quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Os pensamentos de Renée e Paloma


Um tempinho atrás estava lendo a postagem de um blog cuja autora mencionara o filme Le hérisson. Achei tão cativante a ponto de, mesmo não compreendendo patavina de francês (pelo menos não ainda), ficar com muita vontade de assisti-lo. Até o momento não tive oportunidade.

Felizmente, porém, consegui chegar ao romance ¹ (traduzido no Brasil) em que se baseia o longa-metragem. E, a propósito, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, é um romance muito bom.

São duas narradoras, alternando-se ao longo do livro: Renée Michel e Paloma Josse. A primeira é a concierge de um prédio de apartamentos em Paris; a segunda é uma estudante de colégio, filha de um político importante e moradora desse edifício habitado por endinheirados. Renée tem 54 anos, sempre foi pobre e, segundo sua própria avaliação, feia e sem atrativos. Apesar de sua função humilde e insignificante e de corresponder "tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge" - na aparência e no modo como, dissimuladamente, relaciona-se com seus patrões -, guarda uma inteligência rara e é muito culta. Por sua vez, Paloma, adolescente de 12 anos, apesar de viver em meio a privilégios, toma uma decisão dramática: suicidar-se antes de seu próximo aniversário. Superdotada, mas retraída e discreta, ela supõe-se um fruto da contradição, "porque, por uma razão desconhecida, [é] hipersensível a tudo o que é dissonante, como se tivesse um tipo de ouvido absoluto para as fífias, para as contradições".

As duas personagens têm em comum o pendor para a filosofia; o modo severo como examinam os outros (sobretudo os moradores do prédio) e a si mesmas; a constatação da falta de sentido da vida e do absurdo inerente ao existir, um fascínio pelo Japão (a adolescente, por causa dos mangás; a mulher madura, por causa do cinema de Yasujiro Ozu); a aversão, ora pela fatuidade, ora pelo materialismo bruto dos ricos (no caso de Paloma, dirigida até contra sua família); e, por fim, a estima e a consideração especiais pela arte, conjugada a um olhar estetizante sobre o mundo. A aproximação entre elas, contudo, leva páginas e páginas para acontecer, proporcionada em grande medida pela chegada de um novo morador ao prédio. Já falo disso.

A autora de A elegância do ouriço, Muriel Barbery, é professora universitária de filosofia, o que, naturalmente, leva suas narradoras a carregar de reflexões "cabeça" os diários que escrevem, sem comprometer, contudo, o ritmo da narrativa. Reflexões magníficas como esta, de Renée:

"Nesses dias, em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.

Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.

Então tomamos uma xícara de chá ou assistimos a um filme de Ozu, para nos retirarmos da ronda das justas e batalhas que são os costumes reservados de nossa espécie dominadora, e darmos a esse teatro patético a marca da Arte e de suas obras maiores"

Ou esta outra, também estupenda, de Paloma:

"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Ronsard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.

Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?

Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem".

Muriel Barbery foi muito sagaz assentando como condutoras da história uma autodidata com mais de 50 anos e uma adolescente tão circunspecta quanto inteligente. A visão de mundo melancólica e pé-no-chão de quem já viveu bastante (Renée), associada ao aprendizado feito por conta própria, livra a voz narrativa da esterilidade e da aridez da filosofia de cunho mais acadêmico. E o destemor típico dos muito jovens (mesmo numa garota pouco expansiva como Paloma) faz com que afirmações um tanto grandiloquentes sejam "perdoadas" pelo leitor e não pareçam antipáticas e afetadas.

A narrativa ganha outro andamento (e até uns toques de humor) quando um novo personagem passa a residir no prédio. Um senhor japonês de quem Renée e Paloma ficarão amigas. É, aliás, numa conversa com ele que a adolescente elabora uma bela analogia, propiciando, inclusive, o título do livro.

Tenho mais a dizer sobre A elegância do ouriço. Farei-o, todavia, noutras ocasiões. Por ora, encerro a postagem com esta demolidora reflexão de Renée:

"Qual é essa guerra que travamos, na evidência de nossa derrota? Manhã após manhã, já exaustos com todas essas batalhas que vêm, reconduzimos o pavor do cotidiano, esse corredor sem fim que, nas derradeiras horas, valerá como destino por ter sido tão longamente percorrido. Sim, meu anjo, eis o cotidiano: enfadonho, vazio e submerso em tristezas. As alamedas do inferno não são estranhas a isso; lá caímos um dia por termos ficado ali muito tempo. De um corredor às alamedas: então se dá a queda, sem choque nem surpresa. Cada dia reatamos com a tristeza do corredor e, passo após passo, executamos o caminho da nossa sombria danação".
__________
¹ BARBERY, Muriel. A elegância do ouriço. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [Tradução de Rosa Freire d'Aguiar]

BG de Hoje

Lançado neste ano mesmo, o álbum French Touch, de CARLA BRUNI, reúne 11 covers de hits cantados em inglês. Ouvi algumas das faixas. Não gostei de sua versão para Highway to Hell (AC/DC), nem a feita para The Winner Takes It All (ABBA). Por outro lado, adorei Enjoy The Silence (Depeche Mode) e, principalmente, a vibração diferente imprimida em Miss You (The Rolling Stones). Ouça e depois me fale.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Falou e disse...

"O profissionalismo da filosofia, sua transformação em uma disciplina acadêmica, foi um mal necessário, mas que encorajou tentativas de tornar a filosofia uma quase-ciência autônoma. Essas tentativas deveriam ser combatidas. Quanto mais a filosofia interage com outras atividades humanas - não apenas com a ciência natural, mas também com a arte, a literatura, a religião e a política - mais relevante para a política cultural ela se torna - e, portanto, mais útil. Quanto mais ela luta por autonomia menos atenção ela merece".*

* RORTY, Richard. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 13 [Tradução de João Carlos Pijnappel]

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

"No fim das contas, quem está preocupado realmente com esse país?"

Este blog trata, na maior parte do tempo, de literatura. Há bastante espaço também para a música pop. E para a filosofia, claro.

São meus principais interesses.

Não significa, entretanto, que eu não me importe com outros assuntos. De vez em quando, só para exemplificar, trato aqui de educação e ensino. Outro tópico, a política - em seu sentido lato -, já perpassou muitas postagens também, embora raramente fosse o tema preponderante, devo dizer. E já que falei em política, esta, como sabemos, tem um outro sentido, mais reduzido, que é, porém, geralmente o primeiro a vir à cabeça das pessoas quando usam o termo, relacionado às organizações partidárias, à disputa eleitoral e aos profissionais que ascendem a cargos no poder público por meio do voto. Contudo, dadas a mesquinhez e as vilanias da maioria dos governantes, parlamentares e (é preciso hoje citá-los, mais do que nunca) magistrados brasileiros, nunca tive qualquer disposição para abordar o tópico nessa perspectiva restrita, pelo menos não aqui no Besta Quadrada

Só que o Brasil atravessa um momento, a meu ver, preocupante.

Por essa razão, em março deste ano, decidi republicar aqui (e não tenho o costume de reproduzir integralmente artigos de terceiros no blog) um texto escrito pelo filósofo e professor da USP Vladimir Safatle que capturava bem uma parte da minha apreensão. Hoje senti a mesma necessidade de republicação ao ler o que escreveu Tico Santa Cruz, frontman da banda Detonautas. As observações do cantor apareceram primeiro no seu perfil do Facebook, mas eu cheguei a elas através do Diário do Centro do Mundo.

Devo confessar que pouco ouvi as músicas do Detonautas, mas sempre estive familiarizado com o posicionamento político de Santa Cruz. No texto abaixo, de forma muito simples, direta, ele registra alguns pontos de vista com os quais tenho tanta concordância que não vi outra alternativa a não ser reproduzi-lo na íntegra (as únicas - pequenas - alterações que fiz foram na pontuação e na ortografia) .


"É verdade, sim, minhas opiniões políticas nessa página [do Facebook] importam mais do que o meu trabalho musical. A página do Detonautas Roque Clube tem mais de um milhão de seguidores e lá quem está, está apenas pela música.

Também é verdade, sim, que por conta da minha insistente defesa contra o impeachment, perdi muitos fãs, me tornei uma pessoa estigmatizada e até malquista por muitos. Mas também é verdade que passei a ser admirado por outros que jamais se interessaram por mim ou pelo meu trabalho musical e amado por gente que não sabia quem eu era .

Só que eu sou músico! Quem paga minhas contas é minha música! O que eu amo fazer está relacionado a arte e como existe uma imaturidade GIGANTESCA em relação ao discernimento entre minha pessoa pública – Tico Santa Cruz, artista e CIDADÃO – e Tico Santa Cruz, vocalista do Detonautas – quem acabou se prejudicando foi o Detonautas!

Não por falta de público! Ao contrário, nosso público aumentou – porque acumulou uma parcela nova de pessoas que passaram a me acompanhar por conta dos meus posicionamentos e mantivemos a maioria dos fãs que sempre gostaram de nossas canções! Mas é verdade, sim, que algumas portas foram fechadas, alguns contratantes passaram a evitar a banda por minha causa e alguns veículos de comunicação importantes passaram a ignorar nossas produções.

Mas fazer o quê?

Muitos artistas que se omitiram ou que foram favoráveis a todo esse processo absurdo que destruiu nossa democracia e criou essa legião de monstrinhos que andam pelas redes sociais ofendendo tudo e todos que não concordam com eles, tentando censurar museus, peças de teatro, atacando ícones da música popular brasileira, querendo associar a cultura à vagabundagem e a outros absurdos, invadindo palestras, queimando 'bruxas' e 'lutando pela moral, ética e pela família, em nome de Deus e para proteger 'nossas crianças' ', agora estão sentindo na pele o que foi abrir a Caixa de Pandora dessa nação.

Com esses seres, não há diálogo, não há conversa, não há nada que possa ser feito, porque foram tomados pelo pânico, pela histeria, pela hipnose de um perigoso comportamento que até a própria imprensa que participou e estimulou tudo isso que vivenciamos nos últimos anos já percebeu que algo saiu do controle. Essa gente… Esquece, precisam de intervenção psiquiátrica apenas.

Temos que evitar é que uma parte ainda grande da sociedade que consegue raciocinar o MÍNIMO perceba que estamos caminhando para um movimento perigoso. Alertá-los de que foram manipulados e que agora precisam garantir que o processo democrático brasileiro retorne no ano de 2018.

Essa pauta MORAL que estamos assistindo por nossas redes sociais é apenas uma maneira de convergir toda essa energia de ódio para um lugar qualquer, já que o papo da luta contra a corrupção FALIU.

Explico o porquê.

O MBL e adjacências são cúmplices desse governo bandido atual, então não vão liderar nenhuma manifestação contra todos os absurdos que estamos vendo, ouvindo e vivendo.

E ALGUNS setores, ligados principalmente ao PT, querem mais é que Temer acabe com o país para que o povo sinta na pele todo este retrocesso e então creia que a volta de Lula seja a solução.

Logo as massas – tanto de 'um lado' quando do 'outro lado' – não são mobilizadas para que as ruas sejam tomadas e esse governo seja derrubado.

A esta altura do campeonato, com Temer já desmoralizado, o PSDB – ator principal através de AÉCIO NEVES – que agora todos sabem quem é – se afogando junto com o PMDB nessa lama e a formação de uma nova conjuntura para 2018, para a classe política de modo geral, principalmente a quem almeja o poder, retirar um presidente já não faz mais sentido. Deixa o crápula lá e vamos costurar nossas alianças e possibilidades para tomarmos o poder em 2018!

No fim das contas, quem está preocupado realmente com esse país? Com as pessoas desamparadas? Com os desempregados? Com as famílias que estão se desfazendo em meio à crise? Com as pessoas que estão se suicidando em meio ao desespero? Com as facções criminosas que cada dia ganham mais poder e assustam os cidadãos e cidadãs brasileiras com o avanço na criminalidade? Com os hospitais caindo aos pedaços, médicos, professores, servidores públicos, um monte de gente sem receber salários enquanto AS LIDERANÇAS estão se articulando para lutar pelo poder nas próximas eleições!!!

O Brasil melhorou depois do impeachment?

O governo que assumiu e seus aliados – incluindo os partidos que perderam as eleições – conseguiram erguer nossa nação?

Os corruptos foram todos presos? A corrupção acabou ou ficou evidente que está cada vez mais descarada?

Essa sucessão de erros e manobras aos quais todos nós fomos submetidos no fim das contas serviu a quem?

Se você não foi contaminado completamente pelo ódio e consegue raciocinar o mínimo, mesmo que não concorde comigo na maioria das pautas, há de concordar que foi um FRACASSO COMPLETO todo esse movimento que foi perpetrado em nome da MENTIRA da 'luta contra a corrupção'!

Ah mas a Dilma, o PT, os 13 anos que ficou no poder….

É meu amigo, minha amiga… Enquanto você consumia, viajava, comprava carro, casa, melhorava de vida, não pensou em nada disso. Quando a economia começou a desandar e a brecha foi dada para que todo esse processo fosse iniciado, infelizmente esse Congresso NOJENTO, e toda essa irresponsabilidade com nossas famílias e nossa indignação com a impunidade acabaram sendo usadas para benefício daqueles que sempre comandaram esse país, inclusive quando o PT era governo.

Está na hora de começarmos a perceber que somos apenas peões nesse tabuleiro. Se quisermos mudar algo no ano que vem precisamos pensar seriamente em que TIPO de congresso vamos montar e, dessa gente que se apresentará como opção, quem realmente está mais preparado para reconduzir o Brasil para o crescimento.

Seja você de direita ou esquerda ou de nenhuma das duas, pense bem em qual será seu papel, para depois não ficar por aí histérico e cheio de medo!

Estou cada vez mais certo de que precisamos parar com essas discussões estéreis e rasas nas redes sociais e convergir para pessoas SÉRIAS – seja do espectro político a qual pertencem – e que queiram realmente trabalhar acima de tudo pelo desenvolvimento desse país e não só pelo PODER.

Uma vez por semana vou propor reflexões políticas; nos demais dias, vou trabalhar minha música e minha banda, que é o que realmente vim fazer nesse planeta!

Se você chegou até aqui, convido-o a estar comigo também para além da política!

Bom dia!"

BG de Hoje

Seria GABRIEL o PENSADOR um daqueles artistas do tipo "ame ou odeie"? Pergunto porque conheço tanto pessoas que execram seu trabalho quanto pessoas que adoram. Pessoalmente, não morro de amores pela sua música mas também não detesto (peraí, pra ser sincero, preciso admitir que, definitivamente, não suporto 2345meia78 e Festa da música tupiniquim). Uma de suas melhores faixas, penso eu, é Até quando?. Letra direta, bem construída, criticando a apatia que parece estar inscrita no nosso DNA de brasileiro. A pegada mais rock também merece ser destacada; há uma levada que me lembra muito I'd love to change the world, do Ten Years After (não sei se foi algo intencional na gravação). E o clipe, de uma simplicidade tremenda, é muito bom.