Percorri 14 páginas. Parei, desconfortável. Insisti mais tarde, antes de dormir. Outras vinte páginas adiante, a mesma desoladora sensação de derrota. "Não vou ler essa chateação", disse pra mim mesmo. Entretanto, duas semanas depois recomecei, teimosamente. A fluidez de leitura não seu deu, mas pelo menos o texto - dois terços agora avançados - já não me parecia tão desnorteante.
Foi essa a experiência inicial pela qual passei ao decidir ler O som e a fúria, de William Faulkner* (escritor não muito frequentado por este blog, mas cujo livro, Santuário, já foi discutido aqui).
Imergir no decadente e doentio mundo da família Compson foi uma empreitada carregada de obstáculos; trata-se de um romance que estabelece um pacto de leitura desafiador àquele que o lê, pois caso este intente chegar às diversas camadas de significação da obra, precisa dedicar atenção total a ela. Uma das dificuldades (a mais evidente, talvez, ao primeiro contato) está na polifonia narrativa e na técnica do stream of consciouness (ou fluxo de consciência) empregada pelo autor norte-americano. A propósito: trabalho de vanguarda, O som e a fúria, publicado em 1929, provavelmente não foi influenciado pelo Ulisses, de James Joyce (surgido antes na mesma década)**. Mas não é desarrazoado ver um parentesco entre ambos, como obras representativas do início do modernismo literário.
São quatro diferentes focos narrativos, correspondentes às quatro seções em que se divide o livro.
Na primeira dessas partes somos jogados dentro do confuso psiquismo de Benjamin, um deficiente mental incapaz de falar, descrito muitas páginas adiante como
A voz que se "ouve" na segunda seção pertence ao atormentado Quentin. Peço ao(à) eventual leitor(a) a consideração do excerto abaixo. Antes, porém, uma breve contextualização. Quentin entrara numa relojoaria, dando a entender que queria consertar um objeto quebrado por ele mesmo. Após conversar com o relojoeiro, ele pensa:
Um dos pilares da ficção abalados pela escrita de Faulkner é justamente a noção de tempo. As repetições e o aspecto de fragmentação geral acentuam a investida do escritor.
Jason Compson domina a terceira parte com sua perversidade, rancor e ganância obsedantes, enquanto Dilsey, a criada da família (e, talvez, a única personagem imune à morbidez dominante na narrativa), é a figura central da última parte do livro.
Vai aqui uma sugestão a quem se dispuser a ler O som e a fúria: comece pelas duas últimas partes e só depois vá para as duas primeiras (foi o que fiz na minha segunda leitura).
A análise de uma obra assim permite muitas abordagens: por exemplo, desvelar o posicionamento às vezes ambíguo, às vezes perceptivelmente racista de algumas vozes da narrativa em relação aos personagens negros ou visualizar o retrato histórico/sociológico dos sulistas nos Estados Unidos no início do século XX. Mas, como estão além da competência atual do blogueiro, deixo para outra oportunidade.
Na próxima postagem, escreverei um pouco sobre Macbeth, a peça de Shakespeare da qual proveio o título do livro de Faulkner.
Quero aproveitar para reiterar um posicionamento já manifestado noutros blogs mantidos anteriormente (e, quem sabe, algum(a) raro(a) - e valioso(a) - leitor(a) estará lembrado(a) dele?). Não se faz crítica literária aqui, apenas comunicam-se impressões de leitura. A crítica literária, atividade rigorosa e exigente, escapa às pretensões do Besta Quadrada. Não obstante, tenho como meta pessoal tornar-me, progressivamente e dentro de minhas capacidades, um leitor tão rigoroso e exigente quanto me for possível - e isso não é incompatível, penso, com os objetivos (bem mais modestos) deste blog. Por isso seria uma frivolidade deixar de ler determinada obra só porque ela me causou desprazer em algum momento ou foi (ainda que parcialmente) incompreendida (como é o caso de O som e a fúria). Nesse aspecto, lembro o que escreveu Umberto Eco*** a respeito da autêntica leitura crítica. Para o pensador italiano, esta não deve ser "um passeio no campo, no qual [colhem-se] quase ao acaso, aqui e ali, os ranúnculos ou pilriteiros da poesia aninhada entre o esterco dos rípios estruturais", mas sim um enfrentamento por inteiro do texto, munido de um "forte armamento teórico e uma frequentação em todos o níveis [com que se apresenta o texto]".
Imergir no decadente e doentio mundo da família Compson foi uma empreitada carregada de obstáculos; trata-se de um romance que estabelece um pacto de leitura desafiador àquele que o lê, pois caso este intente chegar às diversas camadas de significação da obra, precisa dedicar atenção total a ela. Uma das dificuldades (a mais evidente, talvez, ao primeiro contato) está na polifonia narrativa e na técnica do stream of consciouness (ou fluxo de consciência) empregada pelo autor norte-americano. A propósito: trabalho de vanguarda, O som e a fúria, publicado em 1929, provavelmente não foi influenciado pelo Ulisses, de James Joyce (surgido antes na mesma década)**. Mas não é desarrazoado ver um parentesco entre ambos, como obras representativas do início do modernismo literário.
São quatro diferentes focos narrativos, correspondentes às quatro seções em que se divide o livro.
Na primeira dessas partes somos jogados dentro do confuso psiquismo de Benjamin, um deficiente mental incapaz de falar, descrito muitas páginas adiante como
" [...] um homenzarrão que parecia feito de alguma substância cujas partículas não aderissem umas às outras nem à estrutura que a sustentava. Sua pele parecia morta e lisa; hidrópico, caminhava com um passo trôpego, como se fosse um urso treinado".
A voz que se "ouve" na segunda seção pertence ao atormentado Quentin. Peço ao(à) eventual leitor(a) a consideração do excerto abaixo. Antes, porém, uma breve contextualização. Quentin entrara numa relojoaria, dando a entender que queria consertar um objeto quebrado por ele mesmo. Após conversar com o relojoeiro, ele pensa:
"Saí, fechando a porta, ouvindo os tique-taques todos. Olhei para trás, para a vitrine. Ele [o dono da loja] me observava detrás da divisória. Havia uns doze relógios na vitrine, marcando doze horas diferentes, cada um deles com a mesma convicção determinada e contraditória que o meu manifestava, mesmo sem ponteiros. Um contradizendo o outro. Eu ouvia o meu, ainda a tiquetaquear no meu bolso, muito embora ninguém o visse, muito embora mesmo se o vissem ele não pudesse dizer nada a ninguém".
Um dos pilares da ficção abalados pela escrita de Faulkner é justamente a noção de tempo. As repetições e o aspecto de fragmentação geral acentuam a investida do escritor.
Jason Compson domina a terceira parte com sua perversidade, rancor e ganância obsedantes, enquanto Dilsey, a criada da família (e, talvez, a única personagem imune à morbidez dominante na narrativa), é a figura central da última parte do livro.
Vai aqui uma sugestão a quem se dispuser a ler O som e a fúria: comece pelas duas últimas partes e só depois vá para as duas primeiras (foi o que fiz na minha segunda leitura).
A análise de uma obra assim permite muitas abordagens: por exemplo, desvelar o posicionamento às vezes ambíguo, às vezes perceptivelmente racista de algumas vozes da narrativa em relação aos personagens negros ou visualizar o retrato histórico/sociológico dos sulistas nos Estados Unidos no início do século XX. Mas, como estão além da competência atual do blogueiro, deixo para outra oportunidade.
Na próxima postagem, escreverei um pouco sobre Macbeth, a peça de Shakespeare da qual proveio o título do livro de Faulkner.
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Quero aproveitar para reiterar um posicionamento já manifestado noutros blogs mantidos anteriormente (e, quem sabe, algum(a) raro(a) - e valioso(a) - leitor(a) estará lembrado(a) dele?). Não se faz crítica literária aqui, apenas comunicam-se impressões de leitura. A crítica literária, atividade rigorosa e exigente, escapa às pretensões do Besta Quadrada. Não obstante, tenho como meta pessoal tornar-me, progressivamente e dentro de minhas capacidades, um leitor tão rigoroso e exigente quanto me for possível - e isso não é incompatível, penso, com os objetivos (bem mais modestos) deste blog. Por isso seria uma frivolidade deixar de ler determinada obra só porque ela me causou desprazer em algum momento ou foi (ainda que parcialmente) incompreendida (como é o caso de O som e a fúria). Nesse aspecto, lembro o que escreveu Umberto Eco*** a respeito da autêntica leitura crítica. Para o pensador italiano, esta não deve ser "um passeio no campo, no qual [colhem-se] quase ao acaso, aqui e ali, os ranúnculos ou pilriteiros da poesia aninhada entre o esterco dos rípios estruturais", mas sim um enfrentamento por inteiro do texto, munido de um "forte armamento teórico e uma frequentação em todos o níveis [com que se apresenta o texto]".
* FAULKNER, William. O som e a fúria. São Paulo: Cosac Naify, 2004 [Tradução de Paulo Henriques Britto]
** Devo confessar que, entre os livros dispostos nas estantes da minha residência há bastante tempo (e para os quais ainda não consegui reunir a disposição necessária), está o acabrunhante Ulisses.
*** ECO, Umberto. Sobre o estilo. In: __________. Sobre a literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 151-166 [Tradução de Eliana Aguiar]
** Devo confessar que, entre os livros dispostos nas estantes da minha residência há bastante tempo (e para os quais ainda não consegui reunir a disposição necessária), está o acabrunhante Ulisses.
*** ECO, Umberto. Sobre o estilo. In: __________. Sobre a literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 151-166 [Tradução de Eliana Aguiar]
BG de Hoje
Grupos de música pop hiperproduzidos costumam não ser mais lembrados após toda a badalação que cercava seu surgimento. Foi assim com o GARBAGE. A partir do segundo disco (Version 2.0, 1998), deixou de soar interessante (bom, pelo menos a meus ouvidos). Mas o álbum epônimo, lançado em 1995, me agradou muito, sobretudo a canção A stroke of luck e seu clima lounge.