"Olha só aquele clube:
Que 'da hora'!
Olha o pretinho vendo tudo
do lado de fora".
Racionais MC's - Fim de semana no parque
No momento estou muito envolvido com a leitura de duas obras daquelas que nos fazem ter uma visão mais profunda e menos maniqueísta do Brasil, sem a intermediação edulcorada e vazia de nossa mídia televisiva.
Estou me referindo aos livros Cabeça de porco (Ed. Objetiva, 2005), do antropólogo Luiz Eduardo Soares, do rapper MV Bill e do empresário e produtor cultural Celso Athayde; e a Falcão: meninos do tráfico (Ed. Objetiva, 2006) - este último sem a participação de Soares.
Certamente escreverei alguma coisa sobre os trabalhos acima mencionados, tal é o efeito que ambos vêm provocando na minha percepção da realidade brasileira. Um exemplo desse efeito: só agora começo a entender plenamente a força dos comportamentos-símbolo, das vestimentas-símbolo, dos objetos-símbolo na formação de adolescentes e jovens do país. Pior: esses símbolos muitas vezes estão diretamente relacionados ao circuito que liga pobreza, violência, tráfico de drogas e outras modalidades de crime. Mas me permita entrar em outro assunto, sem, no entanto, romper inteiramente com o que venho falando.
No bairro onde moro não costumo ver pessoas praticando corrida. Para dizer a verdade, nunca vi nenhuma, nos mais de 30 anos que vivo lá. De vez em quando até percebo gente idosa fazendo "caminhadas", talvez por prescrição médica. Mas cooper ou jogging, nunca.
Estou me referindo aos livros Cabeça de porco (Ed. Objetiva, 2005), do antropólogo Luiz Eduardo Soares, do rapper MV Bill e do empresário e produtor cultural Celso Athayde; e a Falcão: meninos do tráfico (Ed. Objetiva, 2006) - este último sem a participação de Soares.
Certamente escreverei alguma coisa sobre os trabalhos acima mencionados, tal é o efeito que ambos vêm provocando na minha percepção da realidade brasileira. Um exemplo desse efeito: só agora começo a entender plenamente a força dos comportamentos-símbolo, das vestimentas-símbolo, dos objetos-símbolo na formação de adolescentes e jovens do país. Pior: esses símbolos muitas vezes estão diretamente relacionados ao circuito que liga pobreza, violência, tráfico de drogas e outras modalidades de crime. Mas me permita entrar em outro assunto, sem, no entanto, romper inteiramente com o que venho falando.
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No bairro onde moro não costumo ver pessoas praticando corrida. Para dizer a verdade, nunca vi nenhuma, nos mais de 30 anos que vivo lá. De vez em quando até percebo gente idosa fazendo "caminhadas", talvez por prescrição médica. Mas cooper ou jogging, nunca.
Essa constatação (bastante tola, reconheço) me veio de chofre, dia desses, quando escutava Fim de semana no parque, canção gravada pelos Racionais MC's (sampleando frases de outras de Jorge Ben (Jor) e que está no discaço Raio X Brasil (1993), do grupo paulistano.
A letra da música - um paralelo entre a vida dos ricaços de São Paulo e a dos moradores das regiões mais pobres da metrópole - leva o letrista, em seu início, a partir da visão "de uma caranga do ano/ toda equipada e um tiozinho guiando", que, "com seus filhos ao lado/ estão indo ao parque/ eufóricos", a pensar em sua própria comunidade: "a molecada lá da área como é que tá?".
Diante da diferença, Mano Brown registra:
"Eles também gostariam
de ter bicicleta
de ver seu pai fazendo cooper
tipo atleta.
Gostam de ir ao parque
e se divertir
E que alguém os ensinasse
a dirigir."
Detenho-me nestes versos: "de ver seu pai fazendo cooper/ tipo atleta". Volto ao começo de minha postagem. Fazer cooper ou jogging - ainda que se admita ser um comportamento saudável (para quem tem tempo disponível para fazê-lo, é bom que se diga) - é uma prática que não acontece nas periferias, nos bairros pobres. É, portanto, um hábito restrito a uma classe. E, mais significativo: é um hábito que simboliza essa classe.
E o que tem Pierre Bordieu a ver com tudo isso?
Meses atrás, citei o sociólogo francês aqui no blog e, pelo tema de hoje, sou levado a refletir sobre o peso que a dimensão simbólica da vida social tem em seu pensamento (não custa lembrar que um de seus livros mais famosos chama-se justamente O poder simbólico) e sobre um conceito fundamental em sua obra: o habitus de classe.
Uma de suas definições do conceito* é a seguinte:
"Sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas".
E o que isso quer dizer em "linguagem de em dia-de-semana", como diria Guimarães Rosa?
Significa, "na batata", para nossa compreeensão momentânea, que as classes mais ricas, dominantes, incorporam comportamentos, práticas e hábitos (como, por exemplo, o cooper) para se fazerem imediata e indubitavelmente distintas das outras. Tudo isso, graças ao poderio econômico que possuem (as tais estruturas objetivas). Os comportamentos (as disposições) reforçam suas características de classe, ajustando confortavelmente seus membros dentro desta.
Mano Brown, provavelmente sem ter lido Pierre Bourdieu, em poucos versos, faz uma análise sociológica tão boa quanto a dele.
* BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974