segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Degustador de refrescos artificiais em pó


"O pouco que a gente sabe bota na vitrine. E o montão que ignora esconde no porão"

Millôr Fernandes

 
 
Embora deteste futebol, nunca deixo de ler a coluna jornalística de Tostão, ex-jogador do Cruzeiro e da Seleção Brasileira, e que se tornou médico após encerrar a carreira de atleta.

Em novembro passado*, o craque escreveu:

"O futebol no mundo deveria ser interrompido em alguns períodos para as pessoas refletirem, desconstruírem muitos de seus conceitos, perceberem as besteiras que disseram e que fizeram para daí construírem novas maneiras de ver a vida e o futebol".

A proposta de Tostão parece trivial. Mas não é.

Sou cada vez mais antissocial porque, entre outros aborrecimentos, o futebol é assunto que invade - pior ainda, domina -, de modo implacável, as conversas em reuniões de amigos e conhecidos. Saber se foi pênalti ou não, se o árbitro é bem ou mal intencionado, se o jogador Y ou o treinador X serão empenhados ou preguiçosos, constituirá, daí em diante, o centro do "debate". O mais impressionante - ou ridículo, ou lamentável, sei lá - é ver na TV sujeitos com ares de profundos especialistas discutindo as mesmíssimas coisas, como se aquilo fosse vital para nossa existência...

Isso não acontece à toa. O futebol é, provavelmente, a forma de entretenimento mais popular do planeta. Movimenta consideráveis somas de dinheiro e ocupa espaço gigantesco nos veículos de comunicação. Millôr Fernandes - novamente!** - adicionou complemento a uma frase (slogan da esquerda nos anos 1970) que não me canso de citar: "o futebol é o ópio do povo e o narcotráfico da mídia".

A maioria das pessoas (pelo menos no Brasil) julga saber alguma coisa sobre futebol. Mas pergunto: o que há para saber?

Como esse esporte é praticado de janeiro a dezembro, todos os anos, nunca se para de falar sobre ele. Platitudes e mais platitudes vão se sedimentando e alimentam os lugares-comuns e clichês da monocultura esportiva do futebol. Dá pra imaginar todo esse universo ludopédico deixando de funcionar por certo tempo, como na utópica proposta de Tostão?

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A meu favor, só posso dizer que o blog Besta Quadrada é periodicamente interrompido para que seu autor reflita sobre as besteiras que escreve amiúde. Quem por ventura lê este espaço merece respeito e consideração, creio eu, e não tem tempo a perder.

Quase todo mundo acha que sabe bastante sobre certos assuntos ou temas (e alguns sabem mesmo!); entretanto, convenientemente, ocultam sua ignorância sobre todo o resto. Aqui, tratando de Literatura na maioria das postagens, até eu corro o risco de passar a impressão de "sacar do barato" (que gíria mais antiquada...). É possível que saiba alguma coisa, mas é ínfimo. Cultivo apenas uma imagem. E sendo direto: uma imagem que, "se colar", obviamente me apetece, pois acho que ninguém gosta de ser visto como ignorante.

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Fiquei, então, pensando: o que é que eu sei? Há alguma atividade, produção ou área, sobre a qual eu possa emitir opiniões válidas, confiáveis, certeiras? Escarafunchei o cérebro, a alma e acabei descobrindo. Ah, suprema sensação é encontrar em si mesmo um dom especial! Sou um degustador de refrescos artificiais em pó, com larga experiência e apurada formação!

Desde o popularíssimo Q-Refresco ao blasonado Clight, passando pelo tradicional Ki-Suco, o reverenciado Tang, o versátil Fresh, o eficaz Frisco (meu predileto), o econômico Tornado e outros de menor fama, sou capaz de reconhecer tonalidades, aromas, adstringências específicas num rápido e breve exame. Desenvolvi métodos próprios de preparo e variações criativas nas maneiras de servir. Suponho haver outros indivíduos (raros, penso eu) com igual talento, mas desde já divulgo aqui minhas credenciais.

P. S. Aos fabricantes dessas delícias artificialmente saborosas, desejosos de contar com meus préstimos, informo que estou à inteira disposição, inclusive cedendo o espaço para publicidade. Basta enviar e-mail destacando, principalmente, os aspectos financeiros da negociação, pois estou no vermelho.
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* TOSTÃO. Desconstrução. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 nov. 2010.  Caderno Esporte, p.5

** FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L & PM, 2002 (a epígrafe da postagem também foi extraída dessa obra)

Na próxima semana, os temas habituais deste espaço. Até breve!

BG de Hoje

Tá certo: Angus Young é um espetáculo à parte. Mas sempre que ouço AC/DC, fico ainda mais admirado com o trabalho de Malcom Young, o irmão mais velho. A simplicidade sonora característica do grupo não seria possível sem a base rítmica da guitarra desse músico, compositor presente em todas as grandes canções gravadas pela banda. E, no vídeo abaixo, uma das minhas prediletas: Problem child (há, primeiro, a apresentação feita por um camarada desconhecido; depois é que o bicho pega... Ah, ainda com Bon Scott no vocal e o baixista já era o Cliff Williams)