sábado, 1 de setembro de 2018

O deslocamento de Lima Barreto (I)


Certas expressões viram moda num curto período de tempo. Passam a ser exaustiva e irritantemente repetidas. E tornam-se, por fim, clichês vazios.

A despeito do que acabei de escrever, vou usar uma dessas expressões. Porque ela, acho, não me soará oca ou desgastada - pelo menos, não nesse caso.

Lima Barreto me representa.

Vai além de nossa comum afrodescendência.

A vida de Lima Barreto foi marcada pelo deslocamento. Essa sensação é bastante familiar para mim. Ele era também alcoólatra - outra característica que compartilhamos.

Na volumosa biografia do escritor carioca lançada no ano passado ¹, Lilia Moritz Schwarcz escreveu:

"Ante os infortúnios, [Lima Barreto] bebia. Bebia por medo, pela falta de amigos, por não encontrar a rapariga certa, para fugir da 'desgraça doméstica', por causa de seu emprego. E bebia porque bebia, porque gostava de beber.

[...]

E justificava o vício: para não se aborrecer, para não ter de enfrentar o descompasso entre suas 'aptidões' e 'boas qualidades', assim como para poder lidar [com] (ou esquecer [de]) seus 'poderosos defeitos' e frustrações. Bebia chope, uísque, cachaça, para afastar o abismo que devia enxergar entre si e os amigos, os colegas de repartição, as mulheres, a família, os vizinhos.

[...]

Por essas e por outras, Lima se sentia e parecia cada vez mais deslocado. A roupa sempre manchada, o sapato desgastado, e placas de suor que lhe marcavam a camisa e colavam o cabelo à cabeça. Sofria com o tédio da repartição, com sua vida literária que não decolava, e com sua situação pessoal: poucos amigos, sem namoradas, e com a família que ele precisava prover. A bebida, para Lima, transformava-se ao mesmo tempo numa espécie de evasão para a sua profissão, que o entediava, e daquele mundo que insistia em não dar certo".

Destacar o alcoolismo do escritor não é tratar de tema supérfluo, nem cometer qualquer tipo de indiscrição perversa: é apresentar um fato relevante na vida de Lima Barreto, cujo impacto ultrapassou a esfera das relações pessoais, atingindo sua obra e a recepção crítica desta. Como qualquer outro ser humano, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma carregava suas inseguranças e (muitos) fracassos. E quando penso que se trata de uma pessoa negra, neto de uma escravizada, buscando, com as poucas armas de que dispunha, reconhecimento literário no início do século passado neste país (que foi, ainda é e, ao que tudo indica, sempre será) arcaico, racista e excludente, digo em pensamento: "É isso aí, Lima, beba. Só nos resta beber..."

"Pode-se dizer" - também escreveu a biógrafa - "que Lima se sentia 'estrangeiro' onde quer que estivesse" Como isso me é igualmente familiar! Schwarcz prossegue:

"Em primeiro lugar, seu grau de formação levava-o a se apartar dos vizinhos de Todos os Santos. O escritor gostava de reconhecer sua educação e dela se gabar, e assim guardava certa quilometragem dos personagens que tão bem descrevia. Em segundo lugar, na sua roda de amigos boêmios conservava uma separação cautelar, ainda mais quando se tratava de 'socializar com as moças'. Conhecia demais aquilo que chamava de 'limitações' trazidas pela cor que estampava em sua pele, ou ao menos mantinha esse tipo de obstáculo bem delineado quando tentava medir-se ou medir os outros".

O(A) eventual leitor(a) talvez se lembre de duas passagens do romance citado linhas acima ². A primeira encontra-se no capítulo 3. Numa pequena reunião festiva, alguns conhecidos de Policarpo Quaresma falam a respeito do major, motivados pela repercussão daquele desastroso requerimento escrito em tupi. A seguir, um trecho do diálogo:

"- Quem é? - perguntou Florêncio.
 - Aquele vizinho, empregado do arsenal, não conhece?
- Um baixo, de pince-nez?
- Esse mesmo - confirmou Caldas.
- Nem se podia esperar outra coisa - disse o doutor Florêncio - Aqueles livros, aquela mania de leitura...
- Pra que ele lia tanto? - indagou Caldas.
- Telha de menos - disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
- Ele não era formado, para que meter-se em livros?
- É verdade - fez Florêncio.
- Isso de livros é bom para os sábios, para os doutores - observou Sigismundo.
- Devia até ser proibido - disse Genelício - a quem não possuísse um título acadêmico ter livros. Evitam-se assim essas desgraças [ele se refere à "loucura" de Quaresma]"

Na outra passagem, logo no capítulo seguinte, Policarpo volta pra casa abatido, após ser suspenso e levar uma descompostura do chefe (mais uma vez, consequência do requerimento em tupi despachado por engano). No bonde, encontra-se com o amigo Ricardo Coração dos Outros. Outro trecho de diálogo:

"- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.
- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
- É bom pensar, sonhar consola.
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens..."

Os interessados na obra desse escritor sabem que muitos de seus personagens funcionam como disfarces do próprio autor, inteira ou parcialmente. Policarpo Quaresma - enquanto funcionário público medíocre de baixo escalão, leitor inveterado (mas sem diploma) e sujeito intelectualizado de forma diletante e errática - é Lima Barreto. E este blogueiro se identifica tanto com isso tudo...


Noutro trecho da biografia, Lilia Schwarcz reproduz uma passagem bem significativa do diário íntimo do autor:

"Novamente no seu Diário, em 1908, o sentimento de deslocamento manifesta-se: 'Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte [...] Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me preocupar mais. Eu esperava isso tudo; mas não pensei que fosse tão cedo. Resta-me o Pausílipo, este é o único que se parece comigo e que tem o meu fundo, que ele desconhece por completo [...] Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas' ".

Não consigo deixar de ficar pasmado com a ingenuidade de Lima Barreto ao acreditar que "a humanidade vive da/pela/para a inteligência" (bem, era o início do século XX, o socialismo parecia alcançável, as duas grandes guerras mundiais ainda não tinham acontecido e mesmo o capitalismo, baseado fortemente na indústria e comércio - pois mal engatinhava a irrefreável especulação financeira transnacional -, apontava uma confiança otimista no engenho humano). O escritor, porém, não cria nele mesmo. Mas como crer, se não havia recompensa alguma?

Na próxima postagem, falo de um outro aspecto do deslocamento de Lima Barreto: a sua inadequação ao sistema literário então vigente.
__________
¹ SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

² BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 21 ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, 


BG de Hoje

Trata-se de uma gravação impecável. Tudo soa perfeito. As harmonizações vocais (a principal característica do MPB 4), o arranjo de Luiz Carlos Ramos, o violão de sete cordas imponente, a cuíca discretíssima, a entrada gloriosa do surdo. Mas o ingrediente principal está no tamborim excepcionalmente bem tocado. Não se pode deixar de mencionar a letra do Paulo César Pinheiro para a linda melodia do Miltinho. É por essas e outras que Cicatrizes é uma das faixas de disco mais bonitas que já ouvi.