domingo, 16 de setembro de 2018

O deslocamento de Lima Barreto (II)


"Além do mais, Lima foi daquelas testemunhas que suportam a solidão de uma responsabilidade e, ao mesmo tempo, assumem a responsabilidade de estar num lugar, no seu caso, muitas vezes repleto de solidão".


Lilia Moritz Schwarcz - Lima Barreto: triste visionário



Grande parte dos manuais e livros didáticos de Literatura classifica Lima Barreto como escritor pré-modernista (bem, falo dos manuais e livros didáticos do meu tempo de aluno do 2º Grau; pode ser diferente hoje em dia, no Ensino Médio). É assim, por exemplo, no título que tenho em mãos neste momento: Língua & Literatura, de Maria da Conceição Castro (volume 3, editora Saraiva), cuja primeira edição é de 1993. Curioso ver que a autora afirma ter sido Lima Barreto "valorizado pelos modernistas da Semana de 22 pela sua capacidade de introduzir na obra literária fatos, situações e linguagem do cotidiano". Há controvérsias, como se verá adiante.

Antes, vale refletir um pouco se o termo Pré-Modernismo é apropriado como designação de um período literário específico.

O prefixo pré-, junto com a acepção de anterioridade, carrega muitas vezes o sentido de "preparatório para algo que virá" - é o caso, por exemplo, em palavras como pré-universitário. O que um curso pré-universitário tenciona é aprontar seus frequentadores para que, futuramente, sejam admitidos ou sintam-se melhor aclimatados numa universidade. 

Pré- também costuma denotar uma espécie de quase. Quando se usava dizer pré-escola, queria-se designar um estabelecimento que é quase uma escola, mas ainda não é. Nesse sentido, a pré-escola seria considerada menos importante do que a escola propriamente dita, pois a primeira só existiria em função da segunda. NOTA: A partir da segunda metade dos anos 1990, o termo pré-escola vai desaparecendo e sendo substituído pelo termo (mais adequado) educação infantil, pois amplia-se a compreensão de que o trabalho com crianças menores de seis anos não é menos educativo do que outros realizados noutras etapas.

Creio que essas acepções do prefixo nos ajudam a entender por que o termo Pré-Modernismo é uma classificação ruim.

Em primeiro lugar, pode nos induzir a considerar o Modernismo como um estágio evolutivo "natural" e superior da produção literária nacional, um ideal estético que se desejava atingir previamente. Aqueles que escreviam antes do advento da Semana de Arte Moderna de 1922 estariam apenas "preparando o terreno" para os que viriam depois - estes, sim, autores inovadores e de talento... Em segundo, denominar um período como pré-modernista acaba, inadvertidamente, esvaziando de importância esse mesmo período, visto somente como um quase (já que a "meta ideal" não teria sido ainda alcançada).

Dito isso, quero deixar registrado que não me oponho às tradicionais classificações de períodos literários para fins didáticos. São válidas e úteis em muitas ocasiões. Mas não nessa.

Voltemos, contudo, ao primeiro parágrafo da postagem de hoje. Teria sido Lima Barreto realmente valorizado pela turma que organizou a Semana de 22?

Em Lima Barreto: triste visionário (Ed. Companhia das Letras, 2017), biografia sobre a qual comecei a escrever na postagem anterior, Lilia Moritz Schwarcz observa que, embora "a nova agenda modernista [tivesse] pontos em comum com aquela de Lima", um episódio "marcaria a sorte" deste com o grupo paulista liderado por Mario e Oswald de Andrade.

Sérgio Buarque de Holanda, colaborador da revista Klaxon, um dos veículos de divulgação dos modernistas de São Paulo, entregou um exemplar da publicação para o escritor carioca. Era comum Lima Barreto tratar de novos autores nas muitas crônicas que produzia para a imprensa do Rio de Janeiro. No caso da Klaxon, nota Schwarcz, ele "reagiu de pronto, revelando seu célebre escárnio. Avaliou que a publicação devia muito ao futurismo italiano e, quem sabe, implicou com 'os rapazes', a quem provavelmente julgou burgueses e muito paulistas".

Ela acrescenta:

"História de 'se' não existe. Ou seja, se Lima tivesse juntado dois mais dois; se tivesse sido capaz de superar sua primeira opinião sobre a capa modernista da publicação dos paulistas; se tivesse conseguido reconhecer nas novas gerações anseios semelhantes, ou ao menos afinados, aos que ele descrevera em seu 'manifesto' de 1921 - intitulado 'O destino da literatura' -, talvez a história fosse outra. Mas não houve tempo, e o que ocorreu lembrou o estrondo e as consequências de uma trombada. 
Lima achou que os 'moços de São Paulo' tinham jeito de bovaristas [nesse contexto, encantados com o que vem do exterior, em detrimento do que se faz no próprio país] e que andavam animados demais com as ideias de Marinetti [o "pai" do Futurismo]. Já eles, na resposta divulgada no número seguinte da publicação, fizeram pouco-caso das avaliações do 'herbolário carioca'. Pensaram que só podia ser coisa de gente da capital [até 1960, o Rio de Janeiro foi o distrito federal]. Se 1922 deu a impressão de que iria se abrir como um ano de encontro, foi ano de fim".

De fato, não houve tempo para desfazer mal-entendidos e aparar arestas. Lima Barreto morreu justamente em 1922 (com apenas 41 anos) e não pôde ler, por exemplo, o Macunaíma, de Mario de Andrade (lançado em 1928), livro em que, acredito, ele identificaria um parentesco com sua concepção de fazer literário. Além do mais, a rusga surgida após o escarnecimento da Klaxon indispôs os modernistas de 22 para com uma obra em muitos aspectos próxima das intenções "anti-academicistas" defendidas pelo grupo de São Paulo.

O que foi dito até agora só reforça o deslocamento de Lima Barreto sobre o qual estamos falando desde a última postagem. Esse deslocamento ocorria tanto no plano pessoal (como espero ter demonstrado no texto anterior), quanto na sua dimensão pública de escritor e intelectual. O autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, mesmo depois de morto, também demorou a encontrar um lugar dentro da crítica e da história literária, em parte por causa do desentendimento mútuo entre ele e os modernistas de 22. A esse respeito, Lilia Schwarcz escreve:

"Lima também passava a ser assumido pela crítica como um autor 'entre': entre gerações, entre gêneros, entre grupos [...]. Se não se adequava aos padrões das gerações que imediatamente lhe antecederam, nem aos daquelas com as quais convivia , tampouco parecia coadunar-se com o estilo das novas vogas literárias, que faziam barulho entre os jovens paulistanos. O autor de Policarpo Quaresma considerava 'os moços de São Paulo' adeptos demais das vogas futuristas e legítimos representantes das novas elites burguesas e industriais. Já os modernistas paulistanos, ao menos nesse primeiro momento, reservavam a Lima o mesmo tipo de aversão que guardavam com relação ao grosso da produção literária que vinha do Rio de Janeiro, e o julgavam conservador demais. Um regressista que não admitia a entrada dos novos costumes, vogas artísticas e literárias ou hábitos urbanos".

Naquele Brasil da Primeira República, "Lima gostava de se definir como 'outro' - afirma a biógrafa -; "outro no jornalismo, outro em suas preferências políticas, outro ainda (e sobretudo) quando se referia ao funcionalismo público". Deslocado, "outro", avesso às pompas que cercavam muitos outros escritores de seu tempo, pobre, alinhado ao anarquismo e ao socialismo (num país em que a desigualdade faz parte do DNA da sociedade), negro (num país extremamente racista, poucas décadas após a Abolição), alcoólatra, duas vezes internado num hospício, o escritor, contudo, não parou de batalhar com os recursos que tinha, mesmo sem acreditar em si. Ou, talvez, acreditasse. No capítulo 11 (Fazendo crônicas, contos e virando Triste fim de Policarpo Quaresma), Lilia Moritz Schwarcz  assinala que:

"Com a publicação de Triste fim, a figura literária de Lima seria ainda mais lapidada. Ele era então caracterizado, e também gostava de se definir desta maneira, como um escritor boêmio, frequentador de botequins, realista por gosto, avesso ao jornalismo burguês e aos formalismos da literatura. Seus problemas na Politécnica [abandonou o curso de Engenharia] viravam virtudes, seu ir e vir nos subúrbios uma forma de existência. A despeito de tanta contraposição, Lima jamais negava seu sonho de viver das letras. Tanto que na mesma entrevista [concedida ao jornal A Época, em 1916], assim resumia sua 'missão': 'O fim da minha vida é as letras. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: Glória! [...] Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis [...] peço-lhes coisa sólida e duradoura [...] Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas [...] Vamos beber cerveja' ".

. . . . . . .

Antes de terminar a postagem, não posso deixar de reconhecer o trabalho monumental feito por Lilia Moritz Schwarcz em Lima Barreto: triste visionário. É um livro de mais de 600 páginas, ressaltando diversos aspectos não só da vida e da obra do escritor, mas também do contexto sócio-histórico. A experiência da biógrafa como historiadora e antropóloga foi vital aqui. E mesmo que a profusão de notas possa retardar o ritmo da leitura em alguns momentos (para o leitor que vai conferi-las pelo menos em parte, como este blogueiro), o ganho informativo é tremendo.

Schwarcz também não se furtou a apresentar o lado antipático do biografado (como sua aversão ao feminismo ou o senso de superioridade evocado diante das outras pessoas de seu meio social, menos cultas do que ele), bem como salientou as ambiguidades que marcaram a sua trajetória pessoal e pública. Vale destacar o reconhecimento da autora ao trabalho de Francisco de Assis Barbosa, que, na década de 1950, não só produziu uma importante biografia, como foi fundamental para renovar o interesse pela obra do escritor, num esforço que incluiu o lançamento de inéditos e a republicação de diversos livros de Lima Barreto.

Na próxima postagem, falarei de um dos meus romances prediletos: O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati


BG de Hoje

É meio complicado classificar, de primeira, o tipo de música feita pelo CRIOLO. Isso que é legal no som dele. Tem rap? Principalmente, claro. Mas também tem samba. E uma faixa singularíssima como Bogotá, com sua levada que remete o ouvinte a outras vertentes rítmicas latino-americanas.