À doce J., com muito afeto
O
escritor paranaense Dalton Trevisan é conhecido por sua aversão a entrevistas e
aparições públicas. Mas numa de suas poucas declarações à imprensa,
quando perguntado sobre o que realmente valia a pena na vida, citou,
entre outras coisas, a leitura de "um conto de Tchekhov".
Um
grupo de oficiais é convidado a visitar um certo general Von
Rabbek, numa recepção promovida em casa deste. Entre estes militares,
encontra-se o capitão Riabóvitch, que, segundo o narrador, era um "oficial pequeno, um tanto curvado, de óculos e de suíças que lembravam um lince". Tudo no ambiente festivo da casa do general "infundia a Riabóvitch alarma e vontade de esconder a cabeça". O capitão, protagonista do conto, era "homem tímido e pouco sociável" e "o que primeiro lhe saltou à vista foi aquilo que nunca tivera, isto é, a extraordinária coragem dos seus novos conhecidos".
Os modos desses novos conhecidos - o general Von Rabbek, sua esposa e familiares - ampliavam, por contraste, a inadequação do protagonista: "quanto mais Riabóvitch olhava e escutava, tanto mais lhe agradava aquela família insincera, mas admiravelmente disciplinada".
Começam as valsas. Os pares se formam. Riabóvitch, contudo, "em toda a sua vida, nunca dançara e nenhuma vez abraçara a cintura de uma mulher direita".
Observa com admiração e inveja o comportamento dos outros dançarinos.
Sai do salão para acompanhar um jogo de bilhar. Enfada-se. Ao tentar
retornar, ocorre o incidente crucial da narrativa.
Confuso
sobre qual caminho tomar, perde-se momentaneamente pelos cômodos da
casa. Parado, hesitante, à porta de um quarto escuro, percebe a
aproximação de uma mulher. Esta abraça-o e beija-o sem que ele diga uma
palavra. "Mas, imediatamente, aquela que o
beijara soltou um pequeno grito e, foi a impressão de Riabóvitch,
afastou-se dele com repugnância, num movimento brusco".
O capitão, perturbado - com um pouco de vergonha e medo - volta ao salão. Porém, algumas sensações demoram a se dissipar:
"O seu pescoço, que num instante atrás fora envolvido por braços macios, cheirosos, parecia-lhe untado com manteiga; sobre a face junto ao bigode esquerdo, onde fora beijado pela desconhecida, tremia um friozinho ligeiro, agradável, como gotas de menta, e quanto mais ele esfregava esse lugar, tanto mais fortemente sentia o friozinho, e todo ele, da cabeça aos pés, estava repleto de um sentimento novo, estranho, que não cessava de crescer... Teve vontade de dançar, falar, correr para o jardim, rir alto... Esqueceu-se completamente de que era curvado e incolor, que tinha suíças de lince e um 'físico indefinido' (assim se descrevera o seu aspecto exterior numa conversa de senhoras, que ele ouvira sem querer)".
Naturalmente,
o beijo foi resultado de um mal-entendido; a moça confundira-o com
outro, com o qual provavelmente havia marcado um encontro às escondidas.
Ainda assim Riabóvitch foi inteiramente transformado por esse simples - e banal - acontecimento. À noite, logo que adormeceu, "o
seu último pensamento foi que alguém o acarinhara e alegrara, que em
sua vida ocorrera algo extraordinário, tolo, mas muito bom e alegre".
Ao ler o texto, solidarizo-me com essa personagem. Riabóvitch - em tudo, um gauche - começa então a nutrir esperanças quanto ao futuro. Em suas próprias palavras: " 'tudo o que agora sonho e que me parece impossível e não terrestre é, na realidade, muito comum' ".
Durante
dias, o incidente do beijo e todas as sensações surgidas a partir dele
ocuparam a mente de Riabóvitch. Construiu, em fantasia, cenários nos
quais ele e ela viviam situações especiais. Sonhou reencontrá-la. Isso, entretanto, não seria possível, obviamente.
A
personagem finalmente percebe a estupidez de todas as quimeras
engendradas graças às sensações nascidas de um beijo involuntário,
acontecido por engano e que causou nojo em quem o deu. Riabóvitch volta
à terrível e feroz realidade:
"E o mundo inteiro, toda a vida, pareceram a Riabóvitch uma brincadeira incompreensível, sem objetivo... Mas, afastando os olhos da água e olhando o céu, lembrou, novamente, como o destino, na pessoa de uma mulher desconhecida, acarinhara-o sem querer, lembrou seus devaneios e imagens do verão, e a vida que levava pareceu-lhe tosca, miserável, incolor..."
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* TCHEKHOV, Anton. O beijo. In: ______. As três irmãs; Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Bóris Schnaiderman]