"Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário - todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda a hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro".
Georges Perec - A vida: modo de usar
É muito raro - sendo quase impraticável - que se leiam os verbetes de uma enciclopédia como se estes fizessem parte de um mesmo romance; como se compusessem uma única narrativa na qual se destacasse uma única diretriz; como se esses pequenos artigos contassem uma história integral, não fragmentária (embora a ambição das enciclopédias seja a de cobrir a totalidade do que existe para se conhecer). Não tenho notícia de nenhum leitor que diante de uma reunião de verbetes proceda do mesmo modo quando incitado a lidar com um texto literário.
O que dizer então de uma obra ficcional escrita de forma tão condensada e minuciosa quanto pode ser a maioria das enciclopédias?
A vida: modo de usar*, do francês Georges Perec, foi chamado de "hiper-romance" por Italo Calvino, que o considerava "o último verdadeiro acontecimento na história" desse gênero de Literatura. Nas Seis propostas para o próximo milênio**, ao tratar da Multiplicidade, Calvino afirma que "o puzzle dá ao romance o tema do enredo e o modelo formal". A ação se desenrola sobretudo num prédio residencial de Paris e o narrador entra em cada apartamento para nos contar, com descrições detalhistas ao máximo, o ambiente e os fatos relacionados a cada um de seus moradores. E não consigo deixar de pensar no duro trabalho a cargo do tradutor dessa obra...
Italo Calvino - que foi amigo pessoal de Perec - informa que A vida: modo de usar dispõe a matéria narrada como num jogo de xadrez e o escritor francês utiliza-se do "movimento do cavalo segundo uma certa ordem que lhe permite ocupar sucessivamente todas as casas" [ou seja, as divisões do prédio residencial]. Ainda segundo ele, o autor seguiu procedimentos matemáticos para combinar os diversos temas nas dezenas de mini-histórias entrecruzadas no livro. E acrescenta:
Esse protagonista, o milionário inglês Percival Bartlebooth, decide aprender, por dez anos, a pintar aquarelas com o artista Serge Valène para colocar em prática um "plano de vida" inusitado. Contará também com os serviços de um habilidoso construtor de brinquedos e outros objetos, Gaspard Winckler. Os três são moradores do mesmo edifício. A contribuição de Winckler para o plano de Bartlebooth consiste na fabricação de 500 quebra-cabeças de 750 peças cada um, que deveriam ser criados de forma imaginosa, em nada semelhantes aos de corte industrial típicos daqueles vendidos em estabelecimentos comerciais comuns.
O milionário inglês tentará montar os quebra-cabeças durante muito tempo. E o leitor de A vida: modo de usar, por sua vez, tentará jogar com o que Georges Perec deixa à vista em relação à(s) narrativa(s) que compõe(m) seu livro. Por isso, o narrador registra no Preâmbulo (e o mesmo texto reaparecerá mais à frente, no capítulo XLIV - 2ª Parte ):
Italo Calvino - que foi amigo pessoal de Perec - informa que A vida: modo de usar dispõe a matéria narrada como num jogo de xadrez e o escritor francês utiliza-se do "movimento do cavalo segundo uma certa ordem que lhe permite ocupar sucessivamente todas as casas" [ou seja, as divisões do prédio residencial]. Ainda segundo ele, o autor seguiu procedimentos matemáticos para combinar os diversos temas nas dezenas de mini-histórias entrecruzadas no livro. E acrescenta:
"Para escapar à arbitrariedade da existência, Perec, como seu protagonista, tem necessidade de se impor regras rigorosas (mesmo se essas regras forem por sua vez arbitrárias). Mas o milagre é que essa poética que se poderia dizer artificiosa e mecânica dá como resultado uma liberdade e uma riqueza inventiva inesgotáveis".
Esse protagonista, o milionário inglês Percival Bartlebooth, decide aprender, por dez anos, a pintar aquarelas com o artista Serge Valène para colocar em prática um "plano de vida" inusitado. Contará também com os serviços de um habilidoso construtor de brinquedos e outros objetos, Gaspard Winckler. Os três são moradores do mesmo edifício. A contribuição de Winckler para o plano de Bartlebooth consiste na fabricação de 500 quebra-cabeças de 750 peças cada um, que deveriam ser criados de forma imaginosa, em nada semelhantes aos de corte industrial típicos daqueles vendidos em estabelecimentos comerciais comuns.
O milionário inglês tentará montar os quebra-cabeças durante muito tempo. E o leitor de A vida: modo de usar, por sua vez, tentará jogar com o que Georges Perec deixa à vista em relação à(s) narrativa(s) que compõe(m) seu livro. Por isso, o narrador registra no Preâmbulo (e o mesmo texto reaparecerá mais à frente, no capítulo XLIV - 2ª Parte ):
"A arte do puzzle começa com os puzzles de madeira cortados à mão, quando a pessoa que os fabrica se propõe apresentar a si mesma todas as questões que o jogador deverá resolver ; quando, em vez de deixar o acaso enredar as pistas, decide interferir pessoalmente para criar a astúcia, o ardil, a ilusão ; de maneira premeditada, todos os elementos que figuram na imagem a ser reconstruída [...] servirão de partida para uma informação enganadora ; o espaço organizado, coerente, estruturado, significativo, do quadro será cortado não apenas em elementos inertes, amorfos, pobres de significado e informações, mas também em elementos falsificados, portadores de informações falsas [...]".
Na próxima semana, volto a escrever sobre esse livro impressionante.
* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]
** CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]
BG de Hoje
Detesto bossa-nova. Não consigo achar a menor graça naquilo (e, apenas nesse caso, não lamento minha ignorância). A bossa-nova é vista como uma manifestação musical sofisticada e João Gilberto (que eu acho um saco), gênio da cultura brasileira. Por isso, considero sensacional esta sátira rasgada feita pelo LÍNGUA DE TRAPO: Cagar é bom.