quarta-feira, 27 de novembro de 2024

É hora de ler Osman Lins

 

Gostaria de dividir com o(a) eventual leitor(a) esta avaliação de Braulio Tavares a respeito da escrita de Osman Lins:

"Não conheço muita gente, no Brasil ou fora dele, que tenha escrito uma prosa no mesmo nível de tensão poética da prosa de Osman. Chamo de tensão poética àquela sensação que nos produz uma frase carregada de significado e de linguagem alusiva, diferente destas frases discursivas e lineares que estou enfileirando aqui. A prosa de Osman Lins é o que poderíamos chamar de 'prosa poética', se bem que esse estilo tende a ser uma prosa maneirista, rebuscada. Osman projeta tensão poética em tudo que escreve. Tem um grau extremado de riqueza vocabular e rigor sintático; sua imaginação visual é sem limites; sua competência como contador de histórias está fora de questão. E, por cima de tudo isto, a melhor expressão para descrever seu texto é : um arrebatamento verbal".

Sendo assim, por que quase não se fala desse artista?

A pergunta anterior impõe uma clarificação.

 

Bem, estamos tratando de literatura. 

Mais propriamente, literatura enquanto uma forma de arte. 

Uma forma de arte dependente do exercício da leitura e que, mesmo com todos os avanços tecnológicos testemunhados nas últimas décadas, ainda está muito atrelada ao objeto livro.

Pesquisas como a Retratos da Leitura no Brasil  e levantamentos como o recente  Panorama do Consumo de Livros  indicam que apreciadores de obras literárias não formam um grupo expressivo de pessoas, em termos numéricos. Dizendo com honestidade, ler literatura é uma prática cultural que dificilmente pode ser considerada popular, ou seja, um hábito amplamente disseminado na sociedade ¹. Portanto, não seria mesmo muito factível ouvir algo sobre Osman Lins dentro do ônibus, a caminho do trabalho, na fila da lotérica ou num bom bate-papo no boteco.

Então, quando alego que pouco se fala do autor, refiro-me, por exemplo, às raríssimas menções à sua obra nas ditas seções culturais dos jornais e portais na internet, nas aulas do Ensino Médio ou nos enquadramentos gerais da produção literária brasileira que, acho eu, costumam acontecer nos cursos introdutórios das faculdades de Letras. Outros(as) autores(as) nacionais igualmente marcantes do século XX têm frequência muito maior nesses espaços.

Não fiquei sabendo de muitos eventos e outras iniciativas em torno do escritor pernambucano aproveitando a ocasião de seu centenário, agora em 2024. Uma exceção foi a série de episódios de podcast produzido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Nem a Academia Brasileira de Letras, até onde eu saiba, prontificou-se a realizar uma conferência (como a que foi feita em 2018, por ocasião dos 40 anos de seu falecimento). Segundo a professora Sandra Margarida Nitrini, num dos episódios mencionados acima, Lins é " imerecidamente pouco difundido".

A adaptação cinematográfica de Lisbela e o Prisioneiro  conseguiu fazer com que o autor fosse apresentado a um público mais amplo alguns anos atrás. Mas seus textos mais importantes, em matéria de aperfeiçoamento e inovação estética - o conjunto de narrativas  Nove, novena  e os romances  Avalovara  e  A rainha dos cárceres da Grécia - carecem de uma revitalização para os leitores de hoje, bem como sua produção ensaística.

Neste momento, preciso fazer uma confissão. 

Mesmo me esforçando para não ser um leitor relapso, os únicos livros de Osman Lins que passaram pelas minhas mãos nesses meus 50 e poucos anos foram o pequeno volume de contos  Os gestos, o romance  O fiel e a pedra  e o já citado  Nove, novena.  Não haveria, pois, melhor momento para corrigir essa falha. Enquanto corro atrás dos outros trabalhos da chamada  fase madura  do autor ( Avalovara  está esgotado atualmente, seu preço nos sebos está meio proibitivo agora e não o encontro nas bibliotecas que tenho frequentado), por que não aproveitar a oportunidade e dizer alguma coisa sobre aquele que guardo em uma de minhas estantes?

Publicado originalmente em 1966,  Nove, novena  reúne escritos que, de primeira, lançam um questionamento sobre a pertinência do gênero literário ao qual presumivelmente se ajustariam: são contos? Se não, como classificá-los? O emprego, por Lins, do vocábulo narrativas  dissipa essas interrogações (embora, para os objetivos desta postagem e para meu "tagueamento" posterior, usarei o termo contos). Qualquer um que percorra o livro também não deixará de notar o emprego de sinais gráficos - tais como ॥, ⊖ , ▽ e outros menos ou mais comuns - para distinguir as diferentes vozes narradoras que compõem a maioria dos nove textos. Destes, Pentágono de Hahn  e  Retábulo de Santa Joana Carolina  são os que mais me interessam; na postagem de hoje, vou me concentrar no primeiro.

Em uma cidade interiorana, a chegada/passagem de uma elefanta de circo chamada Hahn  - ocorrência que poderia resvalar para o pitoresco apenas ou até mesmo o risível   - será o catalisador de cinco outras histórias, todas elas revelando o lado solitário das personagens que as transmitem, como neste trecho, por exemplo:

"Os elefantes vivem em bandos e são afetuosos; há porém os exemplares sozinhos, rebeldes, intratáveis. Os elefantes amam-se e são gentis; os solitários recusam-se a participar de incursões e peregrinações, afugentam as fêmeas, bebem sós, tomam banho sós, envelhecem sós. Eu queria ingressar não importava em qual bando, ser conduzido a alguma convivência, afagar um flanco de mulher". ²
A jornalista e escritora Marta Barbosa Stephens (também num dos episódios do podcast do IEB-USP) observa que: "Hahn é convertida no texto [em] uma espécie de animal essencialmente puro, soberanamente perfeito, capaz de alterar o rumo da vida de quem por casualidade estiver à sua volta". Sua imagem, portanto, é quase mítica. Parte do primeiro parágrafo do conto já busca incutir-nos essa representação:
" Tinha, sempre tive, predileção por essa espécie de animais; embora já contasse quarenta e cinco anos, vibrava ao vê-los. Fascinava-me aquele ser informe, gravado nas cavernas quando nosso destino de homens não se fixara, cunho de moedas, transporte de reis, montaria de deuses, ele próprio reverenciado e apontado como o bicho que suporta o mundo sobre o dorso. Além disso, sabê-los raça tendente a desaparecer impressionava-me, talvez por ser celibatário. Senhorita Hahn entrava ao som da 'Marcha triunfal', da Aída ".

Agrada-me particularmente um dos personagens cujas reflexões vão ao encontro do próprio ofício do escritor.  A seguir, algumas delas:

"Vejo, portanto, Senhorita Hahn, à uma da tarde, abrigada sob o toldo, semelhante a esses potentados do Oriente que presenciamos no cinema, rodeados de sol, parecendo, entre coxins, uns privilegiados, tão orgulhosos do seu quadrado de sombra, como de seus punhais e de suas frescas esmeraldas. Um velho contempla-a. Estão os dois sozinhos, sozinhos à sombra, cercados pelo escaldante silêncio, e Hahn tem no ar uma das patas; executa interminável dança, num vaivém a que seu próprio peso, sua vastidão, imprimem graça, um ritmo solene. É um exemplar asiático: tem cinco unhas nas patas dianteiras, quatro nas outras. A extremidade da cauda evoca a pena de um pavão. Perguntou-me o velho se não acho cruel prender o animal, isolá-lo de seus companheiros, amestrá-lo com banhos, cânticos, agrados enganosos, gritos, tudo por dinheiro. Sorri sem responder. Como poderia concordar, se acho que palavras não domadas, soltas no limbo, sós ou em bando, em estado selvagem, são potestades inúteis?"


"Digo a mim mesmo: 'Compreensível que um homem se volte para o passado, se há nesse olhar um propósito fecundo. Quanto a mim, busco-o porque não tenho coragem de reassumir - ou assumir - a direção dos meus dias'. Escrever. Nisto encontraria a salvação? Assusta-me a indispensável e árdua aprendizagem".


"Observando a elefanta, penso no seu olfato sensível, nos seus ouvidos finos, recordo o velho que me interpelou na véspera. Caçadores, buscando este animal capaz de destruir, em minutos, aldeias inteiras, valem-se de teias de aranha, para saber de que lado sopra o vento, não ser denunciados. Teias de aranha são instrumentos de astúcia, ajudam a enredar os elefantes. Silêncio, perseverança, audácia, paciência, os sentidos alerta, armas que terei de obter, para cercar as palavras, amestrá-las depois com aguilhão e banhos. Haverei que artes de ensinar-lhes? Mas escrever é um modo - não o mais eficaz - de romper o exílio. Atravesso como um bêbado as ruas sob o sol. Não se oferecem nunca por acaso, de improviso, as decisões essenciais de um homem; tal como na obra de arte, vamos chegando a elas devagar, com iluminações, e sobretudo com amadurecimento, esforço, meditação, exercício"

As citações acima também nos permitem verificar de pronto a expressividade tão marcante de Osman Lins, carregada daquela tensão poética mencionada por Braulio Tavares. Na prosa deste autor, tão importante quanto (e até mais importante do que) seguir os acontecimentos e eventos narrados, está o prazer estético provocado pela construção do texto em si.

 

Na próxima postagem, falarei de Cem anos de solidão, aproveitando a estreia de uma adaptação do livro produzida pela Netflix.

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¹ Tratar-se-ia então de uma prática (hábito) cultural elitista, exclusivo daquelas fatiazinhas intelectualizadas da população? Não vou entrar nessa discussão, ao menos por ora: meu ponto é apenas argumentar que leitores de literatura assíduos não são fáceis de encontrar. Pelo menos não tanto quanto, por exemplo, espectadores de cinema assíduos ou ouvintes de música assíduos. E creio que isso não é um fenômeno a ocorrer somente no Brasil. Sei que o assunto suscita debate aprofundado, mas não vou me estender sobre esse tema na postagem de hoje. Talvez noutra ocasião.

² LINS, Osman. Nove, novena. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Todos os excertos do livro citados nesta postagem foram extraídos desta edição.

BG de Hoje

O primeiro disco do FAITH NO MORE foi lançado em 1989, mas só fui comprar o vinil para  ouvir na íntegra, direto, em 1991. É um dos meus álbuns prediletos de todos os tempos (escrevi sobre ele aqui). Já o segundo, não despertou o mesmo entusiasmo de início. Não gostei da "faixa de trabalho" quando a ouvi no rádio e na MTV naquela época. Nada como o passar do tempo, porém: Midlife Crisis é hoje uma das minhas canções preferidas entre as gravadas pelo grupo californiano; adoro estes versos do refrão "You're perfect, yes, it's true/But without me, you're only you". E, graças a ela, aprendi a apreciar, aos poucos, o ótimo disco (Angel Dust) do qual faz parte.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Falou e disse...


"No Brasil, mistura nunca foi sinal de igualdade. Mas isso sempre foi vendido como imagem ideológica de Estado.
[...] Basta ver que no Brasil a população negra não é uma minoria como nos Estados Unidos. É uma maioria, mas uma maioria minorizada na representação política, social, econômica e cultural também". *

 

* Declaração da antropóloga e historiadora Lilia Moritz SCHWARCZ dada em entrevista publicada pela Deutsche Welle, em 21/10/2024. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/no-brasil-mistura-nunca-foi-sinal-de-igualdade/a-70554195>. Acesso em 23/10/2024