Carolina Maria de Jesus, autora de um dos mais extraordinários livros de nossa Literatura* - verdadeiro ponto fora da curva - dizia que "a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos".
Em sua obra mais conhecida, podemos ler, com sua prosa característica, o seguinte trecho:
"Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos".
Quando Quarto de despejo veio a público, causou espanto. Como uma mulher pobre, com tão pouca escolaridade, produzira texto tão fora do comum? Logicamente, havia o talento. Mas havia também o olhar de dentro, de quem viveu tudo aquilo. A narradora ganhava autenticidade, respeito. Para falar da pobreza, tal como ela efetivamente existe, é preciso tê-la experimentado com intensidade, ora com amargura, ora com resistência.
Quarto de despejo merece uma análise mais aprofundada, que virá a seu tempo. Hoje, contudo, escrevo sobre Becos da memória**, de Conceição Evaristo que, na minha opinião, é tributário do livro de Carolina Maria de Jesus.
Falava em autenticidade da narradora. De onde ela emana? Da memória desta. Ainda que não seja declaradamente autobiográfico, no romance de Conceição Evaristo se lê:
"Hoje, a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado!"
Mas há diferenças nos modos de narrar. Carolina Maria de Jesus não foi além do segundo ano primário e sua escrita revela esse fato. Conceição Evaristo, por sua vez, felizmente teve vida estudantil mais prolongada (e, anos após a elaboração desse livro, atingiria o pico da formação acadêmica). Escolaridade não é sinônimo de talento literário, sabe-se. Contudo, a experiência escolar fornece ao escritor maiores recursos textuais; Conceição Evaristo, para além de sua habilidade artística, soube utilizá-los. Observe-se, por exemplo, a descrição de um festival de futebol de várzea:
"Em volta do campo, fincavam-se bandeirinhas armadas em um varal de estacas de bambu. A garrafa de cachaça rolava de mão em mão, algumas cervejas também. Miúdos de porco eram sempre servidos. Muita gente criava porquinho no chiqueiro, no fundo do barraco. A bebida ficava sempre por conta daqueles que, no momento, tivessem mais. Donos de botequim e de bitaquinha sempre davam alguma. A criançada ganhava balas, pipocas e pirulitos. Os heróis ali muitas vezes ganhavam mulheres. Brigas, sempre, só de faca; tiro, às vezes, saía algum. Muito raro alguma morte. Se morte havia, o jogo, a bola não tinham culpa. Existiam outros motivos; quase sempre mulher".
São muitas personagens, cada qual com seu drama, sua dor, seu calor. Particularmente emocionante é a história da empregada doméstica Ditinha e seu filho menino-homem, Beto.
Becos da memória foi terminado no final dos anos 1980, mas só ganhou edição comercial quase vinte anos depois. Conceição Evaristo, acertadamente, observa, na apresentação do livro, que aquele tipo de favela, descrito no romance, não mais existe.
Contudo, indago: houve alguma modificação essencial na condição de vida, do ponto de vista econômico, para boa parte da população negra brasileira durante esse tempo?
A escritora defende a tese, adotada por outros também. de que a favela é, na verdade, uma "atualização" da antiga senzala. E ainda que as comunidades sejam bem distintas do que eram há alguns anos, certos fatos permanecem:
"Quando descíamos o morro, lá na praça, rapazes alegres, bem vestidos, brincavam, conversavam ao sol. Eram tidos como jovens contestadores, estudantes. Os filhos de Ana do Jacinto, jovens vagabundos, perturbadores, marginais".
Falar de um povo. De seu povo. Do nosso povo. Conceição Evaristo assume essa imensa responsabilidade. E o faz com dignidade, força e talento.
* JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.
** EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006