sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Quatro poemas de José Paulo Paes

Um pouco hesitante, torno a escrever neste blog, após quatro meses de inatividade. A ideia inicial era recomeçar com um tópico sobre o qual venho refletindo há bastante tempo (deixei alguma coisa registrada a esse respeito na última postagem em 2014): o suicídio. Porém, vou preferir hoje falar de quatro poemas de um de meus autores preferidos - José Paulo Paes - cuja aproximação temática entre os textos muito me interessa.

Vamos ao primeiro poema, Ivan Ilitch, 1958*:

"Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.

Gente, trânsito,
Sol, bom-dia,
Escritório, 
Relatório,
Telefones,
Almoço, arroto,
Contas, desgosto,
Adeus, adeus.

Clube, vento,
Grana, tênis,
Ducha, alento,
Bar, escândalos,
Pedro, Paulo,
Mulher de Pedro,
Mulher de Paulo,
Adeus, adeus.

Lar, esposa,
Filhos, pijama,
Janta, living,
Jornal, cismares,
Tricô, vagares,
Hiato, ausências,
Bocejo, escada,
Adeus, adeus.

Quarto, cama,
Glândulas. êxtase,
Dois em um,
Dois em nada,
Dever cumprido, 
Luz apagada,
Adeus, adeus.

Horas, dias,
Meses, anos,
Cãs, enganos,
Desenganos,
Vácuo, náusea,
Indiferença,
Cipreste, olvido
Há Deus? adeus".

É evidente que o título do poema faz referência à clássica novela A morte de Ivan Ilitch, do escritor russo Liev (ou Leon) Tolstói - mas, digamos, "ambientada" agora no final dos anos 1950 e não mais na metade do século XIX. O poema e a novela constroem-se sobre um dos questionamentos mais antigos dirigidos pela humanidade a si própria: tem a vida algum sentido?

Em A morte de Ivan Ilitch, a narrativa se inicia no velório do protagonista, passando, a seguir, para o relato de sua juventude e velhice, nada excepcionais ambas. Em Ivan Ilitch, 1958, por sua vez, os versos finais de cada estrofe indicam ao leitor que alguém também se despede da vida e rememora sua existência saturada de hábitos comuns, gestos e objetos banais. Ambos os textos me fazem pensar num arrependimento profundo.

O segundo poema é Declaração de bens:

"meu deus
minha pátria
minha família

minha casa
meu clube
meu carro

minha mulher
minha escova de dentes
meus calos

minha vida
meu câncer
meus vermes"

"Do mundo nada se leva", diz a sabedoria popular, com sua habitual falta de poesia. De todo modo, não me parece ser outra coisa o que diz José Paulo Paes nessa composição. Assemelha-se a Ivan Ilitch, 1958 por deixar entrever a vanidade - inerente a muitos de nossos esforços, convicções e realizações - da qual, rotineiramente, não nos apercebemos.

O terceiro texto é o soneto em heptassílabos Sísifo:


"hoje agora me decido
depois de amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito.

deuses onde? céu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde

e eu sísifo tardotriste
a tilintar as correntes
de dilemas renitentes

lá me vou sem vez nem voz
rolar a pedra dos mudos
pela montanha dos sós".

A figura mitológica que empresta seu nome ao poema também serviu de mote para um instigante ensaio de Albert Camus** (livro a ser discutido no blog mais adiante). Para o escritor franco-argelino, Sísifo é o "herói absurdo". Sua tragédia nos diz algo significativo precisamente no momento em que ele regressa do alto do monte para mais uma vez empurrar a pedra que acabara de rolar: "Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida", escreve Camus. Encontrará ele algum sentido para a sua vida?

Por fim,

"PISA: A TORRE

em vão te inclinas pedagogicamente
o mundo jamais compreenderá a obliquidade dos bêbados ou o mergulho dos suicidas"


Tai algo que desejaria compreender. Ou ao menos refletir a respeito. Tentarei fazer isso a partir da próxima semana.
__________
* PAES, José Paulo. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

** CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012 [ Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch]

BG de Hoje

LENY ANDRADE não é das minhas intérpretes preferidas. Mas outro dia, numa das pouquíssimas emissoras de rádio de boa qualidade aqui de BH (a Rádio UFMG Educativa), ouvi essa versão de Muito obrigado, do Djavan, em que a cantora está acompanhada pelo violonista Romero Lubambo. Sensacional!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Falou e disse...

"Minha avaliação é que os currículos, atualmente, estão inchados, do nível fundamental à universidade (e há os que querem mais: educação para o trânsito, educação sexual etc.). Cursos de pedagogia discutem mais poder (Foucault) do que estudos dos campos da fonologia e sociolinguística, cruciais para a alfabetização. Cursos de letras introduzem uma dúzia de conceitos (interessantes) por semana, mas formam alunos que não leem e, fundamentalmente, não escrevem. Há uma mania de introduzir 'novidades' pedagógicas e pouca prática do que é fundamental: ler e escrever (no caso de língua portuguesa). A humanidade já sabe como fazer isso, mas não faz, assim como sabe manter a forma, mas prefere seguir uma dieta por semana.

Os cursos de letras deveriam conseguir que os formandos escrevessem e lessem bem. Com isso, inclusive, o restante será aprendido com maior facilidade. Claro, devem aprender a analisar fatos da língua. Por exemplo, diante de erros de grafia, devem conseguir entender de onde vieram. Nada contra ler Foucault ou Derrida, mas quantas resenhas se escrevem e como os professores as leem?". *

* POSSENTI, Sírio. Ensino da língua (entrevista para a revista Presença Pedagógica. v. 20, n. 120, nov./dez. 2014. p. 11)