sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O livro, em sua materialidade



Pessoas de meu convívio costumam achar engraçado ou mesmo se espantam com o fato de eu ainda encomendar e comprar CD's e livros nas (antigamente) chamadas "casas do ramo".

Tenho coleções modestas, é verdade, mas que muito me satisfazem e às quais vou adicionando novos exemplares, pacientemente, no intuito de aumentá-las. Foi assim que me habituei a obter esses produtos culturais. Pode até ser um comportamento antiquado e conservador, ainda mais em tempos de "livre acesso". Prefiro continuar assim, entretanto.

Outro dia, refletindo sobre essa necessidade de experimentar a posse dos objetos que valorizo, acabei também pensando sobre os prognósticos recorrentes em torno do "fim do livro". E decidi reler um texto no qual o autor se posiciona de forma contrária ao coro dos "biblioclastas".

No ensaio intitulado Do fim da cultura ao fim do livro*, Sérgio Paulo Rouanet faz a seguinte pergunta:

"Seria, realmente, a crise do livro que tanto preocupa nossos intelectuais ou [é] algo que se encontra por detrás dessa crise, a crise da cultura da qual a crise do livro seria, senão um epifenômeno, pelo menos um sintoma?"

Para ele, previsões sobre o futuro do livro - sejam elas pessimistas ou não - deveriam estar ligadas ao "destino da cultura para cuja formação ele [o livro] constitui o veículo mais prestigioso".

O ensaio discute aspectos cruciais envolvendo a suposta diferença entre Cultura e Civilização ; o embate cultura de massa X "alta cultura" (termo que Rouanet emprega sem as aspas) ; a globalização e o lugar do multiculturalismo, entre outros assuntos. Recomendo vivamente a leitura integral do artigo. Para os objetivos desta postagem, porém, destacarei estas passagens:

"Todos nós, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros".
"Como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fascinados pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias e informações".
"Sim, somos filhos da ' galáxia de Gutenberg ' e não poderíamos aceitar facilmente a passagem para outra galáxia [...] Que seria de nós, se a Internet matasse o livro?

E, por fim, diretamente ligada à citação anterior: "Levado às últimas consequências, esse comportamento é, certamente, irracional".

Sérgio Paulo Rouanet acerta ao perceber um componente irracionalista na inaceitação da mudança de suporte - mudança essa que não é a ameaça real à cultura livresca. E acerta também ao alertar para o lado "fetichista" existente no hábito de colecionar livros. Não obstante, minha lista de encomendas só faz aumentar...

. . . . . .

No conto Bibliomania**, de Gustave Flaubert,  é realçado um outro aspecto - sem dúvida mais sinistro - relacionado à valorização dos livros apenas em sua dimensão material, no momento de formar e manter uma coleção.

Li essa história recentemente, mas ouvi falar dela há um certo tempo, no blog Nenhum lugar, de Milena Magalhães. Naquela ocasião, Milena observou que "possuir livros, constituir uma biblioteca, tem muito a ver com aquilo que Caetano Veloso chama de 'amor tátil'. É um fetiche, uma assombração, uma obsessão, escravidão até". E ao final, ela pergunta se algum leitor, ao menos uma vez, não esteve no lugar do personagem central do conto.

Escrito por um Flaubert ainda adolescente, Bibliomania apresenta-nos Giacomo, livreiro de Barcelona, "um desses seres satânicos e bizarros, tais como os que Hoffmann desenterrava em seus sonhos". Quando se dava bem num leilão de obras raras, contudo, voltava para casa animado ; "pegava o livro querido, acalentando-o com os olhos, olhava-o e amava-o como um avarento, o seu tesouro, um pai, sua filha, um rei, sua coroa".

Essa paixão de Giacomo o conduzirá a um estado doentio e mórbido; não se interessava pelo conteúdo dos objetos que possuía. Mal sabendo ler,

"Ele amava um livro porque era um livro : amava seu cheiro, seu formato, seu título. O que ele amava no manuscrito era sua velha data ilegível, as letras góticas, bizarras e estranhas, as pesadas dourações que carregavam os desenhos ; eram páginas cobertas de poeira, poeira da qual ele aspirava, com delícia, o perfume doce e suave. Era aquela bela palavra finis, rodeada de dois cupidos sobre um laço; apoiando-se numa fonte gravada num túmulo ou repousando numa cesta entre as rosas, as maçãs douradas e os buquês azuis".

. . . . . .

Os livros, em sua materialidade, são, às vezes, objetos fascinantes e encantadores e esse é um fator importante - mas não determinante, na maioria dos casos - para que alguém se disponha a colecioná-los. Mas esse mesmo fator pode também - e com mais frequência do que se imagina - inspirar, inclusive no plano da realidade, figuras como o sombrio livreiro de Barcelona descrito ficcionalmente por Flaubert.

* ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003, p. 57-77

** FLAUBERT, Gustav. Bibliomania. In: ____________. Gothica: contos juvenis de Gustave Flaubert. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2006 [tradução de Raquel de Almeida Prado e organizado por Bruno Berlendis de Carvalho]

P.S. Só depois de terminar o texto desta postagem é que fui ler interessantíssima matéria na Folha de S. Paulo (Caderno Tec - 02 nov. 2011) falando sobre herança digital; ou seja, segundo a reportagem, "os bens que só existem on-line, guardados nos servidores, via internet", como vídeos, livros, músicas, fotos, e-mails e documentos. Pelo visto, não se deixa de colecionar com o advento da web...

BG de Hoje

A letra desta canção representa bem minha vidinha medíocre ; o vídeo que a acompanha lembra o assunto discutido na postagem: NINE INCH NAILS, Every day is exactly the same (link para o vídeo)