domingo, 27 de julho de 2025

Ano 117 d. F (I)

[ Atualizado em 28/07/2025 ] 

Talvez este não seja o melhor momento para voltar ao Admirável mundo novo. Digo isso porque as ciências não parecem estar gozando de um apreço significativo e generalizado nos últimos tempos (ou esse montão de gente por aí dizendo que a Terra é plana, dando de ombros para a emergência climática, consultando astrólogos e duvidando da eficácia da vacinação retrata uma história de sucesso em termos de letramento científico?). Os alertas contidos no livro de Aldous Huxley são melhor apreciados, penso eu, quando as proposições das ciências estão com crédito em alta. Numa época, entretanto, em que pessoas dão atenção (e dinheiro) a  coaches  "quânticos" (que ofertam, entre outras coisas, "alteração de células corporais através do pensamento, sentimentos, emoções e comportamentos", segundo um instituto voltado para essa "terapia"), a narrativa literária pode já não ter muito a oferecer como crítica aos excessos do cientificismo. 

Se não estiver contando errado, essa deve ser a 11ª (ou 12ª?) vez que percorro esse texto. É um dos volumes basilares na minha formação de leitor, mas admito que a satisfação de décadas atrás foi deixando de se repetir nas últimas leituras. Há uma emanação moralista e reacionária naquelas páginas que, hoje, não consigo mais aceitar como um problema menor da composição. 

Sendo assim, além da crítica ao cientificismo (e não à ciência, bem entendido), por qual outro motivo valeria a pena retornar mais uma vez ao célebre romance distópico publicado pela primeira vez em 1932?

. . . . . . .  

Apesar de algumas marcas óbvias - por exemplo, nomes de personagens (Bernard Marx, Helmholtz Watson, etc.), determinados episódios, como a cerimônia do Orgião-Espadão (Orgy-Porgy, no original, um trocadilho com a cantiga infantil inglesa Georgie Porgie ), além do próprio título -, levei muito tempo para me dar conta do quão longe chegava o conteúdo satírico na escrita do Admirável mundo novo (não é à toa que este blog se chama Besta Quadrada...). Huxley quis, deliberadamente, fazer troça com H. G. Wells e o otimismo dele em relação ao futuro da humanidade, manifestado em alguns de seus livros, principalmente  Deuses Humanos (algo que só muito tempo depois das primeiras leituras vim a saber). Creio que seria proveitoso dispor de algumas informações biográficas para compreender melhor tudo isso (sobretudo porque acho que Huxley deve ter achado graça em alguns momentos durante o processo de elaboração da obra), mas infelizmente não há como obtê-las no momento. Estou querendo dizer que a intenção satírica me leva a especular sobre a possibilidade de o escritor estar apenas se divertindo em algumas passagens.  De qualquer forma, trata-se de um romance de ideias, em que o autor certamente quer conduzir seu leitor para determinadas conclusões e, no todo, não estava brincando em serviço.

A amplitude de uma obra de ficção científica depende, em grande parte, do quanto suas "previsões" se mostram corretas. No prefácio ao livro publicado anos depois do lançamento, impactado pelo uso de bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial, o romancista admite que não deu atenção suficiente para o poder da fissão nuclear, embora essa não seja sua única falha em termos de imaginação do futuro. Por outro lado, com acerto, ele intuiu que o controle social conseguiria ser muito eficiente se empregasse técnicas e estratégias direcionadas para a pisque, valendo-se de tecnologia avançada, resultando em indivíduos que "amam a servidão". Mesmo assim, oportuno observar, o controle social em nossos dias ainda depende da violência e da coerção física em inúmeros casos, bem diferente do estável sistema de castas futurista (o Estado Mundial) apresentado no livro, no qual o descontentamento pode ser facilmente suprimido por meio de um fármaco. Nesse aspecto, a crítica que Huxley fez a George Orwell numa carta a respeito de  1984, afirmando que a política de  botina na cara  não parecia ter muito futuro no longo prazo, não se mostrou acertada, pelo menos até o presente momento histórico.

É fato que Huxley temia o totalitarismo. Por essa razão, muitos identificam no Admirável mundo novo tão somente uma condenação implacável direcionada ao fascismo (que, sabemos, desembocaria na monstruosidade de Hitler), bem como ao regime vigente no chamado  socialismo/comunismo real  de feitio soviético (o ficcionista britânico talvez preferisse o termo bolchevismo ), tendo Stálin no comando. Não digo que essa interpretação é equivocada. Uma análise um pouquinho mais atenta, contudo, permite-nos ver que não se trata apenas disso.

Observemos um excerto do capítulo três - uma das falas do Diretor do Centro de Incubação e Condicionamento de Londres ¹:

"- É estranho [...], é estranho pensar que, mesmo no tempo de Nosso Ford, a maioria dos jogos não tivesse mais acessórios que uma ou duas bolas, alguns bastões e talvez um pedaço de rede. Imaginem que tolice permitir que as pessoas se dedicassem a jogos complicados que não contribuíam em nada para aumentar o consumo. Atualmente, os Administradores não aprovam nenhum jogo novo, salvo se demonstrar que ele necessita, pelo menos, de tantos acessórios quanto o mais complicado dos jogos existentes".

Aumentar o consumo... Referências à necessidade de consumir aparecem noutros momentos da narrativa. No capítulo onze, por exemplo, Linda - uma pessoa criada no Estado Mundial, mas que foi deixada para trás numa reserva formada por uma população à parte desta organização social -, mesmo após tantos anos de fora, não se livrou do condicionamento para o consumo. Diz ela em determinado momento "Além disso, nunca foi direito remendar roupa. É atirar fora quando estiverem estragadas e comprar novas. 'Quanto mais se remenda, menos se aproveita' [um ensinamento incutido por meio de sucessivas repetições através de um processo chamado hipnopedia]. Não é verdade? Remendar é antissocial".

O fenômeno da  sociedade de massa  inquietava muitos intelectuais na primeira metade do século passado, atraindo pensadores politicamente tão diferentes quanto Ortega Y Gasset e Adorno e Horkheimer (posteriormente, a partir dos anos 1950, a questão apareceria também na obra de Hannah Arendt). O autor de  Admirável mundo novo  também estava, a seu modo, refletindo e se questionando a esse respeito. Num mundo cada vez mais populoso, os conflitos serão ainda mais destrutivos? Haverá ocupações e lugar para todos? Como fica a questão da ordem, do exercício da autoridade e do poder? E o risco da anulação do indivíduo, cada vez mais indistinto no mundaréu de gente? Nesse cenário, como atender a liberdade de cada um? Como fica a questão da autonomia de pensamento, da criatividade pessoal e da inspiração artística? 

De acordo com a ficção de Huxley, a humanidade do futuro (gigantesca massa de pessoas) reforçará a segurança e a estabilidade em detrimento da independência de pensamento e da liberdade individual. O "detalhe" é que, para sustentar essa segurança e essa estabilidade, uma das condições deve ser o consumo contínuo, praticado por seres humanos infantilizados. É esse ponto - seres humanos infantilizados impelidos ao consumo constante - um dos poucos tópicos que fazem o livro aqui debatido uma criação ainda dialogante com os nossos tempos.

Concluo a discussão na próxima postagem.

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¹ HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22 ed. São Paulo: Globo, 2014 [Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano).

BG de Hoje

A frase "É pra isso que eu pago internet" não deve ser usada em vão. Dito isso, os Tiny Desk Concerts (da NPR norte-americana) estão entre aquele monte de iniciativas pelas quais agradecemos a existência da web. É tão bom poder ver artistas que se admira apresentando-se dentro do formato proposto ali, bastando uns poucos cliques e pressionar de teclas! Recentemente, a banda nova-iorquina LIVING COLOUR, uma das minhas prediletas em todos os tempos, apareceu por lá. Sensacional! Entre as canções tocadas, Love Rears Its Ugly Head  teve tudo a ver com o espaço, principalmente pela execução ainda mais  jazzy  do que a gravação original (a partir de 12m5s). 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Felicidade, afinal, para quê?


Felicidade, afinal, para quê? Essa pergunta ficou na minha cabeça por muitas horas após terminar a leitura de A trégua.  A história do amor tardio ali contada (tardio pelo menos para uma das personagens) me chacoalhou um pouco, forçoso admitir, embora seu desfecho não fosse difícil de antecipar. Falaria sobre outra obra hoje, mas sinto que preciso me acertar com este livro de Mario Benedetti e com a emoção que senti. 

Publicado originalmente em 1960, o romance é construído a partir do diário de Martín Santomé, ser ficcional que enfeixa as características de um tipo de protagonista bastante frequente na literatura moderna, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, ligado à progressiva urbanização dos espaços: o sujeito sem qualquer excepcionalidade, um funcionário sem destaque, a mediania personificada, apenas mais um na multidão.

De olho na aposentadoria que se aproxima, Santomé, viúvo há bastante tempo, pai de três filhos já adultos, acaba se apaixonando por uma mulher muito mais jovem, Laura Avellaneda, empregada recém-contratada e subordinada a ele no escritório comercial onde ambos trabalham em Montevidéu.

Antes de abrir o livro, eu tinha dois motivos para me indispor com ele. Como já escrevi aqui e noutras postagens, não costumo apreciar histórias de amor. Além disso, acho a forma  diário  um expediente meio preguiçoso dos escritores ao construir uma narrativa literária (sou obrigado a aceitar,  contudo, que um de meus livros mais diletos - A náusea, de Sartre - foi feito nesse formato). A ficção apresentada como  diário,  porém, tem a vantagem de ser conduzida por uma voz narrativa em primeira pessoa propensa à sinceridade (aquela possível dentro uma história inventada, claro) e, em  A trégua,  assim como noutras composições similares, o mecanismo de identificação/afinidade entre narrador e leitor acaba se estabelecendo muito facilmente.

O protagonista é mordaz, mas nunca cruel ou isento de compaixão. Nem por isso deixa de mostrar-se um homem de seu tempo (chegando à meia-idade no intermédio do século passado), incapaz de emergir do machismo e da homofobia - a ironia é que tem um filho gay e, pela primeira vez, está aprendendo o valor do âmbito afetivo e sentimental de uma relação para além da crua atração física pela mulher amada.

Como seria de se esperar, é uma pessoa solitária, com uma vida desinteressante e banal, tendo como única atividade o trabalho - "essa espécie de constante martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico" ¹. Antes de Avellaneda e ele começarem seu envolvimento (que o casal passa a chamar de  Assunto ), lê-se no diário a certa altura:

"Quase todos os domingos, almoço e janto sozinho, e inevitavelmente fico melancólico, 'O que fiz da minha vida?' é uma pergunta que soa a Gardel ou a Suplemento Feminino ou a artigo do  Reader's Digest. Hoje, domingo, sinto-me além do irrisório e posso me fazer perguntas desse tipo. Em minha história particular não se operaram mudanças irracionais, guinadas insólitas e repentinas".

Santomé sempre tivera "um leve mal-estar diante do pieguismo", mas não consegue deixar de se perguntar em determinado momento: "Por que será que o verdadeiro é sempre um pouco piegas?". Esse questionamento não é respondido: ele, entretanto, a cada dia, passa a compreender que não há como (e nem há necessidade de) fugir do sentimentalismo frente a essa paixão temporã, cuja verdade aceita: "Estou numa idade em que o tempo parece e é irrecuperável. Tenho  de me agarrar desesperadamente a esta razoável ventura que veio me buscar e me encontrou".

Trata-se, como se vê, de uma época crucial na vida do personagem (e o leitor, quem sabe, pode estar também no mesmo barco):  

"Hoje, em vários momentos do dia, pensei: 'Cinquenta anos', e minha alma despencou até o chão. Fiquei diante do espelho e não pude evitar um pouco de piedade, um pouco de comiseração por este tipo enrugado, de olhos fatigados, que nunca chegou nem chegará a nada. O mais trágico não é ser medíocre, mas inconsciente dessa mediocridade; o mais trágico é ser medíocre e saber que se é assim e não se conformar com esse destino que, por outro lado (isso é o pior), é de rigorosa justiça".

A esse sujeito "meio apagado mas inteligente", sem mais expectativas do que o desencargo da pós-aposentadoria, foi dada nova chance de experimentar a felicidade: 

"Quando um indivíduo permanece muito tempo sozinho, quando se passam anos e anos sem que o diálogo vivificante e investigativo o estimule a levar essa modesta civilização da alma, que se chama lucidez, até as zonas mais intrincadas do instinto, até essas terras realmente virgens, inexploradas, dos desejos, dos sentimentos, das repulsas, quando essa solidão se transforma em rotina, ele vai perdendo inexoravelmente a capacidade de sentir-se sacudido, de sentir-se viver. Mas vem Avellaneda e faz perguntas, e, sobre as perguntas que ela me faz, eu me faço muitas mais, e então sim, agora sim, sinto-me vivo e sacudido".
Nós, os desgostosos desse mundo, porém, estamos fartos de saber que a felicidade é um colossal engodo, quaisquer que sejam os modos como se queira enxergá-la ou defini-la. Não se tem muitas oportunidades de prová-la (no sentido de experenciá-la). A plenitude desse estado emocional, então, é algo ainda mais fortuito. Isso fica bem ilustrado num dos trechos memoráveis do romance:

"Fui até a cozinha, acendi o fogareiro e coloquei água para esquentar. Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia da cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações".

Aprendemos rapidamente (nós, os desgostosos) a dispensar a felicidade, a não contar com a felicidade. Não é só pelo fato de que ela tende a durar pouquíssimo. É principalmente por que ela pode nos ser tomada a qualquer momento, sem alertas ou avisos prévios. 

Devemos continuar sem mais nada além de nossas rotinas incolores e vazias, às quais estamos tão acostumados. 

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¹ Todas as citações de A trégua aqui reproduzidas foram extraídas da edição publicada em 2007 pela Objetiva, com tradução de Joana Angelica D'Avila Melo.

 

BG de Hoje

Repito: histórias de amor não costumam me atrair. Ano retrasado, no entanto, numa das minhas (muitas) noites de insônia, decidi assistir à série Wolf Like Me (disponível no Amazon Prime). Não estava muito interessado, a princípio, mas fui sendo fisgado progressivamente. Resultado: adorei a primeira temporada (não tenho como avaliar a segunda porque ainda estou na metade). Embora o sobrenatural exerça papel essencial na trama, a série trata sobretudo dos laços que podem surgir entre um casal formado por indivíduos angustiados, após sofrerem perdas amorosas pesadas. É um tanto sentimentaloide? Sim. Mas deu certo como entretenimento. Além disso, a produção fez um ótimo trabalho na trilha sonora. O maior exemplo foi o uso de Fortress, uma das melhores canções do QUEENS OF THE STONE AGE em momentos significativos.