sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Falou e disse...


"Talvez os grandes personagens literários sejam aqueles que sempre escapam à nossa compreensão plena. O intolerável Lear trazendo seus cem camaradas à casa da filha, o apaixonado Dante, obcecado por uma mocinha que encontrou brevemente, o desgraçado Dom Quixote, surrado e apedrejado por persistir em suas ilusões - por que eles nos comovem até as lágrimas, por que eles nos acompanham, por que nos sugerem que esta vida faz sentido no final das contas, a despeito de tudo? Eles não oferecem razão alguma; apenas pedem que acreditemos, reconheçamos, afirmemos sua existência 'sob juramento' ".*

*  MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 155

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (I)



[Postagem atualizada em 13/09/2022]

Figura controversa (não obstante, pouco proeminente) na história da Filosofia, o madrilenho José Ortega y Gasset ganhou opositores aguerridos. Por exemplo: o teórico marxista György Lukács dizia (de forma exagerada, a meu ver) que as palavras de Hitler foram antes enunciadas, "num plano mais elevado", por pensadores como Nietzsche, Bergson e o filósofo espanhol (para ser justo, ele cita também Spengler; e no caso do autor de O declínio do Ocidente, concordo com a acusação de Lukács). Noutra frente, os defensores do multiculturalismo manifestam horror ao pensamento de Ortega Y Gasset. O elitismo que professa e sua obstinada defesa do individualismo deixam desconfortável até quem se dispõe (como este blogueiro) a compreender melhor seus pontos de vista. A esse respeito, aliás, vale dizer que Gasset não usa meias palavras ao admitir que*

"[...] notoriamente sustento uma interpretação radicalmente aristocrática da história. É radical, porque nunca disse que a sociedade humana deve ser aristocrática, mas muito mais do que isso. Disse e continuo acreditando, cada dia com mais convicção, que a sociedade humana é sempre aristocrática, queira ou não, por sua própria essência, a ponto de ser sociedade na medida em que é aristocrática, e deixa de sê-lo na medida em que se desaristocratiza".

Num mundo em que pelo menos algumas nações buscam ser mais democráticas, com ações governamentais e até na área empresarial (por mais raro que seja) visando mitigar a exclusão, esse posicionamento soa como afronta, mesmo com a ressalva do espanhol: "Que fique bem entendido que falo da sociedade e não do Estado".

Então por que perder tempo com um sujeito tão conservador?

Em alguns casos, talvez não se deva descartar tudo o que determinado filósofo tem a dizer. Pensando em José Ortega y Gasset, posso afirmar que suas reflexões no campo da política, além de reacionárias, não têm relevância alguma. Ao contrário, porém, de suas considerações voltadas para a ética (sem mencionar sua filosofia da educação); sobre isso vale a pena falar.

Comecemos por tentar estabelecer, ainda que provisoriamente, dois conceitos centrais - massa e homem-massa - dentro do livro a ser discutido aqui: A rebelião das massas, provavelmente o mais conhecido trabalho do autor.

Como se pode depreender, a massa possui um componente muito evidente em nossa era - a quantidade - mas Ortega y Gasset acrescenta um decisivo elemento de natureza qualitativa:

"O conceito de multidão é quantitativo e visual. Se o traduzirmos para a terminologia sociológica, sem alterá-lo, encontraremos a ideia de massa social. A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. Portanto, não se deve entender por massas, nem apenas, nem principalmente, 'as massas operárias'. Massa é 'o homem médio'. Desse modo converte-se o que era apenas quantidade - a multidão - em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico [...] A rigor, a massa pode definir-se como fato psicológico, sem necessidade de esperar o aparecimento dos indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa, podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões especiais, mas que se sente 'como todo mundo' e, certamente não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais".

A massa, portanto, não é definida em termos de classe social: estabelece uma tipologia de seres humanos e descreve, de acordo com Gasset, o comportamento próprio desses sujeitos, hoje majoritários em nossas sociedades. São os homens-massa.


"O homem-massa é um homem cuja vida carece de projeto, segue à deriva. Por isso nada constrói, embora suas possibilidades, seus poderes sejam enormes". Esse indivíduo (sendo pobre ou rico, não importa aqui) está "satisfeito do jeito que é. Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e a qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos. Por que não, se [...] nada nem ninguém o força a tomar consciência de que é um homem de segunda classe, limitadíssimo, incapaz de criar ou conservar a própria organização que dá à sua vida essa amplitude e esse contentamento, nos quais se apoia tal afirmação de si próprio?".

Entre outras características, o homem-massa não é capaz de autocrítica. Por isso vive contente. Ou, pelo menos, aparenta estar muito satisfeito consigo mesmo, ainda que o mundo à sua volta esteja indo para a latrina. Na opinião do pensador espanhol (da qual, nesse ponto específico, partilho), essa satisfação é estranha e perniciosa. De onde vem ela?

Continuo na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]


BG de Hoje

Ao pensar no BG, fui atrás de algo que fosse politicamente bem distinto do conservadorismo de José Ortega Y Gasset: RAGE AGAINST THE MACHINE e a canção Take The Power Back, cuja letra parece sob medida para se contrapor à visão eurocêntrica do filósofo espanhol. P. S. Como esses caras do RATM sabem juntar funk com pauleira...


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (III)



Bem, encerremos esta série de postagens. E, devo dizer, tive muita satisfação em escrevê-la.

Um dos questionamentos mais comuns feitos a Quarto de despejo diz respeito à autenticidade do diário. Por exemplo: Fábio Lucas (geralmente mais arguto em outros escritos) foi um daqueles críticos literários cuja avaliação, na década seguinte ao lançamento da obra, recaiu apenas no aspecto documentário do relato*. Considerou-o "impressionante", embora repleto de "cacoetes estilísticos". Interessou, ao crítico, o fenômeno imprevisto, "que o próprio aproveitamento publicitário tornou mais relevante". E colocou a autenticidade do diário em xeque ao suspeitar do teor da "contribuição de um jornalista" (no caso, Audálio Dantas).

Por sua vez, o que diz Dantas?

Em A atualidade do mundo de Carolina**, o jornalista, responsável pela edição do texto publicado em 1960, escreve: "A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos". E acrescenta: "Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha". Ou seja, Audálio Dantas (na imagem à esquerda) afirma não ter realizado nenhuma alteração de monta no manuscrito recebido de Carolina Maria de Jesus. Entretanto, José Carlos Sebe Bom Meihy - pesquisador citado na postagem anterior - publicou uma outra versão da obra (em 1996), juntamente com Robert Levine, intitulada Meu estranho diário, por julgar que o trabalho editado por Dantas comprometeu o texto original. NOTA: Ainda não tive oportunidade de ler Meu estranho diário e cotejá-lo com a versão mais difundida, organizada pelo jornalista. De todo modo, o livro de Carolina estabeleceu-se no cenário cultural brasileiro, gerando recepções diferentes ao longo do tempo. Inclusive fora do país***.

Mas por que, afinal, mais do que um documento, Quarto de despejo é uma particularíssima obra de Literatura?

Não será, certamente, por trechos como este**** :

"... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe".

É preciso reconhecer o acúmulo de imagens gastas e lugares-comuns surrados no excerto reproduzido acima (ainda que a narradora tenha o mérito de deixar clara sua insatisfação com a conjuntura econômica). Mas, menos do que um "cacoete estilístico", essa forma ("enfeitada", digamos) de escrever nos indica outra coisa, mais significativa. José Carlos S. B. Meihy*****, em relação a expressividade da escritora, notou corretamente, a meu ver, que

"Seus erros gramaticais, em contraste com a difícil explicação de seu vocabulário, representam facetas que fundem na necessidade expressiva a afetação de quem vê a literatura como poder. Isso, aliás, nunca esteve ausente da percepção de Carolina, que, mesmo sendo mulher fisicamente indefesa na favela, sabia que, por saber ler e escrever, tinha domínio dos códigos dos poderosos".

A escritora, portanto, não desconhecia que a Literatura é também um sistema (tenho em mente aqui o conceito brilhantemente formulado por Bernard Mouralis em As contraliteraturas). Sendo assim, para fazer parte desse sistema, a autora tentou simular (equivocadamente, nesse caso) o código de escrita que julgava ser o dos segmentos mais cultos da população. Porém, isso é compreensível para alguém que, como ela mesma nos relata no livro, tinha "apenas dois anos de grupo escolar".

Mas observemos agora, apenas para exemplificar a qualidade da escrita de Carolina Maria de Jesus,  estes dois outros excertos, extraídos também de Quarto de despejo:

1) "Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá". 
2) "O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem opinião. 
Se faço esta narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus livros".

Essas passagens demonstram que Carolina Maria de Jesus, quando não se preocupava em escrever de modo "enfeitado", era inventiva, engenhosa ao narrar, mesmo que fosse mais "preocupada com a mensagem temática e não com o apuro formal", como assinala Meihy. Por isso, penso que talvez não seja o melhor expediente, numa análise mais aprofundada da obra dessa escritora (obviamente nem sequer esboçada neste blog), insistir em enquadrá-la nos pressupostos estéticos cristalizados da crítica literária mais formalista. Mas isso é assunto para outra oportunidade.

Na próxima semana, escreverei brevemente sobre algumas ideias expostas em A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset.
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* LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. 2 ed. São Paulo: Quíron, 1976

** Texto que serve de prefácio à edição de Quarto de despejo utilizada para escrever esta série de postagens e referenciada mais abaixo.

*** Quarto de despejo foi publicado no exterior e particularmente nos EUA foi bem acolhido, recebendo o nome de Child of the dark, com sucessivas reedições.

**** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

***** MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014

BG de Hoje

Que a composição literária, na cultura brasileira, tem proximidade tremenda com a música popular, não é segredo para ninguém. E ao ficar esses dias pensando na representação da pobreza nas cidades, dentro da nossa Literatura, através da obra de Carolina Maria de Jesus, acabei por me lembrar dos RACIONAIS MC's: não só rappers, mas cronistas essenciais da vida urbana no Brasil. E uma de suas canções mais emblemáticas e emocionantes é a célebre O homem na estrada.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (II)


Escreverei sobre o valor propriamente literário, estético, do livro Quarto de despejo (como anunciei que faria hoje) na próxima semana. Julgo necessário discutir, antes, a questão a seguir.
. . . . . . .

Lendo o ensaio Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio*, do historiador José Carlos S. B. Meihy, surpreendi-me ao saber que foi localizada uma caixa**, muito tempo depois da morte da escritora, contendo 37 cadernos, cujas páginas escritas ultrapassavam cinco mil. De acordo com Meihy:

"O acervo encontrado trazia uma quantidade grande de poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro. Isso, entre lições escolares dos filhos, receitas de bolos, contabilidade doméstica. Escritos todos com a letra firme, clara e corrente de Carolina, tudo em papéis velhos encontrados no lixo, guardados sem o cuidado devido".

Em vida, além de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus publicou outros quatro trabalhos: Casa de Alvenaria, Provérbios, Pedaços da fome e Diário de Bitita. Mas, como bem observa José Carlos S. B. Meihy,

"A existência preciosa de quatro romances enormes [e não publicados], por outro lado, demonstra que estamos em face de um caso único da história da cultura popular nacional, onde, na favela, uma autora semi-alfabetizada produziu uma obra que, segundo o impulso inicialmente dado, seria uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural".

E por que tal renovação não se deu?

Adio a resposta para ressaltar, primeiramente, que, em diversas passagens de Quarto de despejo***, é perceptível um sentimento de autoconfiança (e expectativa positiva com relação a uma possível publicação), a despeito da vida infausta (a expressão é corriqueira no livro) sob a qual se encontrava a autora. Por exemplo:

"Vocês [as outras moradoras da favela] são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos".

Ou esta outra, mais direta:

"É que estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela".

E mais ainda:

"Tem hora que eu odeio o repórter Audálio Dantas. Se ele não prendesse o meu livro eu enviava os manuscritos para os Estados Unidos e já estava socegada". 
"- Pois é, Toninho, os editores do Brasil não imprime o que escrevo porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar. Por isso eu vou enviar o meu livro para os Estados Unidos. Ele deu-me varios endereços de editoras que eu devia procurar".

Carolina Maria de Jesus via a si mesma como poeta e, pelos excertos acima reproduzidos, percebe-se que também não duvidava da sua aptidão para a escrita narrativa e nem da validade de seu manuscrito no jogo editorial. Ainda assim, a obra dessa escritora não se tornou "uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural". Muito em função do silêncio da crítica literária. A imprensa da época interessou-se por aquele fenômeno apenas enquanto fato "exótico"; os cadernos de cultura, no geral, limitaram-se (e até hoje assim o fazem) a consagrar o já consagrado. A crítica literária acadêmica, especializada, tinha outra "agenda" no momento em que a escritora surgia, apesar do contexto favorável da época (a despeito de se estar no período que antecedeu a ditadura militar) - ampliação do feminismo, do movimento negro e do maior interesse pela cultura popular.

Termino na próxima postagem, cumprindo a intenção manifestada no primeiro texto da série.
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* MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em  <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014

** O historiador localizou a caixa junto com a família da escritora e com Robert Levine, durante a elaboração do trabalho Cinderela negra - a saga de Carolina Maria de Jesus  (escrito em parceria com Levine).

*** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

BG de Hoje

Repito no BG a dupla SÁ & GUARABYRA. Mas é porque fiz um exercício de autocrítica ao lembrar da canção Ziriguidum tchan. Explico: na minha modesta coleção de CDs há muito mais artistas ingleses e norte-americanos do que brasileiros. Estou longe de ser chauvinista; porém, às vezes, não me dou conta do quanto sou afetado por algo (a música pop) que me faz esquecer de olhar a meu redor e sentir-me saudavelmente brasileiro.


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (I)


"... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo".

Carolina Maria de Jesus



No ano de 1960, quando foi lançado, assim como no decorrer daquela década, Quarto de despejo causou furor. E vendeu. Foram quase 100 mil exemplares, número significativo mesmo para os padrões atuais do restritivo mercado editorial brasileiro. Como explicar a acolhida impressionante de um livro particularíssimo, elaborado por escritora tão improvável? Digo improvável, pensando na origem e pertencimento de classe típicos dos intelectuais no país (a esse respeito, recomendo enfaticamente a leitura de Intelectuais à brasileira, do sociólogo Sérgio Miceli). Terá sido apenas um modismo daquele período e por isso sua obra é menos lida nos dias de hoje?

Audálio Dantas, o jornalista que encontrou Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé (São Paulo) e editou Quarto de despejo, em entrevista recente (e curta) à Cynara Menezes (blog Socialista Morena/Revista Carta Capital), acha "que, como sempre, a moda passou rapidinho. A maioria consumiu Carolina como uma novidade, uma fruta estranha. Carolina, como objeto de consumo, passou mas a importância de seu livro, um documento sobre os marginalizados, permanece" (a matéria de Cynara Menezes pode ser encontrada aqui). Pergunto-me, contudo: Quarto de despejo seria apenas um registro documentário?

No prefácio de uma edição bem ulterior do livro (a que disponho no momento*), intitulado A atualidade do mundo de Carolina, o mesmo Audálio Dantas faz a seguinte avaliação, desta vez mais ampla:

"Mas acima da excitação dos consumidores fascinados pela novidade, pelo inusitado feito daquela negra semi-analfabeta que alcançava o estrelato e, mais do que isto, ganhava dinheiro, pairava a força do livro, sua importância como depoimento, sua autenticidade e sua paradoxal beleza".

Sem dúvida, como já foi dito repetidas vezes, Quarto de despejo é a visão de dentro da favela, falando da pobreza e da miséria, por alguém que viveu verdadeiramente nessas condições. Mesmo assim, acredito ser reducionista interpretar o trabalho da escritora apenas como testemunho, depoimento ou material a ser aproveitado numa análise sociológica.

É sobre o valor propriamente literário, estético, do livro que quero escrever. Quero falar - como foi dito por Dantas - de sua paradoxal beleza. Tentarei fazer isso na próxima postagem.
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* JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

BG de Hoje

Nos últimos meses tenho tido muita vontade (mas muita vontade mesmo) de me deitar numa rede e ficar dias e dias só "panguando" (como se diz aqui em Minas). E ouvindo música, claro. Uma das mais tocadas seria Cinamomo, da dupla SÁ & GUARABYRA.