sexta-feira, 14 de março de 2025

"Todos nós seremos esquecidos"


Nos Agradecimentos  do volume de contos Felicidade demais (Editora Companhia das Letras, 2010 - tradução de Alexandre Barbosa de Souza), Alice Munro revela, sem embaraço, que "soube sobre Sophia Kovalevsky enquanto pesquisava alguma coisa na  Enciclopédia Britânica". Esclareço logo de cara que também nunca tinha ouvido falar dela até ler o texto de Munro. Mas Sofya Kovalevskaya (ou Sophia Kov(w)alesky) realizou, nos seus 41 anos de vida, feitos notáveis (dos quais eu, ignorante, não tinha notícia).  

Nascida na Rússia, em 1850, Kovalevskaya foi, de acordo com a historiadora da ciência Ann Hibner Koblitz,  "a mais conhecida mulher cientista antes do século XX".  Obteve seu doutorado em 1874, sendo a primeira mulher a conseguir tal titulação num campo - a matemática - ocupado, durante muito tempo, quase que exclusivamente por figuras masculinas. Conquistou o prêmio Bordin, da Academia de Ciências francesa e, posteriormente, um importante cargo de professora na Universidade de Estocolmo. Sua principal contribuição foi na teoria das equações diferenciais parciais - vou fingir que sei do que se trata, eventual leitor(a) -, cuja principal amostra é o teorema de Cauchy-Kowalevsky.

Felicidade demais - o texto que dá nome ao volume de contos - remete-se aos últimos dias de vida de Sophia Kovalevsky, antes do agravamento da pneumonia que a matou. Na primeira vez em que escrevi sobre o livro que contém esse conto, não fiz nenhuma observação sobre essa narrativa por não percebê-la como "aparentada" às demais, talvez pelo fato de ser a única a ter como personagens seres que existiram no mundo real. Manteve-se nela, porém, a melhor característica dos enredos da escritora canadense - as magistrais transições entre o passado e o presente. 

Gostaria de destacar duas passagens do texto de que estamos falando.

Na parte 4, após a obtenção do doutorado, tendo como mentor o alemão Karl Weierstrass, Sophia Kovalevsky decide retornar à sua terra de origem e deixa a matemática de lado por um longo tempo. "O aroma dos campos de feno e dos pinheirais", - escreve Munro - "os dourados dias de verão e as longas noites claras do norte da Rússia a inebriaram". A despeito de sua (até então, inédita) titulação acadêmica:

"Ela estava aprendendo, bastante tarde, o que muitas pessoas ao seu redor sabiam desde a infância - que a vida podia ser perfeitamente satisfatória sem grandes realizações. Podia ser transbordante de ocupações que não a exauriam até os ossos. Adquirindo o que precisava para uma vida confortavelmente plena, e então engajando-se numa vida social e pública cheia de entretenimento, evitaria que se entediasse ou ficasse ociosa, e ao final do dia se sentiria como se tivesse feito exatamente tudo o que agradava a todos. A agonia era desnecessária.

Exceto quanto a ganhar dinheiro".

A depender das circunstâncias, não é raro que a genialidade encontre muitos percalços em seu caminho de afirmação, ainda mais numa época (falo de Kovalevsky) em que o reconhecimento dos intelectos mais proeminentes continuava bastante restrito, principalmente em se tratando de mulheres. Por outro lado, a cômoda mediania é bastante acessível, com a vantagem de gerar satisfação sem exigir desagradáveis privações. 

A busca por grandes realizações tem um quê de obsessivo. Nesse momento, não consigo evitar a lembrança daquele trecho de A ciência como vocação, de Max Weber, em que o pensador alemão defende que, no atual estágio do saber formal, um feito científico só será verdadeiramente significativo se decorrer de um conhecimento altamente especializado. Weber chega a dizer que o  "destino da alma"  do cientista depende da sua capacidade de concentrar-se em fenômenos e tópicos cada vez mais específicos. Para tanto, é preciso uma "paixão", "uma estranha embriaguez, ridícula para todos os que a contemplam de fora". E esse empenho pode exaurir até os ossos, como escreve Munro acima. A pergunta que fica é: após ser reconhecido, o indivíduo genial será capaz de se contentar com a mediocridade que cerca a maioria de nós?

Na outra passagem, na parte 2, Sophia encontra-se com Jules Poincaré em Paris. O matemático e físico francês relata uma pequena rusga que teve com Weierstrass a respeito de uma premiação, vencida por Poincaré, cuja mesa julgadora contava com o alemão. Kovalevsky coloca panos quentes e lembra da irrelevância do desentendimento: 

" 'Afinal', ela disse a Jules, 'afinal você recebeu o prêmio e ele é seu para sempre'

Jules concordou, acrescentando que seu nome iria brilhar enquanto o de Weierstrass seria esquecido.

Todos nós seremos esquecidos, pensou Sophia, mas não disse, para não ferir a frágil suscetibilidade humana - especialmente dos jovens - quanto a isso".

Admito que tenho dificuldade para compreender essa sede de muitos por se fazer eterno ou, pelo menos, por ser lembrado muito tempo após a própria morte. O renome desejado por Poincaré de fato aconteceu, mas, afinal, que importância tem isso? Gosto de como Alice Munro revestiu a personagem de Kovalesky com humildade e modéstia.

Na próxima postagem, o assunto será a obra dos Racionais MC's

BG de Hoje

Enquanto a música continuar a ser parte da experiência humana, o tema do amor (ou da relação amorosa) será tema da maioria das canções populares. Fazer o quê? Nessa enxurrada do eu-te-amo, pouca coisa me deixa de ouvido atento. Just The Way You Are,  escrita e lançada pelo BILLY JOEL em 1977-78, é uma das poucas composições, digamos... sentimentais... que ouço com satisfação. Ela tem uns componentes bem bregas (a tentativa de emular uma batida "latina", os trechos e o solo de saxofone...) que a transformam numa faixa saborosamente inofensiva, easy-listening. Também adoro a letra (que representa o tipo de convivência afetiva que boa parte de nós sempre sonhou ter, mas que é improvável de se encontrar no mundo real): [...] "I would not leave you in times of trouble/We never could have come this far,/I took the good times, I'll take the bad times/I'll take you just the way you are [...] "I don't want clever conversation/ I never want to work that hard /I just want someone that I can talk to/I want you just the way you are".  Ah, e não deixa de ser irônico saber que Joel encontra-se atualmente no quarto casamento, com uma companheira 32 anos mais jovem do que ele...