segunda-feira, 23 de março de 2020

Sobre esportes e idolatria



[Postagem atualizada em 25/10/2020]

Para a postagem de hoje, creio que seria bem enriquecedor verificar o que a antropologia e a psicologia têm a dizer sobre a compulsão humana para idolatrar certos indivíduos.

Ficarei devendo, porém. Vou preferir fazer um texto mais pessoal. Espero que dê certo.

Quem se depara com o molambo humano que sou dificilmente acreditaria estar diante de alguém que gosta de assistir atividades que envolvem movimentação vigorosa do corpo. Meu atual sedentarismo, dezenas de quilos a mais e preguiça colossal não combinam em nada com um apreciador de skate, vôlei, judô, basquete e tênis, entre outras modalidades (o futebol, a essa altura da vida, tornou-se quase intragável pra mim, faço questão de frisar). Mas, acredite ou não, durante um tempo considerável, eu pratiquei - de forma amadora, nem por isso menos intensa - duas das modalidades citadas. E hoje, derreado, ainda gosto de assistir competições pela TV e mesmo in loco, quando possível.

Se você já leu outros escritos neste blog deve ter notado, contudo, que o esporte raramente é tema por aqui - no geral, prefiro falar de literatura e filosofia (música pop também, porque ninguém é de ferro). E esse lado intelectual (ou, pelo menos, metido a intelectual) acaba sobrepujando os outros interesses que tenho. Ainda assim, meus dois grandes ídolos não são escritores(as), artistas ou filósofos(as). São duas esportistas: a brasileira Paula, ex-jogadora de basquete, e a romena Cristina Pirv, ex-atleta do vôlei. Falemos primeiramente da última.


Cristina Pirv foi um fenômeno na rede e no fundo de quadra. Ótima passadora, era também elogiada na defesa. No ataque, basta dizer que, nas três temporadas inteiras em que defendeu a equipe do Minas Tênis Clube, ela foi a maior pontuadora da Superliga em todas as ocasiões. Poucas vezes vi uma esportista tão carismática. Tive a alegria e o prazer de ir a muitos jogos aqui em BH dos quais ela participou. Em um deles, Pirv fez um gesto simples, do qual nunca me esquecerei.



Se me recordo bem, foi na temporada 1999/2000. A partida era entre o MRV/Minas e o Rexona - time que já teve muitos nomes (hoje conhecido como Sesc/RJ) e, naquele período, sediado em Curitiba (vale mencionar que Bernardinho é o técnico da agremiação desde o início, em 1997). O confronto foi realizado no ginásio do Colégio Pio XII, porque a quadra da equipe belo-horizontina estava em obras (transformado-se, ulteriormente, na atual Arena Minas Tênis Clube). O jogo encaminhava-se para o final, poderia ser o último ponto. Contudo, apesar da liderança no placar, a torcida ficou inexplicavelmente silenciosa. O adversário estava prestes a sacar. Foi quando a romena, com os braços abaixados, próximos ao corpo, moveu apenas os dedos das mãos para cima, como se dissesse "Pô, vamos vibrar, pessoal!". Poderia passar despercebido; afinal, não foi aquele gesto convencional de levantar os braços e gritar para as arquibancadas. Naquela época, porém, os torcedores mais apaixonados do Minas (eu sou um deles) nunca deixavam de reparar nos mínimos movimentos daquela extraordinária jogadora. Resultado: a torcida insuflou-se, ergueu a voz, e a equipe mineira fechou o set e a partida, apoteoticamente.

Na temporada 2001/2002, Cristina Pirv finalmente foi campeã da Superliga pelo MRV/Minas Tênis Clube (chegando a jogar com uma torção no tornozelo em uma das partidas finais). Foi eleita a melhor jogadora do torneio (e olha que a sensacional Virna estava em plena atividade, atuando na equipe vice-campeã). Entrou para a história do clube e passou a ser idolatrada por este blogueiro.


Com relação a Paula (já citada anteriormente aqui no blog), a idolatria é ainda maior. Começou por volta de 1986, num tempo em que havia espaço na TV aberta para outras modalidades esportivas além do famigerado futebol. Acompanhei muitas disputas do Campeonato Paulista de basquete e fiquei maravilhado com a inteligência e a classe da armadora nascida na pequena cidade de Osvaldo Cruz. O interesse pelo basquetebol - meu esporte predileto - surgiu aí. Um de meus maiores desgostos foi nunca ter tido a oportunidade de presenciar um jogo da Paula, dentro do ginásio. Entretanto, sempre fiz tudo o que pude para assistir as partidas em que estivesse atuando, tanto pelos clubes quanto na seleção brasileira. Era eletrizante!


Falando em seleção brasileira, a década de 1990 foi especialíssima. Campeã pan-americana em 1991, campeã mundial em 1994 e medalha de prata nas Olimpíadas de 1996 (além do 4º lugar no Mundial de 1998).

Em 2006, Paula entrou para o Hall da Fama do basquete feminino; em 2013, para o Hall da Fama da Federação Internacional de Basquete (FIBA). Assisti a exibições de grandes jogadoras com a bola laranja nas mãos - Teresa Edwards, Natalya Sazulskaya, Hortência, Candace Parker, Lauren Jackson, Maya Moore... -, entretanto, nenhuma delas provocou nada parecido com o alumbramento sentido toda vez que vi a eterna camisa 8 da seleção brasileira atuar.

Por que essas duas pessoas tornaram-se meus ídolos?

Antes de responder, eventual leitor(a), permita-me fazer algumas considerações.

Sempre entendi o esporte como uma forma de espetáculo (e algumas modalidades prestam-se melhor a isso do que outras). Mas não é possível compará-lo a outros tipos de apresentação - como o teatro ou o circo, por exemplo.

Num ensaio sublime, publicado há quase vinte anos no extinto caderno Mais!, da Folha de S. Paulo (disponível aqui), Hans Ulrich Gumbrecht observa que "alguns intelectuais são obcecados pela ideia de que os esportes 'representam' algo diverso do que são (o que os transforma numa espécie de performance que requer interpretação)." Isso não levaria a nada. Para o pensador alemão, o esporte pode ser visto como um dos vários "locais sociais da beleza" - para além da arte propriamente dita -, existentes nas sociedades contemporâneas. Ou seja, o esporte é também um fenômeno estético. Segundo Gumbrecht:

"A especificidade do juízo estético, segundo Kant, repousa justamente em sua capacidade de produzir consenso baseado num juízo que não tem consciência de seus próprios critérios e conceitos -o que nos conduz a mais outra expressão famosa da Terceira Crítica de Kant (a sua Estética). Trata-se de sua descrição da fruição da beleza como 'prazer livre de interesse'. 'Livre de interesse', nesse contexto, significa que, em relação a nossas situações práticas cotidianas, não temos razão (não temos fundamento, não temos 'interesse') em achar 'bonitas' ou 'feias' as coisas que desfrutamos ou rejeitamos na experiência estética. Se nos sentimos atraídos por elas, não é porque sua presença irá, por exemplo, aumentar nossa fortuna ou melhorar nossa saúde. Isso é o que Kant adverte ao chamar o prazer estético 'livre de interesse' e é isso que críticos e filósofos depois de Kant quiseram descrever quando falavam da 'autonomia' ou da 'insularidade' da arte". 
Tudo isso vale também para o esporte. Gostamos de determinado conjunto de lances esportivos ou, no caso da nossa discussão de hoje, da(s) atuação(ões) de determinado atleta, mas não sabemos exatamente quais critérios nos levaram a desenvolver esse gosto. Não sabemos justificar o porquê dessa predileção. Citei títulos e premiações obtidas por Paula e Pirv; no entanto, o prazer em vê-las jogar veio antes das conquistas ou não dependeu destas. Além do mais, nada obtive - materialmente falando - com essa idolatria. Era "livre de interesse".

Reproduzindo as palavras do ex-nadador Pablo Morales, Gumbrecht apresenta a seguinte definição: "Praticar esportes e assistir a esportes é perder-se em concentrada intensidade". 

"Perder-se" porque, no momento do jogo (ou, pelo menos, em certos momentos do jogo), esportistas e torcedores deixam de lado o mundo circundante como se apenas o jogo existisse. A "intensidade" tem a ver, claro, com os corpos que disputam espaço e realizam ações atléticas, mas tem a ver também com as reações de quem assiste. E é "concentrada" porque tudo converge para um acontecimento (ou um conjunto de acontecimentos) específico e irreproduzível. Espera-se  uma epifania, ou seja, "a aparição súbita e transitória de algo que, ao menos durante o tempo de sua aparição, tenha substância e forma simultaneamente". Atentemos para o excerto a seguir:

"Esportes coletivos produzem um tipo ainda mais complexo de epifania. Saber se os corpos podem corresponder às exigências de uma certa forma acha-se aqui fora de cogitação, porque não estão em jogo exigências formais preestabelecidas [em comparação com a ginástica artística]. O que esperamos, num estádio de futebol, por exemplo, é que o time em posse da bola avance produzindo a forma de uma bela jogada.
Tal forma, se surgir, é sempre um evento, porque nunca podemos ter certeza se acontecerá, sua emergência sendo sempre ameaçada pelos esforços defensivos do time adversário. Mas a bela jogada é também um evento no sentido de que a maioria dos espectadores jamais a viu antes e que, em muitos casos, ela de fato está sendo posta em ação desse modo pela primeira vez.
Acresça-se a isso que a forma da bela jogada é uma forma temporal, pois literalmente desaparece após surgir e jamais será posta em prática novamente do mesmo modo (nem jamais poderá captá-la uma fotografia); e é finalmente uma forma corporal, uma forma que ocupa espaço, uma forma em relação à qual os corpos dos espectadores num estádio podem posicionar a si próprios. Epifania como emergência de uma forma até então desconhecida é, sustento, uma referência máxima para o prazer que sentimos ao assistir a esportes. Todo fã é bom conhecedor do entusiasmo que nos domina quando um time avança numa sequência rítmica de passes e jogadas muitas vezes surpreendentes. 
Esse entusiasmo é um deleite espiritual combinado com prazer físico, igual a uma respiração funda ou a uma gargalhada alegre. É um entusiasmo também a que nunca podemos nos agarrar, um entusiasmo, enfim, que é diferente do alívio que sentimos quando nosso time marca um gol. Sentimo-nos bem com o mundo ‘tal qual é’ quando nosso time marca um gol, ao passo que a bela jogada é capaz de modificar o âmbito do que imaginamos possível".  

NOTA: Na sequência, o ensaísta - que é professor de Teoria da Literatura na Stanford University -escreve sobre a relação do esporte com a violência (para ele, o esporte é uma maneira mais ou menos elaborada de "encenar a violência"). Para nossos objetivos, contudo, o trecho acima é suficiente.

Apesar de usar como exemplo o futebol, a análise de Hans Ulrich Gumbrecht é aplicável também ao basquete. Lá também pode-se experimentar "o entusiasmo que nos domina quando um time avança numa sequência rítmica de passes e jogadas muitas vezes surpreendentes". Característica, aliás, do jogo de Paula, famosa por passes fora do comum e jogadas com alto grau de imprevisibilidade. Tal como um outro grande jogador de basquete, pelo qual tinha grande admiração quando jogava: Magic Johnson.

Por causa da capacidade de trazer (ou fazer parte de) tantos momentos de epifania durante o espetáculo esportivo - mais do que os outros atletas de suas respectivas modalidades - é que Paula e Cristina Pirv tornaram-se meus ídolos. E apenas a performance e o mérito esportivo importam. Por mais que possam ser, fora das quadras, pessoas admiráveis (estou apenas supondo), isso não teve relevância na constituição de minha idolatria. Nesses dois casos é assim.

Quero incluir agora em nossa discussão, todavia, um outro ex-jogador, Kobe Bryant, falecido recentemente e de uma forma que pegou de surpresa todos os fãs do esporte por ele praticado.

Confesso que não assisti a tantos jogos de Bryant quanto desejaria. Ainda assim, gostava muito de vê-lo em quadra, quando possível. Sem dúvida - na opinião de torcedores, de outros atletas e da imprensa especializada -, foi um dos grandes da história. E serei sincero: ao saber de sua morte, fiquei meio atônito por alguns minutos. Sem exagero.

Após a aposentadoria, o ex-shooting guard dos Lakers ganhou elogios por seu apoio ao basquete feminino. Ele comparecia a jogos da WNBA (sobretudo os que ocorriam em Los Angeles, com mando de campo da equipe das Sparks). Sua filha Gianna começava a demonstrar que seguiria a mesma carreira do pai e Bryant sempre fazia questão de tornar público seu apoio (infelizmente, a adolescente morreu no mesmo acidente de helicóptero que o vitimou).

Havia muitos motivos para se idolatrar Kobe Bryant.

Entretanto, como esquecer que em 2003 ele fora preso e acusado de estupro dentro de um hotel no Colorado? O jogador já estava casado e admitiu adultério, afirmando que a relação foi consensual. Os promotores não levaram o processo criminal adiante porque a mulher recusou-se a testemunhar no tribunal. Porém, é preciso lembrar que ela era apenas uma empregada do hotel, com pouco mais de 19 anos, e o acusado, embora jovem, já era tri-campeão da NBA, uma estrela consolidada, com contratos milionários. Dada a diferença de status e poder entre os dois, pode-se especular que a moça foi intimidada de alguma forma. Para tornar a história ainda mais tenebrosa, o mea culpa de Bryant praticamente confirmava o estupro (o jogador não foi punido por isso) e como o resultado do processo civil movido pela ex-funcionária do hotel foi sigiloso é bem difícil não olhar para o craque dos Lakers como um cafajeste.

Diante disso, surge a questão: dá pra admirar atletas - ou qualquer outro indivíduo que colocamos na posição de ídolo, sejam artistas, empresários(as), lideranças políticas, sei lá - sem reservas, sem nos preocuparmos com suas atitudes e posturas fora do seu campo de expertise?

Creio que às vezes sim, às vezes não. Depende de cada caso. Essa resposta, sobretudo após todo o longo texto que escrevi, nada tem de original, e talvez seja decepcionante e evasiva. Mas no caso do craque do basquetebol, não consigo olhar apenas para seus feitos em quadra e esquecer a torpeza do ato praticado naquele hotel em 2003.

Procuro sempre ser o mais racional possível. A morte de Kobe Bryant me deixou um pouco abalado pelo grande atleta que ele foi, por sua capacidade de produzir tantas epifanias em quadra e emocionar dessa maneira os fãs de basquete (um fã como eu). Meu lado mais pensante, porém, não deixa passar aquela acusação de estupro (um dos crimes mais hediondos e também um dos mais difíceis de ser levado a julgamento) e me sinto mal por ter sentido esse abalo.

Claro, ele não foi condenado por um tribunal. Todavia, isso basta?

A esse respeito, recomendo o artigo  We Can Only Process Kobe Bryant's Death by Being Honest About His Life, escrito por Evette Dione e publicado na revista Time em janeiro passado.

Na próxima postagem, falo do romance A peste, de Albert Camus.

BG de Hoje

Embora meu tipo de sonoridade predileta seja o rock norte-americano e britânico produzido nas décadas de 1960/1970, o maior referencial que tenho, em se tratando de música, está nos anos 1990, abrangendo vários gêneros e sub-gêneros. Uma das canções daquele período com a qual tenho grande identificação é No Rain, presente no álbum de estreia da banda californiana BLIND MELON, lançado em 1992. A faixa, entretanto, só ganharia o mundo em 1993, muito em virtude do seu clipe bacana, que - lembro bem - era muito exibido na antiga MTV (infelizmente, contudo, não consegui achar o vídeo no Youtube).

[Atualização em 24/04/2020] Hoje, felizmente, acabei encontrando o clipe original.