segunda-feira, 30 de março de 2009

A poesia perto de nós



"Condenado ao verso 
como um fiscal da lida

impeço que a vida passe 
como se pudesse não ser percebida."

Elisa Lucinda, em
 Poeminha dos olhos

 
 
O poeta Geraldo Carneiro, a respeito de Elisa Lucinda, escreveu que ela é uma "espécie de Adélia Prado com sexo, drogas e rock'n'roll".

De fato, entre as duas escritoras há pontos de contato, ainda que uma delas crie seus versos na sua pacata casa em Divinópolis, e a outra o faça, na maioria das vezes, no metropolitano Rio de Janeiro. Adélia Prado, ao falar das comadres que se visitam e das brincadeiras e encontros nos quintais, quer que esse cotidiano, aparentemente simples, mostre-se ao leitor de outro modo que só se torna visível graças à iluminação da poesia. Elisa Lucinda* às vezes faz o mesmo, mas agora dentro do ritmo agitado de uma grande cidade superpovoada. Sinal dessa proximidade pode ser encontrado no poema Entre Vista (ou aquilo que ainda não me perguntaram), em que encontramos este verso:

"- que não gosto de ler Adélia Prado porque alguém em mim fica doido para copiá-la e eu, por isso, imediatamente o desprezo".
 
Num outro poema (Termos da nova dramática), Lucinda pede: "Parem de falar mal da rotina" e defende os "óbvios de estimação" para arrematar:

"O enredo
a gente sempre todo dia tece
o destino aí, acontece
o bem e o mal
tudo depende de mim
sujeito determinado da oração principal"

E o que se tece no dia a dia dessa escritora? No poema Tinha uma rima no meio da moqueca, ao falar de seus vários "eus", ela escreve que "mistura as cuecas do filho/ às 'Flores do Mal' de Baudelaire"   Em Cortando Cebola, ela assim se vê:

"Eu que era artista sem dinheiro, aquela
E o talento esburrando como leite
esquecido exagerado de fervido
Eu era o amigo de meu próprio peito
que estava quase abandonando a causa
Minha alma picadinha junto ao coentro
esquartejava meu anjo de guarda
como quem desossa uma galinha
sozinha, chorando sobre a solidão das vasilhas
tão melhor do que a minha"

 
Essa poesia "despojada", sem pose, é saudável, numa época em que ou se tem publicado versos talhados com marreta, sem nenhuma cadência e ritmo, ou cheios de "estilismo" e vanguardice, incompreensíveis, chatos ou simplesmente pueris, que afastam e entediam os leitores.
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* Os poemas citados nesta postagem estão nos livros O semelhante e Euteamo e suas estreias, ambos publicados pela Editora Record.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Kyogen

"A literatura é o que não se vê. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem em outro lugar".

Bernardo Carvalho - O sol se põe em São Paulo




 
Faço uma rápida busca na web e fico sabendo que o teatro kyogen surgiu no Japão, aproximadamente no século XIV, e que é um estilo cômico, com apresentações curtas nos intervalos dos espetáculos de nô (ou noh, como queiram). Com o tempo foi adquirindo certa autonomia e tornando-se um gênero à parte.

No romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2007), um dos personagens, chamado Masukichi, é um obscuro e pouco talentoso ator de kyogen. Em seu aprendizado, o ator começou usando a máscara necessária ao papel do macaco, quando ainda era criança. Segundo a tradição, o auge da educação cênica no kyogen consiste na capacidade de interpretar, depois de uma certa "bagagem", o papel da raposa, não precisando mais da máscara para convencer a platéia.

No entanto, em determinado momento da narrativa, outra personagem do romance - esta, fundamental - diz:

"Por mais longe que você vá, por mais que eles tentem confiná-lo a um papel e a um lugar que não são seus, você leva sempre as máscaras consigo".

O sol se põe em São Paulo é justamente isto: um romance em que as constantes trocas de máscaras, papéis (e identidades) fazem-no uma agradável jornada de leitura.

Setsuko, Michiyo, Jokichi, Masukichi. Todos esses personagens - com seus pequenos grandes dramas particulares - produzem as diversas histórias a serem reunidas pelo escritor "de aluguel" que é o principal narrador do livro.

E aqui vale dizer que esse narrador, não obstante ser ele descendente de imigrantes japoneses que foram para São Paulo, tem muito em comum com o próprio Bernardo Carvalho. Numa certa passagem, ele escreve: "Na adolescência, fui um leitor voraz de relatos de viagem [...]". Seria a voz do próprio escritor?

A curiosidade surge porque Carvalho produziu alguns de seus livros a partir das viagens que realizou, como, por exemplo, seu último romance (lançado este ano), O filho da mãe, passado na Rússia, e cujos detalhes (pelo menos alguns) nos foram contados numa palestra dada pelo escritor, há quase dois anos, na UFMG. Em O sol se põe em São Paulo, há ainda outra passagem que corrobora a vinculação da experiência do narrador com a do autor.

Um personagem - o homem do lábio leporino - diz em certo trecho:

"As viagens deixam a gente em estado de alerta. Você passa a ver as coisas que os outros não veem. Isso não quer dizer que seja mais verdade que os outros, quer dizer apenas que vê mais - ou menos - mas nunca o mesmo que os outros. Você passa a ver sozinho. É o estado ideal do escritor".

E mesmo sendo uma história centrada nas vidas de personagens japoneses e de como foi o desfecho (de algumas) delas no Brasil, após a Segunda Guerra, não se deixa de olhar criticamente nosso país. Escreve o narrador:

"São Paulo não se enxerga - ou não chamaria periferia de periferia. Não é só eufemismo. Chamam-se de excluídos aos oitenta por cento da população. Não é à toa que é uma cidade de publicitários. Em São Paulo, publicidade é literatura [...]."

 

 

quarta-feira, 18 de março de 2009

Mongólia, de Bernardo Carvalho



Beth Brait, na edição de fevereiro/2009 da revista Língua Portuguesa (Ed. Segmento, ano 3, nº 40), fez uma breve análise do romance Mongólia, de Bernardo Carvalho (Ed. Companhia das Letras, 2003), e observou que:

"Muitos aspectos concorrem para a construção da obra: das diferenças entre Oriente e Ocidente, China e Brasil, a minúcias vistas nas letras, que identificam (ou confundem?) os diferentes registros dos narradores da emaranhada trama, do mistério a ser desvendado verbo-visualmente, dos sentidos a serem perseguidos e (re) construídos. Um autêntico mapa da mina".

Nessa postagem, entre tudo o que indica Beth Brait, me concentrarei na alternância dos narradores.

Em Mongólia (diferentemente do que ocorre em Nove Noites), o emprego de narradores diferentes sustenta e dá organicidade à trama, desde seu início.

O primeiro desses narradores (o diplomata aposentado) é o responsável pela "costura" do que dizem os outros dois (o Ocidental e o desaparecido), apesar da antipatia inicial em relação a um deles (para o diplomata, o Ocidental "dizia o que pensava, ainda que fosse uma bobagem" e que "falar asneiras" era uma "tentativa perturbada" de procurar compreender uma cultura com a qual não estava familiarizado - no caso, a cultura chinesa). Vale lembrar que o diplomata aposentado é o único dos narradores a assumir explicitamente a pretensão de ser escritor.

O Ocidental e o desaparecido são os responsáveis por aquilo que, na falta de expressão melhor, eu chamaria de "relatos de viagem", através de seus diários. O diplomata inclusive ressalta a semelhança - não imediatamente perceptível - entre os dois registros (e das duas personagens):

"Parecia que eu estava ouvindo a mesma pessoa. De alguma forma, o desaparecido e o Ocidental tinham uma afinidade sinistra nas suas ideias etnocêntricas. A diferença, como eu acabaria entendendo, era que o desaparecido ainda tentava tratar o mundo como aliado. Era mais ingênuo ou otimista. O Ocidental não fazia esse esforço. O desconforto o levava a assumir com naturalidade o papel de adversário. Debatia-se com o mundo".

E as impressões destes dois narradores, ao visitarem um país, para nós ocidentais (particularmente brasileiros), tão diferente, ajudam a tonificar o romance. Em determinado momento, no meio da paisagem desértica do país asiático, o Ocidental, cuja missão era encontrar o desaparecido, entrega os pontos:

"Como de hábito, não há ninguém em lugar nenhum. Não sei o que estou fazendo aqui. Não faço a menor ideia de como poderei encontrar o rapaz. É como se o estivesse procurando no planeta errado".

A história vai se precipitando, como num processo de decantação, aos poucos, e quando menos o leitor espera - BAM! - o livro, intentado pelo diplomata aposentado que começa a narrativa, já está de vento em popa.

Um fotógrafo que não deixa fotografias; o desconhecimento do idioma como fonte de desconfiança e zona de perfídia; a história de uma região do mundo, submetida, em períodos de tempo alternados, ao controle comunista de feitio soviético e à forte influência budista (neste livro, corajosamente criticada); são esses alguns outros aspectos que tornam Mongólia um livro altamente denso. Denso e excelente.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Aquecendo motores

Até pouco tempo atrás, nunca tinha lido nada do escritor carioca Bernardo Carvalho. Considerado um dos mais importantes autores da Literatura Brasileira contemporânea, Carvalho mantinha coluna quinzenal na Folha - da qual eu era leitor assíduo. Mas a sua ficção eu não conhecia. Há uns cinco anos, porém, eu li Nove noites(que acabei, em outra postagem, chamando, equivocadamente, de Nove luas...). A expectativa era grande. A decepção nem tanto, mas aconteceu.

Não me agradou aquela mescla de "reportagem" e ficção. As constantes alterações das vozes narrativas me pareceram um tanto forçadas e desnecessárias na organização geral do romance. O drama do antropólogo Buell Quain não me comoveu, nem me deixou curioso. Logicamente, tal drama é apenas um dos elementos do texto. Não é verdade, entretanto, que muitas vezes não nos aproximamos de (ou nos deliciamos com) um livro justamente por causa de nossa relação - ainda que num nível primário - com seu protagonista?

Contudo, logo percebi que não se tratava de um escritor comum. Tudo é muito apurado, principalmente o que se manifesta pela elegância da escrita. Atentemos para esse trecho:

"O mais incrível, nos nascimentos, é a euforia cega com que os pais encobrem o risco e a imponderabilidade do que acabaram de criar, a esperança com que o recebem e que nos faz transformar em augúrio promissor a incapacidade de prever o futuro que ali se anuncia e a impotência de todas as medidas de precaução nesse sentido. Se assim não fosse, é bem provável que o ser humano já tivesse desaparecido da face da Terra, pelas mãos de mães zelosas e assassinas."

A leitura de Nove noites foi uma espécie de "aquecimento dos motores" para o que eu descobriria em Bernardo Carvalho posteriormente (em particular, no romance Mongólia). Continuo na próxima postagem.

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* CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002


TOSCO MUNDO

Sei que o assunto já está batido, mas é que ao ver a Folha de S. Paulo no sábado passado, não pude deixar de mencioná-lo. Na edição, foram publicadas as duas melhores opiniões relativas ao recente ato do arcebispo de Recife e Olinda.

José Simão - sempre ele - escreveu:

"Olha essa: ' CNBB diz que excomunhão por aborto é instantânea '. Instantânea? Excomunhão Miojo: o medievalesco bispo de Recife e Olinda pega um copo d'água, te joga na panela quente e, em três minutos, você tá excomungado!"

Drauzio Varella, bem a sério, obviamente, não deixou por menos: "não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores".

Por ser ateu, intimamente nada do que a Igreja - quando retrógrada e intolerante - proclama ou defende me interessa. Embora, infelizmente, sempre acabe sentindo as consequências, direta ou indiretamente, dos atos dela, dada a influência social dessa instituição. E tenho que concordar com Varella: boa parte dos argumentos defendidos por uma parcela significativa de católicos - autoridades ou não - "ofende a inteligência humana".

quarta-feira, 11 de março de 2009

Anedotário

Aproveitando o assunto "rivalidade" entre as noções de realidade e ficção, escreverei hoje sobre um livro que também trata da relação pai-e-filho, por meio de recordações: trata-se do Quase memória, de Carlos Heitor Cony (Ed. Companhia das Letras, 1995).

Logo no prefácio (intitulado Teoria Geral do Quase), o autor indica as limitações para encaixar esse livro num gênero textual fora de dúvida: "daí a repugnância em considerar este Quase memória como romance. Falta-lhe, entre outras coisas, a linguagem. Ela oscila, desgovernada, entre a crônica, a reportagem e, até mesmo, a ficção"E apesar de incluir personagens que tiveram existência de carne e osso, Cony afirma que todos "os personagens, reais e irreais se misturam improvavelmente" e "uns e outros são fictícios".
 
Um desses personagens - justamente o protagonista - é Ernesto Cony Filho, pai do escritor, e que segundo o autor, obedecia "à tradição dos melhores narradores da história, de Homero em diante."

Jornalista não muito talentoso, Ernesto, entretanto, conseguia empregar em lances de sua vida privada - e, ocasionalmente, também na sua vida pública - certos "truques" que o faziam, a seu modo, um tanto fora do comum. No fundo, Quase memória acaba sendo o relato de vários desses episódios nos quais Ernesto se meteu ou pelos quais foi o principal responsável. E para dar alguma unidade ao texto, o narrador lança mão de um embrulho recebido anos após a morte do pai e que funciona como uma espécie de gatilho para as lembranças.

No capítulo 13, o narrador escreve:

"Se me metesse a escrever um livro sobre o que está acontecendo, alguém acharia nesse embrulho, vindo brutal e inesperadamente do passado, uma referência, associação ou plágio da madeleine de Proust - e aí me cobrariam um romance. E como não há romance, além da pretensão, constatariam o meu fracasso."

O narrador percebe que, na sua tentativa, o tempo "ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança". Tudo isso não chega a formar uma memória coesa e contundente: "uma quase-memória, ou um quase-romance, uma quase-biografia. Um quase-quase que nunca se materializa em coisa real como esse embrulho, que me foi enviado tão estranhamente".

Ao final da leitura deste livro, ficou-me a sensação de ter diante de mim um simples anedotário, em que as características do personagem central eram ilustradas por suas ações, sempre peculiares, e que por si só serviriam para conduzir e construir a narrativa. Não há dúvida de que alguns desses pequenos relatos - mais adequados à crônica, no que Cony é muito bom - são emocionantes (como o capítulo 20, destacado pelo Ruy Castro), mas que, somados, não dão ao livro a mesma inteireza e simpatia que emanam de seu protagonista.


sexta-feira, 6 de março de 2009

O que é Literatura, afinal? (3)


Adelaide Amorim, que escreve n' O bem, o mal e a coluna do meio (entre outros blogs), um dia desses, mencionando Julio Cortázar - autor de sua especial predileção - falou sobre um tal de "amigo-livro". Adorei o termo e, no meu caso, se fosse preciso escolher um amigo-livro, este seria, sem nenhuma sombra de dúvida, Sagarana*, de João Guimarães Rosa.

Eu tinha pouco mais de vinte anos naquela primeira leitura. Foi a total transformação do leitor que eu era. E que plasmou o leitor de hoje, menos ingênuo e mais criterioso. Tornou-se livro de cabeceira, constantemente lido e relido. Ao todo, já possuí quatro exemplares, de três edições diferentes. É nele que se encontra a mais perfeita narrativa da novelística brasileira: A hora e vez de Augusto Matraga.

Sobre ela, o antropólogo Roberto DaMatta escreveu um ótimo ensaio (Augusto Matraga e a hora da renúncia**) no qual procura observar como um escritor, mesmo um mágico da escrita como Rosa, equaciona o mundo real dentro de seu texto. Escreve DaMatta:

"Não há novidade alguma na afirmação de que todos os escritores deformam deliberadamente ou não aquilo a que chamamos de realidade - ou a realidade tal como é definida oficialmente pelos instrumentos de legitimação de uma sociedade. Mas, por outro lado, sabemos que todos os autores mantiveram um mínimo de coerência da realidade, mesmo quando se voltavam contra ela do modo mais violento."

Se você fez a gentileza de acompanhar essa série de postagens sobre a noção de Literatura, deve ter notado que eu manifestei maior apreço pelos escritores adeptos da fabulação em alto grau (e julgo que Guimarães Rosa seja um desses). Em A hora e vez de Augusto Matraga, temos essa famosa passagem:

"E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor."

O que faz o narrador com essa simples afirmativa? Manda um recado para o bom leitor, como a dizer: "Isso é pura invencionice, mas eu sei que você sabe, não é mesmo? Então vamos continuar o nosso joguinho?" Ou seja, ficção - e da boa - no mais alto nível.

Ao pensar, neste últimos dias, na relação entre ficção e realidade, lembrei-me de um pequeno artigo, publicado em 2004***, de autoria do escritor Bernardo Carvalho, cujo título é Lobo! Lobo!, e que fazia referência àquela folclórica narrativa em que uma criança, meio mentirosa, anuncia a chegada de um lobo feroz nas proximidades da aldeia.

Carvalho cita textualmente uma reflexão de Vladimir Nabokov:

"A literatura não nasceu no dia em que um menino gritando lobo! lobo! veio correndo do vale de Neandertal com um grande lobo cinzento no seu encalço: a literatura nasceu no dia em que um menino veio gritando lobo! lobo! e não havia lobo nenhum atrás dele [...] Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de história verídica é um insulto tanto à arte quanto à verdade".

Nas próprias palavras de Bernardo Carvalho, percebe-se a sintonia entre seu pensamento e o de Nabokov. Para Carvalho, vivemos "num tempo em que a imaginação na literatura parece gozar de um desprestígio crescente entre os leitores, mesmo entre os mais cultos". O autor prossegue (e perdão pela citação um tanto longa, mas ela é essencial):

"Não é preciso muito esforço para notar que não só os livros jornalísticos e as biografias mas também os romances 'baseados em histórias reais ' interessam mais os leitores do que as ' obras de imaginação' . O que prende o leitor a um livro em que há ambiguidade entre realidade e ficção é a realidade, e não a ficção. A ficção, para ele, é a parte supérflua [...] O assustador é que possa ser resultado e sinal de uma percepção cada vez mais empobrecida do imaginário. Como se toda 'obra de imaginação' não estivesse de alguma forma ancorada na realidade e não a refletisse. Como se a imaginação não fosse um elemento constitutivo e fundador da realidade, mas um artigo supérfluo".

Nem preciso dizer que essa opinião coincide, em parte, com o tipo de literatura proposta por Bernardo Carvalho em seus romances. Mas isso é assunto para outro dia.

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* ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

** DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997

*** CARVALHO, Bernardo. Lobo! Lobo! . Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2004. Caderno Ilustrada. p. E6


terça-feira, 3 de março de 2009

O que é Literatura, afinal? (2)


"[...] ele mesmo uma expressão ampliada do seu filho, envolto sempre no próprio labirinto. É um projeto artístico, ou um projeto terapêutico? - ele se pergunta às vezes, caneta à mão, diante da página em branco".

Cristovão Tezza - O filho eterno



Um dos adjetivos mais empregados para caracterizar O filho eterno, de Cristovão Tezza (Ed. Record, 2007) foi "corajoso". Li-o em duas ou três resenhas e ele está, inclusive, na orelha do próprio livro. Acho que isso se deve ao fato de que o narrador não se perde em circunlóquios ao abordar o tema central da narrativa - a saber, a relação de um pai com o filho que tem síndrome de Down.

Com efeito, o narrador registra:

"Em poucos minutos - ele não pensou nisso, mas era o que estava acontecendo - aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua vida."

Em certo momento, as crianças na mesma condição do filho são chamadas de "pequenos ogros de boca aberta"...

Não há eufemismos, preocupações de atenuação. Por partir da experiência vivida diretamente pelo escritor, fico imaginando o impasse experimentado por Tezza ao decidir colocar algo relacionado à sua vida pessoal, imediatamente reconhecível, dentro de um romance:

"E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida - em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho."

Na postagem anterior, a ironia do escritor foi mencionada. Ela não deixa de comparecer em O filho eterno:

"Não há mongoloides na história, relato nenhum - são seres ausentes. Leia os diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote, avance para a Comédia humana de Balzac, chegue a Dostoiévski, nem este comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos; os mongoloides não existem [...] Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopold Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente".

Há dois pontos a serem ressaltados nessa altura da argumentação. O primeiro é óbvio: não há tema proibido na Literatura. O segundo é: até que ponto (e em que intensidade) a vida privada enseja boa ficção?

Posso dizer que a própria maneira de olhar para si mesmo - no caso, o narrador de O filho eterno - já é Literatura, uma vez que sentimentos e percepções nos são transmitidos através de uma linguagem especialmente organizada para isso.

Mas a pergunta permanece: o que é literatura afinal? Na próxima postagem - a última da série - segue a discussão, desta vez com Bernardo Carvalho, Nabokov e Guimarães Rosa.