quinta-feira, 10 de abril de 2025

Racionais MC's: aprendizado


Em 1998, com 26 anos de idade, eu ainda não entendia (ou não aceitava) que o precipício estava logo ali. Ignorando os indícios ou rejeitando os fatos, achava que certas ações individuais e determinadas peças dessa minha vidinha ordinária  -  o trabalho, um duvidoso percurso acadêmico, o envolvimento afetivo em que me encontrava, o próprio país - ainda podiam dar certo  e, na próxima década ou na seguinte, seria possível partilhar alguma felicidade. Sim, eventual leitor(a), eu conseguia ser ainda mais palerma naquela época.

No início daquele ano, não parava de ouvir dois álbuns bastante diferentes um do outro: OK Computer, do Radiohead, e Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC's. Lembro de ter comprado os dois CDs na mesma loja e a vendedora estranhar um mesmo freguês levando pra casa rock dito "alternativo" e rap nacional.

Fiquei fascinado com Karma Police (o clipe da canção era muito exibido na antiga MTV). No entanto, demorei algum tempo para verdadeiramente apreciar o disco por inteiro. A banda britânica se empenhou em um trabalho não palatável, não radiofônico: a melhor das 12 faixas que o compõem,  Paranoid Android, e a vinheta Fitter Happier são exemplos desse propósito. Não me tornei um fã ardoroso do Radiohead (para ser franco, acho Thom Yorke meio xarope), mas OK Computer  é um dos 30 discos que levaria comigo se fosse forçado a viver em uma ilha deserta (fugindo, sei lá, de um apocalipse zumbi). 

E quanto a Sobrevivendo no inferno 

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Já mencionei aqui no blog que não posso, nem de longe, dizer que sou um ouvinte habitual de rap. No início da idade adulta, eu só conhecia algumas poucas coisas do Public Enemy (embora não compreendesse patavina de inglês naquela época) e, quanto ao cenário nacional, sabia, claro, quem eram Thaíde e DJ Hum, ainda que nunca tivesse escutado nada deles. Hoje, penso ter deixado de ser um peixe totalmente fora d'água (ouço prazerosamente, entre artistas ainda ativos ou não, Câmbio Negro, Black Alien, Missy Elliot, A Tribe Called Quest, Emicida e Little Simz), mas o rap continua não sendo um gênero musical de minha predileção. Devo admitir, contudo, que aprendi a respeitá-lo bastante, após a ebulição provocada pelo álbum lançado pelos Racionais no final de 1997.

Antes, porém, é preciso recuar mais um pouco no tempo. Em 1994, eu ouvira pela primeira vez Fim de semana no parque. Essa faixa integra o Raio X (do)Brasil - disco que permitiu a Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay meter o pé na porta do cenário musical brasileiro. Eles tinham certa popularidade em São Paulo, sendo, porém, pouco conhecidos no restante do país: isso passaria a mudar a partir desse álbum - que também apresenta  Mano na porta do bar Homem na estrada. Até então, só era possível ouvir gravações desse tipo na programação de estações como a Rádio Favela ¹ aqui de Belo Horizonte. Com o tempo, algumas outras emissoras locais arriscaram-se a tocá-las (sobretudo Fim de semana no parque ), reconhecendo o valor de Raio X(do) Brasil  e o interesse do público pelas músicas, iniciados no rap ou não.

Quando Sobrevivendo no inferno foi lançado, portanto, a expectativa era muito, muito grande. E creio que não houve motivo para grandes decepções. Pode-se dizer que o CD foi também um sucesso comercial, conseguindo chegar a 500 mil cópias oficiais vendidas alguns meses após o lançamento, um número impressionante, sobretudo quando lembramos que não havia uma major  por trás daqueles (então) quatro jovens negros sediados no Capão Redondo.

O disco é aberto com uma linda versão de  Jorge de Capadócia, de Jorge Ben(jor) - compositor/cantor recorrentemente citado na obra do grupo paulistano. Numa lamentável falha do encarte, contudo, não há informação sobre quem está cantando (seguramente, não é nenhum dos membros dos Racionais). O sample usado foi extraído de Ike's Rap II, de Isaac Hayes (mundialmente conhecido, penso eu, graças a Glory Box, do Portishead). Pouco depois surge a impactante e agressiva  Capítulo 4, versículo 3, aquela em que Mano Brown diz que sua "palavra vale um tiro" e ele "tem muita munição". O caráter de denúncia dos problemas sociais do país, particularmente os que afligem a população preta e pobre, marca indelével dos Racionais, aparece logo no início da faixa:

"60% dos jovens de periferiaSem antecedentes criminais já sofreram violência policialA cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negrasNas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negrosA cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
 
( NOTA: Se serve de alento, pelo menos um desses dados mudou significativamente para melhor: hoje, passados 27 anos do lançamento do CD, em torno de 50% dos estudantes em universidades públicas são negros ou pardos, embora certos cursos ainda não contem com um número expressivo de indivíduos pertencentes a esse segmento

A mensagem dos Racionais, endereçada principalmente para os jovens da periferia, "os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia", os que habitam "de Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro", dessa vez estava alcançando ouvidos além da quebrada. O  "mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo/ ou que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos/ o mano que entrega envelope o dia inteiro no sol/ ou o que vende chocolate de farol em farol/ talvez o cara que defende o pobre no tribunal/ ou o que procura vida nova na condicional/ alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela/ ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela"  continuavam a escutá-los, fielmente; havia agora, contudo, um fato novo: as pessoas que costumamos chamar de formadores de opinião  deixaram de lado o preconceito contra a "música de maloqueiro" e começaram a prestar atenção também.
 
Destacaria ainda no álbum outras três faixas: Qual mentira vou acreditar, uma composição que conta com um elemento raríssimo - o humor -, em se tratando de Racionais; Diário de um detento, cujo clipe ganhou muito destaque na MTV; e Tô ouvindo alguém me chamar, outra demonstração de como esses caras são bons em construir uma história (feito similar já tinha ocorrido na memorável  Homem na estrada ). Para não ficar só no enaltecimento, um moralismo meio pueril encarquilhado nalguns versos (algo surpreendente, se pensarmos no teor subversivo da maioria dos outros), além de misoginia e machismo nada disfarçados (afinal, são os mesmos caras que compuseram Júri Racional e, claro, a infame Mulheres vulgares ), são os pontos negativos.
 
Penso que o poeta Tarso de Melo fez uma  análise certeira do significado desse disco, quando escreveu ²:
"[...] Sobrevivendo no inferno é uma pancada – musical, cultural, histórica, política, poética. Para entender a força dessa pancada, a filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os Racionais se tornaram e se mantiveram e cresceram como Racionais porque souberam organizar o ódio. Não reagiram da forma autodestrutiva como o sistema previa: se armaram de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e baile".
 
Em 2002, eles lançariam Nada como um dia após o outro dia, contendo, entre outras, Negro Drama e Vida Loka, mas já sem o efeito avassalador do trabalho precedente. 

Se  OK Computer  serviu para reiterar minha convicção de que a arte é o único lugar restante para a redenção e o reconforto dos "iguais em desgraça", como cantou Cazuza,  Sobrevivendo no inferno, mais do que isso, ajudou a enterrar de vez as ilusões que eu ainda mantinha naquele afastado ano de 1998.
 
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Sem exagero, foi um lance tremendo.

O fato de uma instituição consagrada ao saber formal no seu nível mais elevado (de outra maneira, não chamaríamos de ensino superior) ter concedido tal distinção a um grupo originário da periferia pouco escolarizada, cuja trajetória artístico-profissional passou ao largo dos  campi  universitários, é muito bacana, claro, mas não é isso o que há de mais expressivo nesse acontecimento, em minha opinião. Vou tentar me fazer entender.
 
Todos estamos presenciando o uso maléfico da internet, principalmente nas mídias sociais. Por causa disso, esquece-se, por vezes, o quão revolucionária é essa tecnologia.
 
Questões urgentes, até então evitadas no amplo debate público - relatos de violência policial, evidenciação de práticas/discursos racistas e discriminatórios, crítica da ausência de representatividade de determinados grupos sociais, etc. - conseguiram ganhar repercussão dentro da sociedade graças à web e, forçoso admitir, às mídias sociais (pelo menos na fase inicial), deixando de se restringir apenas ao esforço de uns poucos ativistas espalhados aqui e ali ³.
 
Penso não ser possível separar a consolidação dos Racionais MC's desse contexto. Obviamente, nada aconteceria sem o talento e a agudeza do olhar deles, mas o que estou querendo dizer é: a internet, cujo acesso, no final dos anos 1990, começava a chegar progressivamente a mais indivíduos e entidades, foi de inestimável auxílio para que o recado do grupo alcançasse mais pessoas (até mesmo possibilitando a produção de milhares de cópias piratas de Sobrevivendo no inferno ). Mais manos e manas de diferentes lugares conseguiram construir pontes uns com os outros e, em muitas ocasiões, a música dos Racionais era um dos elementos mais importantes nessa aproximação.
 
A iniciativa de conferir o título de doutor Honoris Causa partiu dos docentes Jaqueline Lima Santos, Daniela Vieira dos Santos e Omar Ribeiro Thomaz, mas creio não ser equivocado dizer que a inserção desses artistas primeiramente nos aparelhos de som das periferias e posteriormente na discussão dos mais intelectualizados, cada vez mais sensibilizados para questões como as que mencionei acima, tudo isso graças a interconexão possibilitada pela web, acabaria tornando uma homenagem deste tipo quase uma questão de tempo. E fico feliz, sendo um cara negro, que a Unicamp realmente tenha dado esse passo.
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¹ Vale a pena fazer aqui um breve comentário sobre a Rádio Favela. Nascida em 1981, com equipamentos improvisados e de forma clandestina dentro do Aglomerado da Serra em BH, a Rádio Favela durante décadas teve muita dificuldade para se manter, sobretudo pela ação da polícia. Hoje, legalizada desde o início dos anos 2000, a emissora passou a ser conhecida como Autêntica FM e cada vez mais opta por seguir o padrão de apresentação das outras. Uma pena.
 
² MELO, Tarso de. Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre. Cult, São Paulo, n.241, dez. 2018 Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/sobrevivendo-no-inferno-racionais/. Acesso em: 31/03/2025
 
³ Nem tudo são flores, porém. Dessa atuação, originou-se o que eu chamo, tentando fazer piada, de extrema militância, formada por indivíduos cheios de certezas e declarações peremptórias que tornam o debate muitas vezes difícil e infecundo, apesar de se acharem sujeitos de mente aberta.

BG de Hoje

Ao citar os destaques de Sobrevivendo no inferno, dos RACIONAIS MC's , esqueci de incluir   Fórmula mágica da paz. Gosto dela só por causa da batida hipnotizante construída sobre um sample retirado de Attitudes, do grupo de soul  e funk The Bar-Kays. 

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