quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Estes tempos velozes combinam com Literatura?




Em setembro de 2010 escrevi aqui sobre uma das conferências de Italo Calvino reunidas em Seis propostas para o próximo milênio*. Preciso hoje voltar às suas reflexões.

Como se sabe, naquele livro, o escritor defende "alguns valores literários que mereciam ser preservados", ainda que não tenhamos indicação alguma dos rumos a serem tomados pela Literatura nos mil anos vindouros. Os valores seriam a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência (Calvino, todavia, faleceu antes de escrever sobre o último). Assim como na postagem de 2010, vamos nos ater apenas à rapidez.

De acordo com o autor italiano, "o século da motorização [o século XX] impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem". E assim permanece no século XXI. A lentidão, pelo que temos visto, não combina com a lucratividade de uma economia cada vez mais dependente de um mercado financeiro voraz, interconectado, que reage a mudanças em questão de minutos. A lentidão, ao que tudo indica, também não tem a simpatia de seres humanos ansiosos e impacientes, cada vez mais dependentes de seus pequenos dispositivos eletrônicos portáteis. "Numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso", ainda segundo o italiano, que formas assumirá o texto literário? Ele chega a dizer que imagina "imensas cosmologias, sagas e epopeias encerradas nas dimensões de um epigrama". Basta ler As cosmicômicas, Cidades invisíveis e, principalmente, Palomar para entender por que Calvino advoga em favor da rapidez  e da narrativa condensada, de breve duração: "[...] meu temperamento me leva a realizar-me melhor em textos curtos - minha obra se compõe em sua maior parte de short stories".

A propósito, outro mestre em narrar por meio dos escritos pouco extensos e altamente concentrados foi Jorge Luis Borges, que nunca publicou um romance. Entretanto, sua História universal da infâmia, Ficções, O livro dos seres imaginários - entre outros - atestam que o tamanho de um texto nada diz de sua qualidade. Menciono, por exemplo, o conto O espelho e a máscara (d'O livro de areia**), um primor de condensação narrativa, cujo mote é o trabalho de um poeta encarregado de enaltecer, através de sua pena, a batalha vencida por seu monarca. Após três anos de trabalho árduo do poeta (e modificações e supressões aconteceram a cada apresentação anual da peça), restou apenas uma linha: "Sem se animarem a pronunciá-la em voz alta, o poeta e o Rei a saborearam, como se fosse uma prece secreta ou uma blasfêmia", lemos no sensacional conto do escritor argentino, sem descobrir o que continha aquele único verso. "Nasce com Borges" - nos diz Calvino - "uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma".

A rapidez não é impedimento para a existência de uma produção literária maiúscula. Contudo, entre tanta gente apressada e inquieta no mundo, não se encontram muitos leitores de Borges - e de Calvino - andando por aí.

Dentro do ônibus ou no metrô, na espera da consulta médica e, talvez, antes de pegar no sono, deitados na cama, é possível flagrar alguns indivíduos com livros nas mãos (cercados, contudo - é claro! -, por zilhões de outros movendo freneticamente os polegares sobre a tela de seus inseparáveis aparelhinhos). Na maioria das vezes, o que se lê nessas ocasiões, noto geralmente, é autoajuda e psicologia de araque, (muita) religião e esoterismo, além de títulos vinculados à indústria do cinema/entretenimento (e já vi passageiros no transporte coletivo, em pé, segurando um daqueles taludos exemplares da saga assinada por George R. R. Martin, a despeito do desconforto do veículo lotado). Obviamente, as pessoas leem o que quiserem, independentemente do que sujeitos metidos a besta (como este blogueiro) achem de seus gostos e interesses individuais. Meu ponto aqui, porém, vai em outra direção agora.

Fala-se muito em falta de tempo. Fala-se bastante também em correria: todo conhecido com quem topamos alega sempre estar numa correria dos infernos (ironicamente, nossas atuais sociedades, urbanizadas, apresentam altos índices de obesidade entre a sua população, cada vez menos disposta a correr, no sentido literal). Tanta pressa, tanta falta de tempo, tanta correria... Surge, então, o questionamento:  a opção - mais do que isso, o exercício - da escrita e da leitura literárias combinam com essa velocidade quase tirânica, inescapável, de nossa era? Antes de responder, gostaria de falar sobre três livros que li no último fim de semana.

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1) Um exemplo de que rumo a Literatura poderá tomar de agora em diante (e não quero dizer com isso que é um exemplo excelente, nem que é o rumo certo) pode ser encontrado no despretensioso livro A vida na porta da geladeira, de Alice Kuipers (Editora Martins Fontes, 2009, tradução de Rodrigo Neves). A narrativa focaliza o convívio das duas personagens centrais - mãe e filha - através dos bilhetes que cada uma deixa na porta do refrigerador durante quatro meses. Nesse intervalo de tempo, a mãe, médica, enfrenta grave complicação, enquanto a filha, uma estudante de 15-16 anos, atravessa os altos e baixos de sua pouca idade.

É possível ler A vida na porta da geladeira em menos de uma hora e meia. Como é composto por recados breves (muitos destes formados por apenas seis ou sete frases), a leitura segue ligeira e (para minha surpresa) bem agradável. No momento em que digito este texto, aposto, milhares de escritoras e escritores sem ter quem os leia devem estar ansiosos por um insight como esse de Alice Kuipers.

2) Leva-se também pouquíssimo tempo para terminar Adeus conto de fadas (Editora 7 Letras, 2006), reunião de minicontos escritos por Leonardo Brasiliense. Na orelha do livro, Marcelo Spalding observa que "o miniconto é um gênero que cresce no mundo todo, e cada vez mais a partir da internet" (onde o autor foi "descoberto" graças a seu site: www.leonardobrasiliense.com.br). O que me leva a pensar: manter um endereço na web (seja site, blog ou página/perfil em mídia social) parece ter se tornado quase indispensável para os artistas (inclusive escritores).

Voltando a Adeus conto de fadas, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro Juvenil em 2007, reproduzo abaixo um miniconto que representa bem esse livro e seu leitor-destinatário:

MULTIMIMDIA

Tô jogando Battlefield com o Marcelo na internet, teclando com a Angélica no messenger, falando com o Didi no skype, pegando o maior tédio num chat, olhando um filme de terceira na TV a cabo, ouvindo meu mp3 player... tudo ao mesmo tempo. Ah, e além disso, lendo um livro de minicontos, o que me inspirou a dar uma de escritor e escrever este aqui. O quê? Não ficou bom? Mas por quê?

3) Por fim, os Contos mínimos, de Heloísa Seixas (Editora Best Seller/Record, 2006) dizem a que vieram logo no título da antologia. A escritora reconhece que alguns de seus textos (publicados inicialmente numa revista suplementar do extinto Jornal do Brasil) nem sempre são reconhecidadmente contos, mas que "atravessam uma fronteira imprecisa e têm sabor de crônica". Todas as 50 narrativas cabem em apenas duas páginas (exceção para Confete e Os ratos, acho eu). Na última delas, intitulada justamente Um conto mínimo (e uma das melhores), Heloísa Seixas fala de um acidente ocorrido com um avião japonês e escreve:

"Somos todos - não só artistas, mas todos nós - como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E tudo passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.

A vida é um conto mínimo."

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A opção - mais do que isso, o exercício - da escrita e da leitura literárias combinam com essa velocidade quase tirânica, inescapável, de nossa era? Esse é o questionamento mantido em suspensão pelo blogueiro até agora. Necessário respondê-lo.

Diria que o tipo de Literatura pelo qual me interesso não combina com a velocidade. Não me entenda mal, eventual leitor(a): gosto também de textos curtos e rápidos. Minha opinião, porém, tem menos a ver com o tamanho das obras e mais com aquilo que estas requerem, exigem, do sujeito leitor.

Percebo, atualmente, no polo da recepção do texto literário, muita dispersão, muita superficialidade, pouca vontade de parar para pensar. A esse respeito, recomendo a leitura do pequeno e excelente artigo do professor da Fundação Getúlio Vargas, Thomaz Wood Jr., publicado na sua coluna da revista Carta Capital, em março do ano passado. Em A era da impaciência, Wood Jr. observa que estar o tempo todo envolvido com os smartphones, tablets e laptops da vida pode não ser tão bom negócio. As pessoas estão mais desatentas e apresentando menor capacidade analítica. Ele escreve:

"Não faltam exemplos: alunos lacrimejam e bocejam depois de 20 minutos de aula; leitores parecem querer textos cada vez mais curtos, fúteis e ilustrados; executivos saltam furiosamente sobre diagnósticos e análises e tomam decisões na velocidade do som; projetos são iniciados e rapidamente esquecidos; reuniões iniciam sem pauta e terminam sem rumo. Hipnotizados por tablets e smartphones, vivemos em uma sociedade assolada pelo transtorno do déficit de atenção e pela impaciência crônica".

Percebo também uma certa... preguiça mental: basta ver a quantidade de pessoas que reclamam de "textões" no Facebook ou a expressão norte-americana típica de alguns usuários de mídias sociais - tl;dr ("too long; didn't read").

Existe uma obsessão por interagir com outras pessoas o tempo todo e pouca disposição para ficar sozinho, pelo menos de vez em quando - condição que julgo essencial para alguém se tornar um leitor de verdade.

Junto a tudo isso, há o modo como cada indivíduo experimenta e vivencia a passagem do tempo. As pessoas lentas, como este blogueiro, têm grande dificuldade de entender (e se fazer entender pelas) pessoas velozes, aquelas que controlam o ritmo do mundo. Foi, aliás, um livro da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl (sobre o qual já escrevi aqui e aqui) que me fez pensar nesse último ponto.

Quando tiver oportunidade, retomo essa discussão.

* CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]

** BORGES, Jose Luis. O livro de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [Tradução de Davi Arrigucci Jr.]

BG de Hoje

Não sou sempre a brutalidade em pessoa. Emociono-me, choro, sinto saudade e carência afetiva como qualquer outra pessoa. E ontem à noite fiquei pensando muito nessa canção. É a balada mais bonita que conheço - Is it okay if I call you mine?, composta e interpretada pelo ator PAUL McCRANE para o inesquecível filme Fama, de 1980. "And what I'm trying to say isn't really new/It's just the things that happen to me when I'm reminded of you". Chega a apertar o coração.