Bem, encerremos esta série de postagens. E, devo dizer, tive muita satisfação em escrevê-la.
Um dos questionamentos mais comuns feitos a Quarto de despejo diz respeito à autenticidade do diário. Por exemplo: Fábio Lucas (geralmente mais arguto em outros escritos) foi um daqueles críticos literários cuja avaliação, na década seguinte ao lançamento da obra, recaiu apenas no aspecto documentário do relato*. Considerou-o "impressionante", embora repleto de "cacoetes estilísticos". Interessou, ao crítico, o fenômeno imprevisto, "que o próprio aproveitamento publicitário tornou mais relevante". E colocou a autenticidade do diário em xeque ao suspeitar do teor da "contribuição de um jornalista" (no caso, Audálio Dantas).
Por sua vez, o que diz Dantas?
Em
A atualidade do mundo de Carolina**, o jornalista, responsável pela edição do texto publicado em 1960, escreve:
"A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos". E acrescenta:
"Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha". Ou seja, Audálio Dantas (na imagem à esquerda) afirma não ter realizado nenhuma alteração de monta no manuscrito recebido de Carolina Maria de Jesus. Entretanto, José Carlos Sebe Bom Meihy - pesquisador citado na postagem anterior - publicou uma outra versão da obra (em 1996), juntamente com Robert Levine, intitulada
Meu estranho diário, por julgar que o trabalho editado por Dantas comprometeu o texto original.
NOTA: Ainda não tive oportunidade de ler Meu estranho diário
e cotejá-lo com a versão mais difundida, organizada pelo jornalista. De todo modo, o livro de Carolina estabeleceu-se no cenário cultural brasileiro, gerando recepções diferentes ao longo do tempo. Inclusive fora do país
***.
Mas por que, afinal, mais do que um documento, Quarto de despejo é uma particularíssima obra de Literatura?
Não será, certamente, por trechos como este**** :
"... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe".
É preciso reconhecer o acúmulo de imagens gastas e lugares-comuns surrados no excerto reproduzido acima (ainda que a narradora tenha o mérito de deixar clara sua insatisfação com a conjuntura econômica). Mas, menos do que um "cacoete estilístico", essa forma ("enfeitada", digamos) de escrever nos indica outra coisa, mais significativa. José Carlos S. B. Meihy*****, em relação a expressividade da escritora, notou corretamente, a meu ver, que
"Seus erros gramaticais, em contraste com a difícil explicação de seu vocabulário, representam facetas que fundem na necessidade expressiva a afetação de quem vê a literatura como poder. Isso, aliás, nunca esteve ausente da percepção de Carolina, que, mesmo sendo mulher fisicamente indefesa na favela, sabia que, por saber ler e escrever, tinha domínio dos códigos dos poderosos".
A escritora, portanto, não desconhecia que a Literatura é também um
sistema (tenho em mente aqui o conceito brilhantemente formulado por Bernard Mouralis em
As contraliteraturas). Sendo assim, para fazer parte desse sistema, a autora tentou simular (equivocadamente, nesse caso) o
código de escrita que julgava ser o dos segmentos mais cultos da população. Porém, isso é compreensível para alguém que, como ela mesma nos relata no livro, tinha
"apenas dois anos de grupo escolar".
Mas observemos agora, apenas para exemplificar a qualidade da escrita de Carolina Maria de Jesus, estes dois outros excertos, extraídos também de
Quarto de despejo:
1) "Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá".
2) "O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem opinião.
Se faço esta narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus livros".
Essas passagens demonstram que Carolina Maria de Jesus, quando não se preocupava em escrever de modo "enfeitado", era inventiva, engenhosa ao narrar, mesmo que fosse mais
"preocupada com a mensagem temática e não com o apuro formal", como assinala Meihy. Por isso, penso que talvez não seja o melhor expediente, numa análise mais aprofundada da obra dessa escritora (obviamente nem sequer esboçada neste blog), insistir em enquadrá-la nos pressupostos estéticos cristalizados da crítica literária mais formalista. Mas isso é assunto para outra oportunidade.
Na próxima semana, escreverei brevemente sobre algumas ideias expostas em
A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset.
__________
* LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. 2 ed. São Paulo: Quíron, 1976
** Texto que serve de prefácio à edição de Quarto de despejo utilizada para escrever esta série de postagens e referenciada mais abaixo.
*** Quarto de despejo foi publicado no exterior e particularmente nos EUA foi bem acolhido, recebendo o nome de Child of the dark, com sucessivas reedições.
**** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001
***** MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014
BG de Hoje
Que a composição literária, na cultura brasileira, tem proximidade tremenda com a música popular, não é segredo para ninguém. E ao ficar esses dias pensando na representação da pobreza nas cidades, dentro da nossa Literatura, através da obra de Carolina Maria de Jesus, acabei por me lembrar dos RACIONAIS MC's: não só rappers, mas cronistas essenciais da vida urbana no Brasil. E uma de suas canções mais emblemáticas e emocionantes é a célebre O homem na estrada.