Um tempinho atrás estava lendo a postagem de um blog cuja autora mencionara o filme Le hérisson. Achei tão cativante a ponto de, mesmo não compreendendo patavina de francês (pelo menos não ainda), ficar com muita vontade de assisti-lo. Até o momento não tive oportunidade.
Felizmente, porém, consegui chegar ao romance ¹ (traduzido no Brasil) em que se baseia o longa-metragem. E, a propósito, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, é um romance muito bom.
São duas narradoras, alternando-se ao longo do livro: Renée Michel e Paloma Josse. A primeira é a concierge de um prédio de apartamentos em Paris; a segunda é uma estudante de colégio, filha de um político importante e moradora desse edifício habitado por endinheirados. Renée tem 54 anos, sempre foi pobre e, segundo sua própria avaliação, feia e sem atrativos. Apesar de sua função humilde e insignificante e de corresponder "tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge" - na aparência e no modo como, dissimuladamente, relaciona-se com seus patrões -, guarda uma inteligência rara e é muito culta. Por sua vez, Paloma, adolescente de 12 anos, apesar de viver em meio a privilégios, toma uma decisão dramática: suicidar-se antes de seu próximo aniversário. Superdotada, mas retraída e discreta, ela supõe-se um fruto da contradição, "porque, por uma razão desconhecida, [é] hipersensível a tudo o que é dissonante, como se tivesse um tipo de ouvido absoluto para as fífias, para as contradições".
As duas personagens têm em comum o pendor para a filosofia; o modo severo como examinam os outros (sobretudo os moradores do prédio) e a si mesmas; a constatação da falta de sentido da vida e do absurdo inerente ao existir, um fascínio pelo Japão (a adolescente, por causa dos mangás; a mulher madura, por causa do cinema de Yasujiro Ozu); a aversão, ora pela fatuidade, ora pelo materialismo bruto dos ricos (no caso de Paloma, dirigida até contra sua família); e, por fim, a estima e a consideração especiais pela arte, conjugada a um olhar estetizante sobre o mundo. A aproximação entre elas, contudo, leva páginas e páginas para acontecer, proporcionada em grande medida pela chegada de um novo morador ao prédio. Já falo disso.
A autora de A elegância do ouriço, Muriel Barbery, é professora universitária de filosofia, o que, naturalmente, leva suas narradoras a carregar de reflexões "cabeça" os diários que escrevem, sem comprometer, contudo, o ritmo da narrativa. Reflexões magníficas como esta, de Renée:
Ou esta outra, também estupenda, de Paloma:
Muriel Barbery foi muito sagaz assentando como condutoras da história uma autodidata com mais de 50 anos e uma adolescente tão circunspecta quanto inteligente. A visão de mundo melancólica e pé-no-chão de quem já viveu bastante (Renée), associada ao aprendizado feito por conta própria, livra a voz narrativa da esterilidade e da aridez da filosofia de cunho mais acadêmico. E o destemor típico dos muito jovens (mesmo numa garota pouco expansiva como Paloma) faz com que afirmações um tanto grandiloquentes sejam "perdoadas" pelo leitor e não pareçam antipáticas e afetadas.
A narrativa ganha outro andamento (e até uns toques de humor) quando um novo personagem passa a residir no prédio. Um senhor japonês de quem Renée e Paloma ficarão amigas. É, aliás, numa conversa com ele que a adolescente elabora uma bela analogia, propiciando, inclusive, o título do livro.
Tenho mais a dizer sobre A elegância do ouriço. Farei-o, todavia, noutras ocasiões. Por ora, encerro a postagem com esta demolidora reflexão de Renée:
São duas narradoras, alternando-se ao longo do livro: Renée Michel e Paloma Josse. A primeira é a concierge de um prédio de apartamentos em Paris; a segunda é uma estudante de colégio, filha de um político importante e moradora desse edifício habitado por endinheirados. Renée tem 54 anos, sempre foi pobre e, segundo sua própria avaliação, feia e sem atrativos. Apesar de sua função humilde e insignificante e de corresponder "tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge" - na aparência e no modo como, dissimuladamente, relaciona-se com seus patrões -, guarda uma inteligência rara e é muito culta. Por sua vez, Paloma, adolescente de 12 anos, apesar de viver em meio a privilégios, toma uma decisão dramática: suicidar-se antes de seu próximo aniversário. Superdotada, mas retraída e discreta, ela supõe-se um fruto da contradição, "porque, por uma razão desconhecida, [é] hipersensível a tudo o que é dissonante, como se tivesse um tipo de ouvido absoluto para as fífias, para as contradições".
As duas personagens têm em comum o pendor para a filosofia; o modo severo como examinam os outros (sobretudo os moradores do prédio) e a si mesmas; a constatação da falta de sentido da vida e do absurdo inerente ao existir, um fascínio pelo Japão (a adolescente, por causa dos mangás; a mulher madura, por causa do cinema de Yasujiro Ozu); a aversão, ora pela fatuidade, ora pelo materialismo bruto dos ricos (no caso de Paloma, dirigida até contra sua família); e, por fim, a estima e a consideração especiais pela arte, conjugada a um olhar estetizante sobre o mundo. A aproximação entre elas, contudo, leva páginas e páginas para acontecer, proporcionada em grande medida pela chegada de um novo morador ao prédio. Já falo disso.
A autora de A elegância do ouriço, Muriel Barbery, é professora universitária de filosofia, o que, naturalmente, leva suas narradoras a carregar de reflexões "cabeça" os diários que escrevem, sem comprometer, contudo, o ritmo da narrativa. Reflexões magníficas como esta, de Renée:
"Nesses dias, em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.
Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.
Então tomamos uma xícara de chá ou assistimos a um filme de Ozu, para nos retirarmos da ronda das justas e batalhas que são os costumes reservados de nossa espécie dominadora, e darmos a esse teatro patético a marca da Arte e de suas obras maiores"
Ou esta outra, também estupenda, de Paloma:
"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Ronsard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem".
Muriel Barbery foi muito sagaz assentando como condutoras da história uma autodidata com mais de 50 anos e uma adolescente tão circunspecta quanto inteligente. A visão de mundo melancólica e pé-no-chão de quem já viveu bastante (Renée), associada ao aprendizado feito por conta própria, livra a voz narrativa da esterilidade e da aridez da filosofia de cunho mais acadêmico. E o destemor típico dos muito jovens (mesmo numa garota pouco expansiva como Paloma) faz com que afirmações um tanto grandiloquentes sejam "perdoadas" pelo leitor e não pareçam antipáticas e afetadas.
A narrativa ganha outro andamento (e até uns toques de humor) quando um novo personagem passa a residir no prédio. Um senhor japonês de quem Renée e Paloma ficarão amigas. É, aliás, numa conversa com ele que a adolescente elabora uma bela analogia, propiciando, inclusive, o título do livro.
Tenho mais a dizer sobre A elegância do ouriço. Farei-o, todavia, noutras ocasiões. Por ora, encerro a postagem com esta demolidora reflexão de Renée:
"Qual é essa guerra que travamos, na evidência de nossa derrota? Manhã após manhã, já exaustos com todas essas batalhas que vêm, reconduzimos o pavor do cotidiano, esse corredor sem fim que, nas derradeiras horas, valerá como destino por ter sido tão longamente percorrido. Sim, meu anjo, eis o cotidiano: enfadonho, vazio e submerso em tristezas. As alamedas do inferno não são estranhas a isso; lá caímos um dia por termos ficado ali muito tempo. De um corredor às alamedas: então se dá a queda, sem choque nem surpresa. Cada dia reatamos com a tristeza do corredor e, passo após passo, executamos o caminho da nossa sombria danação".
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¹ BARBERY, Muriel. A elegância do ouriço. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [Tradução de Rosa Freire d'Aguiar]
BG de Hoje
Lançado neste ano mesmo, o álbum French Touch, de CARLA BRUNI, reúne 11 covers de hits cantados em inglês. Ouvi algumas das faixas. Não gostei de sua versão para Highway to Hell (AC/DC), nem a feita para The Winner Takes It All (ABBA). Por outro lado, adorei Enjoy The Silence (Depeche Mode) e, principalmente, a vibração diferente imprimida em Miss You (The Rolling Stones). Ouça e depois me fale.