Dentro do "pacote" de filmes assistidos recentemente estava O livro de Eli (The Book of Eli - direção: Hughes Brothers, 2009). NOTA: Surpreendi-me ao encontrar no elenco a atriz Jennifer Beals - já madura e ainda muito bonita - que permanece na memória de bastante gente (na minha, pelo menos) como a inverossímil operária-bailarina de Flashdance (1983 )
Não vi nada de mais no filme, mas sou espectador inapto para dar opinião, pois não entendo nada de Cinema. O livro de Eli me interessou por dramatizar, ao modo hollywoodiano (of course!), a relação entre palavra escrita e o processo civilizatório.
Num
mundo pós-apocalíptico, Eli (Denzel Washington) peregrina em direção ao
Oeste, carregando um livro. O mesmo livro é procurado por Carnegie
(Gary Oldman), seu antagonista. Detalhe: quase a totalidade dos
sobreviventes nessa terra desolada não sabe decifrar códigos escritos.
Em determinada cena, dá-se o seguinte diálogo:
"[Carnegie] - Você lê?[Eli] - Todos os dias.[Carnegie] - Bom pra você. Eu também. É curioso. Velhos como nós, eu e você, somos o futuro".
Isso é bastante significativo. Num mundo inóspito, hostil, embrutecido, os livros - e a leitura,
por extensão - podem ser o principal (ou, talvez, único) remédio contra
a barbárie. E são as pessoas mais velhas as responsáveis por
administrar o "medicamento".
Mas - ai, ai, ai - esse é um filme que trata, sobretudo, de fé e religião. Em outra cena,
após declamar o famosíssimo Salmo 23 (versículos 1, 2, 3 e 4), o
personagem central dá informações sobre o "misterioso" livro que leva
(a essa altura, óbvio para qualquer espectador) a uma jovem cuja vida
acabara de salvar:
"[Solara] - Por que disse que não era um livro qualquer?[Eli] - É um exemplar único. Depois da guerra, fizeram questão de caçar e destruir todos os que os incêndios não tinham destruído. Dizem que foi o que motivou a guerra. Seja como for, é o último que sobreviveu".
Eli
diz ainda que encontrou o livro graças a uma "voz" que o orientaria e
protegeria na jornada. Apesar de decepcionado com o filme, nesse trecho - se me permite uma breve
digressão - não pude deixar de pensar na reacionária e conhecida tese
de Samuel Huntington sobre o "choque de civilizações"*.
Para o cientista político norte-americano,
"[...] civilizações diferentes têm concepções diferentes das relações entre Deus e os homens, os cidadãos e o Estado, pais e filhos, liberdade e autoridade, igualdade e hierarquia. Essas diferenças são produto de séculos. Não desaparecerão em pouco tempo. São muito mais elementares do que as diferenças entre ideologias e regimes políticos".
E Huntington é taxativo: "A próxima guerra mundial, se houver, será uma guerra entre civilizações".
Mas há outra coisa para se refletir.
Todas as atuais grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo, islamismo) erigiram-se a partir de livros. O objeto-livro vira objeto sagrado; mas também o ato de ler passa a ser reverenciado. E essa é uma contribuição bem peculiar das religiões para a prática da leitura, digamos, secular: conferir a esse ato um valor simbólico difícil de medir.
Até
bem pouco tempo, eu não atentava para o papel importante desempenhado
por essas religiões no plano da cultura livresca. Num trabalho que não
cansarei de citar (História da Leitura**), Steven Roger Fischer nos lembra que,
"Ao longo da história, a religião foi um dos principais motores da alfabetização. Os escribas-padres figurariam entre os primeiros leitores da sociedade. Depois deles, vieram os eruditos da elite e, a seguir, os celebrantes seculares que, por sua vez, expandiram e diversificaram o material de leitura, acabando por indicar um conceito de educação geral. É fato esclarecedor na história da leitura que a difusão de sistemas de escrita e leitura no mundo hoje reflete com muito mais clareza a difusão das religiões do mundo do que a difusão de famílias de idiomas".
É evidente também que as religiões desenvolveram métodos para limitar o que e como ler, gerando mais desentendimento do que conciliação, mais obscurecimento do que iluminação. Mas isso já é outro assunto.
___________
* HUNTINGTON, Samuel. Choque do futuro. In: UPDIKE, John et al. Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993. p. 135-147
** FISCHER, Steven R. História da Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006 [tradução Claudia Freire]
BG de Hoje
Ontem, chegando ao Bar do Dinei, pedi uma cerveja e uma dose de cachaça. Antes de "beiçar a mardita", cantarolei "bobeou, eu tomo pinga",
parodiando o refrão de um antigo sucesso das rádios AM. Lá de dentro,
alguém secundou e imediatamente começou a cantar a canção com a letra
original. Era um antigo morador do bairro. Não me fiz de rogado e
acompanhei. Tomamos um porre medonho. Vasculhei no Youtube e achei a
pérola: TRIO PARADA DURA, Bobeou, a gente pimba.