quinta-feira, 3 de junho de 2021

Falou e disse...

 

"Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade, que agora nos é dada pela ciência - a compreensão da ilusão e do erro como uma condição da existência que conhece e que sente -, não teria podido ser tolerada. [...] Nem sempre proibimos nosso olho de arredondar, de fingir até o fim: e então não é mais a eterna imperfeição que portamos sobre o rio do vir-a-ser - então pensamos portar uma deusa e somos orgulhosos e infantis nessa prestação de serviço. Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós suportável ainda, e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, de nós próprios, podermos fazer um tal fenômeno. Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão do conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria! E precisamente porque nós, no último fundamento, somos homens pesados e sérios e somos mais pesos do que homens, nada nos faz mais bem do que a carapuça de pícaro: nós precisamos usá-la diante de nós próprios - precisamos usar de toda arte altiva, flutuante, dançante, zombeteira, pueril e bem-aventurada, para não perdermos aquela liberdade sobre as coisas que nosso ideal exige de nós". *

 

* NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. In: _______________. Obras incompletas. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 197-198 [Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho] (Coleção Os pensadores)