"Não é tarefa simples construir algum grau de entendimento sobre os assuntos humanos. Sob certos aspectos, é mais difícil que nas ciências naturais, onde, se a mãe natureza não nos dá respostas de bandeja, pelo menos não se dá ao trabalho de colocar obstáculos ao entendimento. Nos assuntos humanos, esses obstáculos são a regra. É necessário desmantelar as estruturas de falsificação erguidas pelos sistemas doutrinários, cujos muitos ardis fluem de maneira absolutamente natural dos circuitos onde se concentra o poder". *
* CHOMSKY, Noam. Estados fracassados: o abuso do poder e o ataque à democracia. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 120 [Tradução de Pedro Jorgensen Jr.]
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
terça-feira, 20 de agosto de 2019
Uma narradora sincera
Já disse, em postagens anteriores, que não sou chegado em histórias de amor (tratei um pouco disso aqui e aqui, por exemplo). Mas o que fazer diante de uma narrativa cujo título é tão tentador e propositalmente desleixado como O que deu para fazer em matéria de história de amor?
Cheguei ao livro de maneira fortuita. Estava atrás de um determinado romance de Elvira Vigna (no caso, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas) e acabei topando com esse outro numa das bibliotecas públicas que frequento aqui em Belo Horizonte.
São duas histórias paralelas: a do vínculo entre a narradora e Roger e a do vínculo entre Rose e Arno. No seu esforço para recontar/reconstruir o que se passou com o outro par, a narradora (cujo nome jamais é mencionado) talvez consiga entender o rumo do seu próprio caso:
A narradora e Roger mantém um relacionamento há décadas. E como ela própria observa, "a palavra 'relacionamento' substituindo, aqui como algures, a frase: alguém está me fodendo em mais sentidos do que um". Considero uma das melhores passagens do livro.
É comum hoje em dia ouvirmos frases do tipo: "saí de um relacionamento que durou X meses/anos"; "nosso relacionamento está dando certo" ou "meus relacionamentos costumam terminar rápido". O que se quer dizer, de fato, com isso?
Não se trataria apenas de sexo - embora sexo geralmente seja um componente crucial. Tratar-se-ia, supostamente, de algo mais significativo. Quando alguém usa a palavra relacionamento, quer acrescentar, acho eu, uma ou duas camadas extras de expressividade a noções mais básicas, como a de namoro, ou adoçar termos mais insípidos e formalizados, como união estável ou mesmo casamento. Tudo fazendo parte da (tantas vezes incoercível) necessidade humana de conferir um sentido mais profundo a experiências tantas vezes acidentais e comezinhas (mas a narradora reconhecerá na 3ª e última parte do livro: "somos todos sem sentido algum mesmo, em nossas vidinhas em que nada acontece").
Num momento em que a ideia de amor romântico passa por contestação e recusa, a leitura de O que deu para fazer em matéria de amor é quase obrigatória. Elvira Vigna (falecida em 2017) soube imprimir o tom certo em sua narradora. Ela é crível e franca (o tanto quanto podem ser críveis e francas as criações ficcionais), mesmo que algumas "revelações" só sejam apresentadas ao leitor na terceira e última parte. Sua sinceridade pode ser medida em passagens com esta:
"Há um cachorro amarelo e magro que olha para o lixo e para mim, em tristezas alternadas. Não consegue se decidir de onde haverá mais chance de aparecer algo de bom. Concordo com ele".
Ou nesta outra, sensacional, no penúltimo capítulo do livro:
Ainda assim, a narradora admitirá que precisa "de uma história que não tenha acabado". É isso que a faz "ir em frente. Até aparecer outra coisa". Algo que o final aberto da narrativa evidencia.
___________
¹ VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
São duas histórias paralelas: a do vínculo entre a narradora e Roger e a do vínculo entre Rose e Arno. No seu esforço para recontar/reconstruir o que se passou com o outro par, a narradora (cujo nome jamais é mencionado) talvez consiga entender o rumo do seu próprio caso:
"Há mais nesta história" - diz ela ¹ - "que já não sei mais se é minha, de Roger, ou de Arno e Rose, que invento para ocupar nosso lugar em um passado em que ainda não existíamos - para que assim tenhamos um futuro que ainda não existe e que não sei se vai existir. Ou se quero que exista.
E este a mais, a ser adicionado, dependendo de como, pode fornecer afinal uma explicação - lá desde sempre, e desdenhada".
A narradora e Roger mantém um relacionamento há décadas. E como ela própria observa, "a palavra 'relacionamento' substituindo, aqui como algures, a frase: alguém está me fodendo em mais sentidos do que um". Considero uma das melhores passagens do livro.
É comum hoje em dia ouvirmos frases do tipo: "saí de um relacionamento que durou X meses/anos"; "nosso relacionamento está dando certo" ou "meus relacionamentos costumam terminar rápido". O que se quer dizer, de fato, com isso?
Não se trataria apenas de sexo - embora sexo geralmente seja um componente crucial. Tratar-se-ia, supostamente, de algo mais significativo. Quando alguém usa a palavra relacionamento, quer acrescentar, acho eu, uma ou duas camadas extras de expressividade a noções mais básicas, como a de namoro, ou adoçar termos mais insípidos e formalizados, como união estável ou mesmo casamento. Tudo fazendo parte da (tantas vezes incoercível) necessidade humana de conferir um sentido mais profundo a experiências tantas vezes acidentais e comezinhas (mas a narradora reconhecerá na 3ª e última parte do livro: "somos todos sem sentido algum mesmo, em nossas vidinhas em que nada acontece").
Num momento em que a ideia de amor romântico passa por contestação e recusa, a leitura de O que deu para fazer em matéria de amor é quase obrigatória. Elvira Vigna (falecida em 2017) soube imprimir o tom certo em sua narradora. Ela é crível e franca (o tanto quanto podem ser críveis e francas as criações ficcionais), mesmo que algumas "revelações" só sejam apresentadas ao leitor na terceira e última parte. Sua sinceridade pode ser medida em passagens com esta:
"Há um cachorro amarelo e magro que olha para o lixo e para mim, em tristezas alternadas. Não consegue se decidir de onde haverá mais chance de aparecer algo de bom. Concordo com ele".
Ou nesta outra, sensacional, no penúltimo capítulo do livro:
"Pontos-finais têm sempre este lado, de alívio, mesmo se pontuam o final de algo muito bom. E não foi muito bom.
Ou sou eu. Vai ver sou eu a pessoa dura e fria que enxergo nos outros. Eu, que nunca estou com Roger sem pensar em não estar".
Ainda assim, a narradora admitirá que precisa "de uma história que não tenha acabado". É isso que a faz "ir em frente. Até aparecer outra coisa". Algo que o final aberto da narrativa evidencia.
___________
¹ VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BG de Hoje
Às vezes me pergunto por que o grupo VERUCA SALT não atingiu fama mundial (nem nos EUA a banda de Chicago alcançou grande popularidade). Surgido no esteio da cena grunge, o quarteto tinha uma boa levada pop que combinava com as guitarras pesadas (basta ouvir a canção mais conhecida do grupo, Volcano Girls). Após um período de inatividade, a banda retornou em 2013 e em 2015 lançou o disco Ghost Notes. Uma das faixas acrescentadas a esse álbum é a excelente The Museum Of Broken Relationships, que serve de BG para a postagem de hoje (a propósito, existe de fato um Museu dos Relacionamentos Rompidos, cujas sedes ficam em Los Angeles e Zagreb).
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