sábado, 30 de setembro de 2023

Os "defensores da família" (e primeiras impressões sobre O verão tardio, de Luiz Ruffato)

 

Ah, quanta merda se proclama em nome da família!

Se eu pudesse acrescentar algo à conhecidíssima frase atribuída a Samuel Johnson, seria: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha [, porque a família, possivelmente, está entre os primeiros]". 

Os discursos conservadores mais extremados, vira e mexe, lançam mão do termo família para sustentar posicionamentos (e atos) excludentes, discriminatórios e que não contribuem para a emancipação de ninguém. Proteger a família é o subterfúgio mais usado por velhacos da política e líderes de igrejas caça-níqueis (entre outros pilantras) na hora de atormentar pessoas LGBTQIA+, na hora de enfraquecer a laicidade do Estado, na hora de negar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, na hora de obstruir ações educativas que discutam questões de gênero e a estrutura patriarcal da sociedade.

Têm amantes e filhos desassistidos fora do casamento, mas batem no peito moralista para dizer que "só a família tradicional é que deve existir". Condenam a descriminalização da maconha "porque vai acabar com as famílias", enquanto lucram secretamente com as operações de milícias envolvidas diretamente com o narcotráfico.

"Valores familiares" - uma noção bastante discutível (para não dizer completamente vaga) - são invocados por esses indivíduos, a torto e a direito, para justificar opressões diversas.

O que escrevi até agora não foi um libelo contra a família. Um número imenso de pessoas só consegue sobreviver neste mundo desgraçado graças ao apoio dos arranjos familiares aos quais se vinculam. Não por acaso, aliás, costumam estar fora do enquadramento empregado pelos reacionários hipócritas e oportunistas, quando mascaram sua intolerância e venalidade através do discurso falsamente pró-família, porque esses arranjos não são compostos por papai, mamãe e filhinhos de comercial de margarina.

Contudo, embora sejam importantes pontos de apoio e eixos que sustêm muitas pessoas, outros tantos não encontram amparo (vai além de grana, a despeito da importância de se ter dinheiro) ou não mais preservam o sentimento de pertencimento nas famílias que lhes couberam. Foi o que ficou em mim ao acompanhar os últimos seis dias do personagem-narrador Oséias em O verão tardio, romance de Luiz Ruffato publicado em 2019.

Após muitos anos, de volta à cidade de Cataguases, sem saber o que esperar, mas certo de que naquele momento encontram-se "enosados os fios que atam o começo e o fim" ¹, Oséias busca, talvez, um acerto ou, quem sabe, uma reconciliação com o passado. 

O primeiro contato com um conhecido dos tempos de escola já é agressivo e intimidador. Não, definitivamente não será uma volta feliz. "A cidade está feia, suja, fedendo a mijo. O lixo se espalha pelos meios-fios. Mendigos e camelôs disputam os passantes. Nos botequins, bares e restaurantes, televisores ligados hipnotizam os clientes". A descrição vale para qualquer metrópole brasileira e é de se notar que, em breve, cidades do interior idílicas e limpinhas (afinal, Cataguases não passsa de 80.000 habitantes) serão apenas lenda.

No reencontro com Marilda, a ex-namorada da adolescência (que acabou se casando com um homem brutal), ouve a frase: "Às vezes penso que a vida é puro arrependimento...". Divorciado e sem contato com o filho único, viciado em drogas, Oséias se questiona:

"Em que momento as coisas começaram a desandar? Por que atalhos se meteram minhas pernas, sem que eu desse conta? Este desconforto, sempre... E eu tinha alguma expectativa... No entanto, nem essa, pouca, se cumpriu".

"Caminho sem retorno, erros que levam a outros erros, e cinquenta e três anos pelo ralo. É isso a vida?"

Ao rever as irmãs e o irmão, cada um parecendo viver em ilhas só deles, a constatação de um afastamento irreversível. O verão tardio focaliza uma família, mas o individualismo excessivo e a incapacidade de ser solidário são marcas das sociedades contemporâneas, tudo sendo mais dramático ainda em países de tanta desigualdade - e em um evidente processo de clivagem ideológica e cultural - como o Brasil.


P.S: Ontem à noite, quando já tinha finalizado a redação desta postagem, acabei me deparando com o ótimo artigo Descaminhos e desesperança: o Brasil de Luiz Ruffato em O verão tardio, de Enio Passiani. Se voltar a escrever sobre este romance, certamente discutirei esse estudo.

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¹ RUFFATO, Luiz. O verão tardio. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

BG de Hoje

Parece que, no estágio socioeconômico e político em que nos encontramos, a única coisa que os indivíduos comuns podem fazer é resistir. Não propor algo realmente novo, não partir para o enfrentamento do que (e de quem) nos está fodendo, não derrubar estruturas que precisam ser derrubadas: o máximo que conseguimos é oferecer resistência. Só. Isso é bem triste. De todo modo, adoro essa canção do duo CALLE 13: El Aguante.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Ensaio sobre a cegueira: o horror como matéria de reflexão

 



"Vamos endoidecer de horror". - pensamento do médico, dias após a quarentena e a reclusão.

"Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora".

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago


Não consigo rever Amistad, de Steven Spielberg.

Considero um dos grandes trabalhos do cineasta norte-americano, não me entenda mal, mas há aquela sequência do testemunho de Cinqué (interpretado pelo sempre ótimo Djimon Hounsou) no tribunal, descrevendo, com a ajuda do intérprete, a horripilante travessia dele e dos outros homens e mulheres escravizados, dentro do navio do qual provém o título do filme. O relato é transformado em imagens (afinal, trata-se de uma narrativa audiovisual) fortes e impactantes.

Eu chorei. Simplesmente não conseguiria assistir de novo.

Recuso-me a rever Despedida em Las Vegas. A cena em que a personagem interpretada por Elisabeth Shue é brutalizada e estuprada tornou-se, na minha opinião, num dos momentos mais atrozes do cinema. Intolerável. NOTA: No livro de John O'Brien (do qual o filme é uma adaptação), o episódio é ainda mais torturante e doloroso, dizem. Nunca o li.

Como terá sido durante a gravação? Como terá reagido a equipe presente - operadores de câmera, diretores, assistentes, além dos atores diretamente envolvidos?

Sabemos que se trata de um artifício - a violência e a crueldade foram simuladas - ; não obstante, não é possível passar por cenas como essas incólume, sem ficar agoniado ou pelo menos experimentar algum desconforto (eu não conseguiria). Estou falando do ponto de vista do espectador, mas creio que deve ter sido angustioso, em alguma medida, também para os que tornaram possíveis as cenas.

Não deve ser "de boa" representar e expor o horror.

Terminei recentemente minha segunda leitura do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. É um texto que provoca grande aflição (por isso demorei mais de vinte anos para decidir voltar a ele). Nos seus Cadernos de Lanzarote (reunião de diários escritos entre 1993 e 1998), o autor registrou ¹:

"Lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isso não fosse o bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais".

Saramago levou cerca de três anos para terminar o livro e, como se lê acima, não são apenas os que o leram que se atormentaram.

É uma narrativa alegórica, em que se tenta dizer ao leitor - registra-se nos Cadernos de Lanzarote -:

"que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra. Tentei dizer que a razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que não seja boa a direção em que vamos".

O pessimismo do escritor elevou-se à enésima potência no Ensaio sobre a cegueira. Logo no segundo capítulo, antes mesmo do confinamento e da propagação da cegueira branca, o médico constata: "É desta massa de que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade" ². O evento catastrófico em torno do qual a história se constrói faz emergir a monstruosidade latente em nós, seres humanos, assim como, em poucos dias de flagelo, volvemos ao bicho que nunca deixamos de ser. O estilo de Saramago - os parágrafos espessos e as circunvoluções em torno de uma mesma expressão ou frase - manteve-se inalterado ao contar essa história de horror, única do gênero na obra do artista português.

A abjeção a que foram condenados os cegos dentro do romance nos martiriza, mas pensamos pouco na omissão e na insensibilidade dos que continuaram a enxergar, pelo menos por um pouco mais de tempo do que os outros. "O medo cega", diz a rapariga dos óculos escuros em determinado momento e outro personagem secunda: "São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos". 

Já que mencionei a rapariga dos óculos escuros (é dela também a frase mais famosa do livro: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"), pode-se afirmar sem hesitação que o Ensaio... deve a maior parte de sua pujança às personagens femininas (as mulheres, aliás, é que foram supliciadas para que todos pudessem obter comida no local de confinamento, com a aceitação covarde dos homens "bons", inclusive...). E nenhuma personagem é tão grandiosa (como criação artística, mas também no sentido moral, ético) como a mulher do médico, a testemunha ocular de toda aquela desgraça, literalmente.

Num dos capítulos finais, lemos o seguinte: 

"As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas nas honradas, disse a rapariga dos óculos escuros. Depois disto houve um grande silêncio, para as mulheres ficara tudo dito, os homens teriam de procurar as palavras, e de antemão sabiam que não seriam capazes de encontrá-las".

Um modo de dizer que as mulheres não se restringem (ou não deveriam se restringir) a papéis previamente delimitados ou impostos por sociedades cegas, adoecidas. 

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Comecei a postagem mencionando filmes. O(a) eventual leitor(a) certamente sabe que o Ensaio sobre a cegueira também foi adaptado para o cinema e lançado em 2008. O brasileiro Fernando Meirelles dirigiu.

Não sei se é tão dilacerante como o livro: ainda não assisti.

Será que eu aguentaria um outro enfoque para todo aquele horror do texto original?

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¹ Essa declaração e outras foram também reproduzidas em matéria publicada no jornal Estado de Minas no ano passado, assinada por Paulo Nogueira, a respeito da nova edição do Ensaio sobre a cegueira, marcando o centenário de nascimento do escritor: Saramago: personagem assumiu controle de 'Ensaio sobre a cegueira'. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2022/11/25/interna_pensar,1425460/saramago-personagem-assumiu-controle-de-ensaio-sobre-a-cegueira.shtml>. Acesso em: 06/09/2023

² SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

BG de Hoje

Os textos da seção BG não costumam ser longos: só que hoje tenho muito para falar. Na época em que a cena grunge se estabeleceu, eu fiquei muito interessado naquele som. Não só o de artistas provenientes de Seattle e redondezas, mas o de outros grupos assemelhados, que despontaram no mesmo período: por exemplo, o L7 (que veio de Los Angeles). Quando comprei o disco Bricks Are Heavy (lançado em 1992 e, comercialmente falando, o mais bem sucedido da carreira delas), ouvia sem parar. A colaboração do produtor Butch Vig ajuda a explicar o parentesco grunge. Quase duas décadas depois, busquei conhecer outras gravações da banda, levando-me ao disco anterior, Smell The Magic (de 1990), que teve Jack Endino, outro lendário produtor musical daquela cena, auxiliando nos trabalhos (Endino, vale acrescentar, foi parceiro dos Titãs em Titanomaquia). Desse álbum, Smell The Magic, destaco a canção Fast And Frightening, para mostrar como as raízes do L7 estão no punk, com um show à parte da baterista Demetra "Dee" Plakas.