Alguns livros têm a capacidade de transformar nossas vidas, tornando-nos pessoas completamente diferentes do que éramos antes da leitura deles. No meu caso, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley*, desempenhou esse papel essencial, junto com outras obras, muitos anos atrás. Em uma de suas mais marcantes cenas - o diálogo entre John (o Selvagem) e o Administrador Mundial Mustafá Mond - lemos o seguinte trecho, no final do cap. 18
" - Mas eu gosto dos inconvenientes.
- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
- Em suma - disse Mustafá Mond - o senhor reclama o direito de ser infeliz.- Pois bem, seja - retrucou o Selvagem em tom de desafio - Eu reclamo o direito de ser infeliz.- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.Houve um longo silêncio.
- Eu os reclamo todos - disse finalmente o SelvagemMustafá Mond encolheu os ombros.- À vontade - respondeu."
Admirável mundo novo, como se sabe, é um vigoroso alerta para os riscos da crença absoluta (dogmática) no progresso científico e tecnológico. E, apesar de não ter tantas restrições assim ao modo de pensar de Mustafá Mond, sou obrigado a reconhecer que a sociedade futurista lá mostrada é assustadora, com sua estrutura rigorosamente planejada de castas, sua eugenia, sua aversão às manifestações artísticas, num estado totalitarista em que "todos amam a servidão". Mesmo considerando-me um sujeito apegado à racionalidade, acuso o golpe toda vez que releio o romance. Além disso, o livro demonstra o quanto existe de infantilidade e covardia na postura adotada por tantas pessoas ao evitar, a todo custo, o contato com aquilo que consideram fonte de desprazer e desgosto, mas que é sempre humano, demasiada e inevitavelmente humano.
Mudando de assunto, mas não completamente.
O cantor e compositor Zeca Baleiro, poucas semanas atrás, na seção Última Palavra, da revista Istoé**, expôs um interessante ponto de vista a respeito de uma lei contra o fumo em vigor em São Paulo. O nome do artigo não poderia ser melhor: Admirável mundo limpo. Escreve o artista maranhense:
"A questão é: por trás dessa e de outras leis, no bojo dessa cruzada pela assepsia pública, parece haver um desejo inconsciente (ou não!) da humanidade de sanear, de limpar o mundo de tudo que é torto, sujo, do que sugere desordem, desarmonia, como se o mundo pudesse algum dia ser um lugar plenamente limpo e confortável, livre de contágios e impurezas. Quando digo 'limpar o mundo', isso inclui desde fumantes até carros velhos, pessoas pobres, gente malvestida, atitudes 'inadequadas' e falas politicamente incorretas".
Por fim, Baleiro observa "que a vida é suja e para limpá-la, criamos leis que nos protejam das ameaças, que nos blindem dos perigos, da doença, da contaminação". Como se fosse possível escapar das pequenas e grandes "armadilhas" que nos são preparadas pela natureza e pela condição humana...
Dentro de cada indivíduo, convivem, numa orgia furibunda, um lado beato e um lado cafajeste. Potencialmente, todos podemos ser monstros ou santos - e, no fundo, qual é a verdadeira diferença? A maneira que escolhemos para viver (ou sobreviver, simplesmente) - o que fará ou não parte de nossa trajetória contínua em busca de humanização - nos mostra que podemos ser (e, para ser franco, quase sempre somos) tão estúpidos quanto qualquer um. Podemos ser - valendo-me das personagens de Admirável mundo novo - o Selvagem, Mustafá Mond ou uma mistura dos dois.
Volto ao tema nas próximas postagens.
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* HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 26 ed. São Paulo: Globo, 2000 [tradução de Vidal de Oliveira e Lino Valandro]
** BALEIRO, Zeca. Admirável mundo limpo. Istoé, São Paulo. Ano 32, n. 2075, p. 122, ago. 2009