quarta-feira, 11 de julho de 2018

Pelo menos sei de Olanna, Odenigbo, Ugwu, Richard, Kainene...


Poucos acontecimentos podem degradar tanto os seres humanos quanto a guerra.

Não obstante, parece que nossa espécie nunca se livrará desse flagelo. A guerra, praticada desde os primeiros esboços de civilização, provavelmente acompanhará a humanidade até... até... a sua extinção (que, sabemos, pode inclusive ser propiciada por uma conflagração nuclear global).

Segundo a organização não-governamental IRIN, há, hoje, mais de 30 conflitos armados, de média e larga escala, em andamento pelo planeta (entre guerras civis, lutas separatistas e tomadas/domínio de território por potentados ou chefões do tráfico de drogas), acarretando a morte de milhares de pessoas diariamente - seja por ataques diretos, seja por impedir o acesso dos indivíduos a alimentos ou cuidados médicos.

Não é segredo para ninguém que uma grande parte dos confrontos bélicos não recebe a devida atenção dos veículos de comunicação (sobretudo por acontecerem no antes chamado Terceiro Mundo) e, pensando naqueles já encerrados (alguns há bem poucas décadas), quase nada se ouve, se lê ou se aprende a respeito desses confrontos. É o caso da guerra civil da Nigéria, também conhecida como Guerra de Biafra, ocorrida entre 1967 e 1970. Resultando em mais de um milhão de pessoas mortas (algumas fontes falam em até três milhões), vítimas, principalmente, da fome e da falta de medicamentos causadas por bloqueios militares, esse conflito é retratado no livro Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie¹.

Importante ressaltar, contudo, que não se trata aqui de um relato preso à mera concatenação de fatos do passado, como se fosse uma espécie de acerto de contas com a história recente do país. Não. Estamos diante de um empreendimento literário (um ótimo empreendimento, diga-se de passagem). Por isso, julgo adequado fazer algumas considerações antes de falar propriamente da narrativa em questão.

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 No célebre ensaio A personagem do romance ², Antonio Candido escreve:

"Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enredo e a personagem, que representam a sua matéria; as 'ideias', que representam o seu significado, - e que são no conjunto elaborados pela técnica), estes três elementos só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados. No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de [André] Gide: 'Tento enrolar os fios variados do enredo e a complexidade de meus pensamentos em torno destas pequenas bobinas vivas que são cada uma das minhas personagens' ".

No parágrafo seguinte de seu texto, Candido fará questão de salientar que "a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance", admitindo, porém, que a leitura deste depende "basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor". Se, como escreveu o ensaísta, apenas o amálgama dos três elementos - ideias (isto é, os intuitos, significados e valores que o texto veicula), enredo e personagens - poderá fornecer a estrutura apropriada para um bom livro, é difícil não conceder, porém, que o último componente é preponderante na maneira como nós, fruidores modernos de literatura, assimilamos as narrativas ficcionais nos dias de hoje. Se, de fato, os personagens não podem existir sem uma urdidura textual e uma cosmovisão que os sustenha, é preciso reconhecer (e assim o faz o falecido e saudoso crítico), que os/as personagens são "o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e começo do XX".

Pois bem. À medida que vamos avançando pelas páginas de Meio sol amarelo, nos damos conta de que seus/suas personagens, tanto os/as centrais quanto os/as secundários(as), constituem, indiscutivelmente, as peças mais importantes do livro. São eles/elas que nos dão, como diria Antonio Candido, a "impressão de vida" do livro.

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O romance de Chimamanda Ngozi Adichie se divide em quatro partes (alternando entre o início dos anos 1960, pré-guerra, e o final desta mesma década, com o confronto em curso), totalizando 37 capítulos. Apesar do registro em 3ª pessoa, a narração privilegia o olhar das situações tal como essas são vivenciadas por:

  • Ugwu, rapaz egresso do interior da Nigéria e que vai trabalhar como serviçal na casa de um professor, na pequena cidade-universitária de Nsukka; 
  • Richard, cidadão britânico, aspirante a jornalista/escritor, fascinado pela arte antiga local; 
  • E, sobretudo, por Olanna, jovem nascida na elite nigeriana, formada em Londres, que decide trabalhar na Universidade de Nsukka, para onde segue, acompanhando seu companheiro, Odenigbo (o professor anteriormente mencionado).

No encerramento de alguns capítulos, paralelamente à história que vai sendo contada, aparece o esquema de um outro livro - O mundo estava calado quando nós morremos (e cuja autoria é revelada perto do final). É neste que se encontra a seguinte observação: "Em 1960, na época de sua Independência, a Nigéria era um conjunto de fragmentos presos por um frágil fecho".

É oportuno lembrar que a ação imperialista/colonialista efetuada pela Europa no continente africano, intensificada a partir da Conferência de Berlim (1884-85), produziu impactos cujas consequências, graves, perduram até hoje na região. Como afirma a professora Leila Leite Hernandez (Universidade de São Paulo) ³,

"A carta geopolítica da África [estabelecida nas últimas décadas do século XIX] estava basicamente pronta, sendo boa parte das fronteiras conservada, no seu conjunto, até os dias atuais. Com isso foram desconsiderados os direitos dos povos africanos e as suas especificidades históricas, religiosas e linguísticas. Em outras palavras, as fronteiras da nova carta geopolítica da África, aprovada na Conferência de Berlim, raramente coincidiram com as da África pré-colonial"

Em razão de demarcações que atendiam exclusivamente às conveniências do expansionismo europeu, povos com grande identidade cultural foram separados, enquanto outros, consideravelmente diferentes uns dos outros, forçados a conviver dentro de um mesmo país recém-inventado. Hernandez acrescenta:

"Assim, confirmados pelos Estados nacionais, os traçados das fronteiras coloniais permanecem, no seu conjunto, até os dias de hoje, por vezes potencializando uma série de conflitos de intensidade variável que, rompendo os limites territoriais de cada país, encontram condições propícias para se regionalizar. É preciso sublinhar que a 'questão étnica' apontada como causa de praticamente todas as 'guerras internas' na África é fruto da manipulação política, em grande parte das vezes, segundo interesses econômicos e políticos de alguns setores das elites africanas associadas às empresas europeias e norte-americanas"

A Nigéria, nação cuja independência deu-se apenas em 1960, experimentou - e experimenta ainda hoje - muitos dos problemas decorrentes desse período de sistemática dominação/exploração por parte dos pretensos países desenvolvidos. Odenigbo, numa passagem de Meio sol amarelo diz: "a grande tragédia do mundo pós-colonial não é não ter dado à maior parte a chance de dizer se queria ou não esse novo mundo; a grande tragédia é que a maioria não recebeu as ferramentas para negociar nesse novo mundo".

Voltemos ao livro de Chimamanda Adichie.

Como defendemos acima, Meio sol amarelo é um livro tão vívido porque apresenta um convincente conjunto de seres fictícios, ou seja, seus personagens. O evento histórico no qual se assenta em nada limita a inventividade da autora. Na nota adicionada ao final da narrativa, Adichie faz questão de registrar que, a despeito de se basear na guerra Nigéria-Biafra, "algumas liberdades foram tomadas, em nome da ficção". O que me remete a outra passagem do texto de Antonio Candido anteriormente citado. Escreve o ensaísta:

"O romancista é incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na coletividade dos grupos. Ele começa por isolar o indivíduo no grupo e, depois, a paixão no indivíduo. Na medida em que quiser ser igual à realidade, o romance será um fracasso; a necessidade de selecionar afasta dela e leva o romancista a criar um mundo próprio, acima e além da ilusão de fidelidade".

Ainda que a existência concreta sirva de parâmetro, romancistas, enquanto artistas, não devem forçar seus escritos a coincidirem rigorosamente com o mundo real, se quiserem fazer um bom trabalho. Romances são um objeto estético: importa antes (falando sobretudo dos personagens) produzir uma caracterização que resulte de uma "escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência", sublinha Candido.

Na mesma nota final da qual falávamos, a escritora deixa claro que sua intenção é retratar suas "próprias verdades imaginadas e não os fatos da guerra. Ainda que alguns personagens tenham como base uma pessoa real, seus retratos são fictícios, assim como os eventos dos quais fazem parte".

E esses seres e episódios imaginários nos atingem em cheio.

Adichie, nas partes do livro que tratam do período pré-guerra, habilmente faz com que o leitor se torne íntimo dos personagens, para que, nas partes que descrevem os horrores do conflito, vislumbremos suas emoções (e dores e sofrimentos) com uma assombrosa sensação de proximidade. Esse artifício também permite que não percamos de vista uma questão, sempre trazida à tona nas histórias de guerra: como preservar a própria dignidade e manter-se íntegro em cenários de violência, penúria e medo? A esse respeito, há uma frase bem significativa de Kainene, a irmã gêmea de Olanna: "Estamos todos nessa guerra e cabe a nós decidir se vamos nos tornar outra pessoa ou não"A escritora, porém, é atenta para não transformar personagens em reservas de magnanimidade. Em resenha publicada no New York Times no mesmo ano de lançamento de Meio sol amarelo (2006), o professor Rob Nixon (University of Wisconsin - Madison) chamou atenção para "o tom de empatia [exibido pelo livro] que nunca sucumbe aos impulsos simplificadores, heroicos ou demoníacos, da literatura em defesa de uma causa". Ele observa que "mesmo os mais honrados de seus personagens têm falhas humanizadoras". Esse desejo de olhar para o(s) tema(s) sem reducionismos pode ser verificado em muitos momentos.

Num deles, Olanna, que aderiu de corpo e alma à causa biafrense, diz, num dos capítulos finais: " 'Eles venceram, mas nós fizemos isso' [...] e percebeu como era esquisito dizer eles venceram, dar voz a uma derrota na qual não acreditava. Seu sentimento não era o de ter sido derrotada; era o de ter sido enganada". Guerras (e isso é ainda mais patente nos séculos XX e XXI) são conduzidas a partir de decisões tomadas seguindo a orientação de poderosos interesses - políticos e principalmente econômicos - bastante localizados. Além disso, a propaganda circulante em meio ao conflito (inclusive a do lado que julgamos certo) é um recurso que se vale, quase sempre, da mistificação. Nesse aspecto, combatentes e civis (os que sangram, matam e morrem) acabam se tornando, absurdamente, a parte menos importante. Talvez seja disso que Olanna tenha se dado conta.

Noutra passagem, também nas páginas de encerramento, Richard está junto a algumas pessoas pelas quais não tem muita afeição (sendo que a uma delas dedica forte inimizade). Além do mais, a perda de uma pessoa muita querida durante a guerra o abalara muito. É quando se lê: "Não sabia muito bem se queria entrar numa daquelas conversas que quase todo biafrense tratava agora, passando grãos de culpa para os outros e besuntando a própria cara com o valor que nunca tiveram".

Já comentei aqui no blog sobre aquela famosa fala de Chimamanda Ngozi Adichie na primeira das suas TED Talks - "Histórias importam. Muitas histórias importam". Diversos ocorridos, assuntos, lugares e culturas possivelmente não chegariam ao conhecimento de muitos de nós não fossem por obras ficcionais que os têm como temas principais ou ancilares. Portanto, contar essas histórias é fundamental, mesmo que algumas sejam dolorosas às vezes. No 34º capítulo de Meio sol amarelo alguns personagens tentam lidar com a lembrança do que testemunharam e viveram durante a guerra. Olanna, numa ocasião, fugindo de Kano (cidade localizada no Norte do país e um dos primeiros focos do conflito), viajou num trem abarrotado ao lado de uma mulher que carregava a cabeça cortada da filha dentro de uma sacola. Em meio a todo o horror daquilo, contudo, ela reparara no penteado da cabeça. Ugwu, nessa altura da narrativa, prestes a iniciar sua vida adulta, faz anotações nos papéis que consegue encontrar. Atenção para este impressionante trecho:
" ' E como eram as tranças?' , perguntou Ugwu.
De início Olanna se espantou com a pergunta, depois percebeu que lembrava perfeitamente como o cabelo fora trançado, e começou a descrever o estilo do penteado, com algumas trancinhas caindo pela testa. Depois descreveu a cabeça, os olhos abertos, o acinzentado da pele. Ugwu escrevia, enquanto Olanna falava, e o fato de ele escrever, a sinceridade de seu interesse, de repente fez sua história adquirir importância, a fez servir a um propósito maior, que nem mesmo Olanna sabia bem qual era -e então contou tudo o que se lembrava sobre o trem cheio de gente chorando, gritando e urinando"

Há quem diga (e não são poucos, infelizmente) que poemas, contos e romances não passam de exercícios supérfluos, que nada se aprende com a criação literária. Este blogueiro, claro, discorda veementemente. Personagens como Olanna, Odenigbo, Ugwu, Richard, Kainene, Arize e outros ensinaram-me tanto quanto (ou mais do que) a leitura de um texto não-ficcional poderia fazê-lo. É como disse Adichie na TED Talk mencionada acima: "Histórias foram usadas para despojar e difamar, mas histórias também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Histórias podem partir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade partida".

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¹ ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [Tradução de Beth Vieira]

² CANDIDO, Antonio. O personagem do romance. In: ____________.(et al) A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 51-80

³ HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005



P. S. Meio sol amarelo também foi adaptado para o cinema, num filme lançado em 2013, com Thandie Newton, Chiwetel Ejiofor e John Boyega no elenco. Aqui você pode ver o trailer.



BG de Hoje

Os paranaenses do MACHETE BOMB não escondem sua principal influência: a banda norte-americana Rage Against the Machine. Lançando mão de - como o nome do grupo já indica -  instrumentos e levadas típicas do samba (pra quem não sabe, o cavaquinho também já foi chamado de machete), eles dão uma outra cara ao estilo rap-rock desenvolvido por Tom Morello & Cia. Confira na pulsante faixa Fatcap.