Eu tinha pouco mais de vinte anos naquela primeira leitura. Foi a total transformação do leitor que eu era. E que plasmou o leitor de hoje, menos ingênuo e mais criterioso. Tornou-se livro de cabeceira, constantemente lido e relido. Ao todo, já possuí quatro exemplares, de três edições diferentes. É nele que se encontra a mais perfeita narrativa da novelística brasileira: A hora e vez de Augusto Matraga.
Sobre ela, o antropólogo Roberto DaMatta escreveu um ótimo ensaio (Augusto Matraga e a hora da renúncia**) no qual procura observar como um escritor, mesmo um mágico da escrita como Rosa, equaciona o mundo real dentro de seu texto. Escreve DaMatta:
"Não há novidade alguma na afirmação de que todos os escritores deformam deliberadamente ou não aquilo a que chamamos de realidade - ou a realidade tal como é definida oficialmente pelos instrumentos de legitimação de uma sociedade. Mas, por outro lado, sabemos que todos os autores mantiveram um mínimo de coerência da realidade, mesmo quando se voltavam contra ela do modo mais violento."
Se você fez a gentileza de acompanhar essa série de postagens sobre a noção de Literatura, deve ter notado que eu manifestei maior apreço pelos escritores adeptos da fabulação em alto grau (e julgo que Guimarães Rosa seja um desses). Em A hora e vez de Augusto Matraga, temos essa famosa passagem:
"E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor."
O que faz o narrador com essa simples afirmativa? Manda um recado para o bom leitor, como a dizer: "Isso é pura invencionice, mas eu sei que você sabe, não é mesmo? Então vamos continuar o nosso joguinho?" Ou seja, ficção - e da boa - no mais alto nível.
Ao pensar, neste últimos dias, na relação entre ficção e realidade, lembrei-me de um pequeno artigo, publicado em 2004***, de autoria do escritor Bernardo Carvalho, cujo título é Lobo! Lobo!, e que fazia referência àquela folclórica narrativa em que uma criança, meio mentirosa, anuncia a chegada de um lobo feroz nas proximidades da aldeia.
Carvalho cita textualmente uma reflexão de Vladimir Nabokov:
"A literatura não nasceu no dia em que um menino gritando lobo! lobo! veio correndo do vale de Neandertal com um grande lobo cinzento no seu encalço: a literatura nasceu no dia em que um menino veio gritando lobo! lobo! e não havia lobo nenhum atrás dele [...] Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de história verídica é um insulto tanto à arte quanto à verdade".
Nas próprias palavras de Bernardo Carvalho, percebe-se a sintonia entre seu pensamento e o de Nabokov. Para Carvalho, vivemos "num tempo em que a imaginação na literatura parece gozar de um desprestígio crescente entre os leitores, mesmo entre os mais cultos". O autor prossegue (e perdão pela citação um tanto longa, mas ela é essencial):
"Não é preciso muito esforço para notar que não só os livros jornalísticos e as biografias mas também os romances 'baseados em histórias reais ' interessam mais os leitores do que as ' obras de imaginação' . O que prende o leitor a um livro em que há ambiguidade entre realidade e ficção é a realidade, e não a ficção. A ficção, para ele, é a parte supérflua [...] O assustador é que possa ser resultado e sinal de uma percepção cada vez mais empobrecida do imaginário. Como se toda 'obra de imaginação' não estivesse de alguma forma ancorada na realidade e não a refletisse. Como se a imaginação não fosse um elemento constitutivo e fundador da realidade, mas um artigo supérfluo".
Nem preciso dizer que essa opinião coincide, em parte, com o tipo de literatura proposta por Bernardo Carvalho em seus romances. Mas isso é assunto para outro dia.
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* ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
** DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
*** CARVALHO, Bernardo. Lobo! Lobo! . Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2004. Caderno Ilustrada. p. E6