médico, faz um diagnóstico brilhante sobre a casa:

"Aquele reduto, que desde a minha infância - há quanto tempo, quando a estrada principal ainda se apertava entre ricos vinháticos e pés de aroeira, tortuosa, cheia de brejos e de ciladas, um prêmio quase para quem se aventurasse tão longe... - eu aprendera a respeitar e a admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue (Ah, esta imagem de gangrena, quantas vezes teria de voltar a ela - não agora, mais tarde - a fim de explicar o que eu sentia, e o drama que se desenrolava em torno de mim. Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue já não circula, e a força se esvai, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente miséria da carne humana. Veias em fúria, escravizadas à alucinação de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composição final de nossa trama, famélico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vitória mortal e purulenta)".

O leitor sabe que não há salvação para essa casa: é de um romance trágico que estamos falando. Um extraordinário romance trágico, devo acrescentar, que "paira solitário dentro da ficção brasileira", como pensava o escritor Walmir Ayala: não há nada parecido nas letras nacionais. Chamar a escrita de Lúcio Cardoso de prosa intimista (como muitos críticos fazem) não é suficiente para dizer o que é esse livro.. Crônica da casa assassinada é uma obra sombria, cujos personagens nos ensinam duras lições. Como não ficar pensando nesta fala de Nina, muito tempo após sua leitura?

" - Somos sempre cruéis quando queremos ser nós mesmos [...] Mas os outros, os que nos impedem, os que nos tolhem o caminho... que dizer deles?"

Ou ainda essa lúcida afirmação do incompreendido, rejeitado e enlouquecido Timóteo?

"É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos".

Deveria ainda falar mais detalhadamente sobre Nina, mas a postagem já está enorme. Deixarei para outra ocasião - quem sabe, por exemplo, numa série sobre grandes personagens da literatura brasileira (e, nesse caso, não poderei deixar de mencionar também Ana, a antagonista de Nina, outra esplêndida criação de Lúcio Cardoso).

Na próxima semana, escreverei sobre um poema de Manoel de Barros.
__________
¹ Ao falar em "determinação moral", tenho em mente uma observação do escritor catalão Emili Teixidor, citada pela pesquisadora Teresa Colomer em Andar entre livros (Editora Global, 2007, p. 68). Para ler determinadas obras, o leitor necessitaria de "um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber' ". Ou seja, o leitor precisaria querer, com maior intensidade, ler certos livros, não porque estes estejam na moda ou atendam a seu - natural e legítimo - desejo de evasão, mas porque são importantes enquanto obras de arte. E mais uma coisa: ler de fato Literatura significa também acreditar em sua importância.

² CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 8 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008

³ ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 57-77

⁴ Importante salientar que nada tenho contra o regionalismo dentro da história da Literatura brasileira. Quero salientar apenas que o trabalho de Lúcio Cardoso conseguiu realizar algo extraordinariamente inovador, mesmo tendo diante de si um conjunto de narrativas bem diferentes da sua, em matéria de expressividade e temática, e que eram as mais representativas da nossa Literatura naquele momento.

1001 livros para ler antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2010 [Tradução de Ivo Korytowski, Marcelo Mendes e Paulo Polzonoff]. Sobre o trabalho de Lúcio Cardoso, o jornalista e escritor José Castello (conhecido pela biografia de Vinícius de Moraes), escreveu: "Com ênfase na prospecção psicológica, a literatura de Cardoso se opõe aos padrões regionalistas e sociológicos que vigoram na literatura brasileira a partir dos anos 1930. Ele está mais próximo de escritores de ascendência católica, como Cornélio Penna, Octávio de Faria, Augusto Frederico Schmidt e o Vinícius de Moraes da primeira fase, a 'metafísica'. Sofre, ainda, a influência velada da psicanálise e guarda vestígios do romantismo. Seu tema central é a insolúvel solidão do homem".

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Quando se pensa que ninguém mais quer se aventurar num blog, somos surpreendidos por pessoas que ainda utilizam essa ferramenta, com intenções e desejos vários. Por exemplo, como vários poetas, Norma de Souza Lopes (trabalhamos hoje na mesma escola, aliás) mantém um endereço na blogosfera (Norma Din) para apresentar seus poemas. E dias atrás fiquei sabendo que minha sobrinha, Gabriela, prosadora (a maior parte do tempo), também criou o seu cantinho (Escrever é preciso, viver não é preciso).

Creio que o(a) eventual leitor(a) não se arrependerá de conhecer ambos.


BG de Hoje

Falecido no final do ano passado, GEORGE MICHAEL já não era a o mesmo popstar que fora nos anos 1980 e no início da década seguinte. Vivia recluso, fazendo pouquíssimos shows. Não posso dizer que fosse um grande fã do cantor e compositor britânico (cujo nome original era Georgios Kyriacos Panayiotou), mas gosto de alguns de seus hits. Minha faixa predileta é Kissing A Fool, uma canção romântica sem final feliz.