Segundo o crítico literário Antonio Carlos Secchin*, o poeta João Cabral de Melo Neto, ao longo de sua produção, sustentou que,
"quando se diz a palavra 'mesa' ou a palavra 'microfone', todos sabem do que se trata. Mas se alguém pronuncia 'beleza', 'amor' ou 'saudade', cada indivíduo vai entendê-las de um modo particular, obstruindo, pela polissemia, a dimensão univocamente compartilhável a que o poeta aspira. Encontramos na obra de João Cabral um predomínio inconteste de substantivos concretos sobre os abstratos. Outro dado interessante é que ele nega a existência de palavras que sejam a priori 'poéticas', pois isso implicaria a demissão do próprio poeta, reduzido a coletar ingredientes previamente preparados para adicionar à receita do texto. João Cabral sustenta que o poético é um efeito sintático, obtido no corpo a corpo com as palavras, e introduz na poesia brasileira vocábulos que ninguém ousava utilizar: cabra, ovo de galinha, aranha, gasolina, todos eles signos prosaicos, 'vulgares'. E abre uma confessa exceção: nunca conseguiu incluir 'charuto' em sua obra, considerando-o o termo menos aproveitável da língua portuguesa".
O poeta pernambucano, sabemos, nunca teve em alta conta a inspiração como força motriz da poesia. Sua poética - radicalmente antilírica, antirromântica - propugnou pelo esforço daquele que escreve em conter seu subjetivismo individualista, de modo a sofrear também a vaguidão de sentido do poema. Por isso o aspecto mais importante na obra de João Cabral é - para usar uma palavra cara ao artista - sua arquitetura, resultante do trabalho rigoroso de (re)elaboração do texto, uma vez que o poético, para ele, é um efeito antes sintático do que léxico, como bem observa Secchin no excerto acima.
Antes de prosseguir, gostaria de fazer uma breve revelação particular. Foi a leitura atenta dos poemas cabralinos que me curaram da poetice. Poetice é como chamo aquela pueril vontade de escrever poesia - afinal, qualquer um consegue sapecar uns versinhos por aí, não é mesmo? - vontade que acomete muitos indivíduos por volta do final da adolescência, mas estertora, felizmente, nos primeiros anos de vida adulta, quando o mero poeteiro percebe que o buraco é mais embaixo, graças ao contato sistemático ou, pelo menos, regular com os textos produzidos por poetas de verdade. Ler com atenção João Cabral de Melo Neto conduziu minha apreciação crítica de poesia para um horizonte no qual as composições furrecas que joguei no papel um dia não passavam de fumaça tóxica.
Observemos agora um dos quatro poemas selecionados para a postagem de hoje, todos publicados originalmente em 1975, no livro Museu de tudo**, um momento mais "flexível" - mas nem por isso menos valioso - dentro da granítica e vertebrada obra de João Cabral.
MEIOS DE TRANSPORTE§ O câncer é aquele ônibusque ninguém quer mas com que se conta;não se corre atrás dele,mas quando ele passa se toma;que ninguém quer mas sabe;e que um dia ao sair-se do sono,lá está, semi-surpresa,quase pontual, no seu ponto.§ Sem pontos de parada,solto nas ruas como um táxi,sem o esperar, querer,sem ter por que, se toma o enfarte:táxi que, de repente,ao lado de quem não se pensava,para, no meio-fio,toma, quem não o vira ou chamara.
Dividido em duas partes, o poema não faz mistério nas imagens/metáforas que estabelece: câncer=ônibus - enfarte=táxi, formas corriqueiras de ser transportado para a morte. Note-se desde já quão pouco "poéticas" são as palavras-chaves escolhidas pelo autor (quantos incluiriam num escrito que se quer poético a palavra câncer, evitada até mesmo nas conversas cotidianas, por temor supersticioso?). Note-se também a ausência de adjetivos (exceto pontual, qualificativo, convenhamos, nada abstrato) entre as mais de 80 palavras usadas no poema. Passemos a outro texto, mas tendo em mente tudo o que estamos discutindo até agora.
Uma vez mais, ocorrem pouquíssimos adjetivos, apenas no último verso - limpo, cardíaco (sendo que o segundo seria quase inevitável, dada a expressão da qual faz parte). Trata-se de um poema de circunstância, como vários que se encontram em Museu de tudo, homenageando (ou servindo de epitáfio a) Wystan Hugh Auden, poeta britânico radicado nos EUA, falecido dois anos antes da publicação desse livro de Cabral. O(a) eventual leitor(a) terá constatado a essa altura, observando os números de versos e tamanho das estrofes, a obsessão do autor pelo 4 e seus múltiplos: Meios de transporte compõe-se de 4 quadras, totalizando 16 versos; W. H. Auden, estrofe única de 8 versos.
"Às vezes" - diz Antonio Carlos Secchin - "um poema de Cabral ocupa uma única longa estrofe, aparentemente desobrigada do 4. Mas, se computarmos o total de versos chegaremos a 16, 32, 64... De 4 em 4 sempre ocorre uma espécie de insulamento de sentido, como se o poeta precisasse exatamente dessa medida para elaborar um pensamento". É mais um expediente previamente pensado, de cálculo, para conter a subjetividade individualista de modo que o esforço de construção, o artesanato do poema, ocupe o primeiro plano. Não escapou, claro, ao(à) eventual leitor(a) que os textos vistos até agora tematizam a morte e os males do corpo. Acrescentemos mais outro:
O Espelho Partido é um outro poema de circunstância, cujo título alude à trilogia escrita pelo romancista carioca Marques Rebelo e publicada entre 1959 e 1968. Tem também feição de necrológio; assim como W. H. Auden, Rebelo faleceu em 1973. Interessa-nos aqui, especificamente, a incisiva metáfora do poder corrosivo do tempo: "câncer que leva outro mais dentro/o câncer do câncer, o tempo". NOTA: Não custa lembrar rapidamente de outro texto no Museu de tudo (Duplicidade do tempo) em que esse poder é também metaforizado: "O níquel, o alumínio, o estanho/ e outros assépticos elementos,/ ao fim se corrompem: o tempo/injeta em cada um seu veneno".".
Tal como no primeiro poema lido nesta postagem o mesmo vocábulo "não-poético" ajuda a compor poesia de alta qualidade, entendida, já sabemos, sempre como um efeito sintático, ou seja, proveniente do plano das relações estabelecidas entre as palavras na estrutura conferida ao texto; não que o significado evocado por elas seja irrelevante, apenas que o valor artístico/estético do poema não depende disso.
Mais um (o último):
Essa sagaz reflexão sobre a impossibilidade de vencer/fugir do tempo (e, portanto, de sua corrosão, ou seja, o envelhecimento e, por conseguinte, a morte) diz logo o que se propõe a dizer, sem qualquer linguagem cifrada. Mais uma vez recorro a Antonio Carlos Secchin:
O leitor pode, talvez, não ter claro em mente, por exemplo, a que o termo Cartuxa se refere (nesse caso, metonímia para monastério fechado; trata-se da ordem religiosa medieval, extremamente austera, fundada por São Bruno), mas todo o restante do poema não carrega qualquer intenção enigmática. Ah, e revela também um lado pouco ressaltado na obra de João Cabral: seu peculiaríssimo senso de humor.
João Cabral de Melo Neto - é inevitável - sempre será lembrado por Morte e vida severina. E não é mal que isso aconteça. O poeta, entretanto, tem muito, muito mais a oferecer. Essa postagem foi um modo de convidar o(a) eventual leitor(a) a frequentar essa poesia precisa, tantas vezes seca, quase sempre lúcida e bela a seu modo.
W. H. AUDEN
(1905 - 1973)
Se morre da morte que ela quer.
É ela que escolhe seu estilo,
sem cogitar se a coisa que mata
rima com sua morte ou faz sentido.
Mas ela certo te respeitava,
de muito ler reler teus livros,
pois matou-te com a guilhotina,
fuzil limpo, do ataque cardíaco.
Uma vez mais, ocorrem pouquíssimos adjetivos, apenas no último verso - limpo, cardíaco (sendo que o segundo seria quase inevitável, dada a expressão da qual faz parte). Trata-se de um poema de circunstância, como vários que se encontram em Museu de tudo, homenageando (ou servindo de epitáfio a) Wystan Hugh Auden, poeta britânico radicado nos EUA, falecido dois anos antes da publicação desse livro de Cabral. O(a) eventual leitor(a) terá constatado a essa altura, observando os números de versos e tamanho das estrofes, a obsessão do autor pelo 4 e seus múltiplos: Meios de transporte compõe-se de 4 quadras, totalizando 16 versos; W. H. Auden, estrofe única de 8 versos.
"Às vezes" - diz Antonio Carlos Secchin - "um poema de Cabral ocupa uma única longa estrofe, aparentemente desobrigada do 4. Mas, se computarmos o total de versos chegaremos a 16, 32, 64... De 4 em 4 sempre ocorre uma espécie de insulamento de sentido, como se o poeta precisasse exatamente dessa medida para elaborar um pensamento". É mais um expediente previamente pensado, de cálculo, para conter a subjetividade individualista de modo que o esforço de construção, o artesanato do poema, ocupe o primeiro plano. Não escapou, claro, ao(à) eventual leitor(a) que os textos vistos até agora tematizam a morte e os males do corpo. Acrescentemos mais outro:
O ESPELHO PARTIDO
1.
A morte pôs ponto final
à árvore solta do jornal-
romance pelo autor previsto
como câncer não como quisto.
Como câncer: signo da vida
que multiplica e é destrutiva,
câncer que leva outro mais dentro,
o câncer do câncer, o tempo.
2.
Marques Rebelo compreendeu
na criação as leis do câncer:
a tensão do que se faz, entre
fazer e desfazer, pró e anti.
E não só nesse esgalhamento
com que ele se faz destruindo,
mas ao redestilar, do câncer,
o ácido de um sim negativo.
O Espelho Partido é um outro poema de circunstância, cujo título alude à trilogia escrita pelo romancista carioca Marques Rebelo e publicada entre 1959 e 1968. Tem também feição de necrológio; assim como W. H. Auden, Rebelo faleceu em 1973. Interessa-nos aqui, especificamente, a incisiva metáfora do poder corrosivo do tempo: "câncer que leva outro mais dentro/o câncer do câncer, o tempo". NOTA: Não custa lembrar rapidamente de outro texto no Museu de tudo (Duplicidade do tempo) em que esse poder é também metaforizado: "O níquel, o alumínio, o estanho/ e outros assépticos elementos,/ ao fim se corrompem: o tempo/injeta em cada um seu veneno".".
Tal como no primeiro poema lido nesta postagem o mesmo vocábulo "não-poético" ajuda a compor poesia de alta qualidade, entendida, já sabemos, sempre como um efeito sintático, ou seja, proveniente do plano das relações estabelecidas entre as palavras na estrutura conferida ao texto; não que o significado evocado por elas seja irrelevante, apenas que o valor artístico/estético do poema não depende disso.
Mais um (o último):
ANÚNCIO PARA COMÉSTICO
Nada há contra o tempo.
O homem tudo o que pode
é fechar-se ao espaço
redondo que o envolve;
jogar fora o espaço,
o fora, ele sim pode,
assim numa Cartuxa
que do ao redor o isole.
Mas o tempo é de dentro;
dentro dele faz-se, escorre,
e esse escorrer interno
não há nada que o corte.
Às vezes o ".........."
por certo tempo o encobre:
não o tempo ele próprio,
mas sim o corpo que ele morde,
já que o expressar do tempo
é roer o que percorre.
Essa sagaz reflexão sobre a impossibilidade de vencer/fugir do tempo (e, portanto, de sua corrosão, ou seja, o envelhecimento e, por conseguinte, a morte) diz logo o que se propõe a dizer, sem qualquer linguagem cifrada. Mais uma vez recorro a Antonio Carlos Secchin:
"A obra do poeta é clara, de claridade, porque é solar, meridiana, invadida de luz por todos os lados, e é também clara, de clareza, porque não propõe charadas. Não se cogita de 'isso quer dizer o quê? qual a mensagem escondida?'. Tudo está ali, à flor da página, à flor do texto. Mas o claro, quando excessivo, ofusca. Então, nos desnorteamos frente ao poema, não por ele ser hermético, mas por refugarmos diante de sua clareza. É ostensivamente visível o jogo proposto, e nós, caçadores de profundezas mirabolantes, perdemos a chance de topar com um tesouro que está na superfície da folha, sem aspirar a mistério algum".
O leitor pode, talvez, não ter claro em mente, por exemplo, a que o termo Cartuxa se refere (nesse caso, metonímia para monastério fechado; trata-se da ordem religiosa medieval, extremamente austera, fundada por São Bruno), mas todo o restante do poema não carrega qualquer intenção enigmática. Ah, e revela também um lado pouco ressaltado na obra de João Cabral: seu peculiaríssimo senso de humor.
João Cabral de Melo Neto - é inevitável - sempre será lembrado por Morte e vida severina. E não é mal que isso aconteça. O poeta, entretanto, tem muito, muito mais a oferecer. Essa postagem foi um modo de convidar o(a) eventual leitor(a) a frequentar essa poesia precisa, tantas vezes seca, quase sempre lúcida e bela a seu modo.
___________
* SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: do fonema ao livro. In: _______. Escritos sobre poesia e alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 73-86
** MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo. In: ______. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 41-91
BG de Hoje
Soube que os PIXIES voltaram a se apresentar e tocar juntos. Boa notícia, mas nem tanto: soube também que não se trata da formação original. A baixista Kim Deal não está a bordo (seriam as famosas "diferenças criativas"?). De todo modo, mesmo não sendo um som sempre palatável, gosto de Pixies e escolho como BG uma das melhores canções da banda, uma das poucas cantadas por Deal (que também a compôs, junto com o controlador Black Francis): Gigantic.