"Assim como Sade, ele podia conceber que o amor não existisse e que o sexo viesse do mesmo desejo que leva o homem a matar. Mas, assim como o amor burguês era insustentável a longo prazo (e o fim do sexo no casamento lhe parecia uma prova cabal), também o prazer do assassinato não podia sobreviver aos segundos do gozo. Ele estava entre a cruz e a caldeirinha".
O narrador, em Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho
Somente no último mês de julho consegui assistir a série Killing Eve.
Sempre soube do burburinho em torno da produção britânica, mas, na época (2019, acho), eu não era assinante do streaming que a exibia aqui no Brasil (Globoplay). Quando o programa chegou à Netflix, a coisa ficou mais fácil.
Estou entre os espectadores que vibraram com as duas sensacionais primeiras temporadas e que depois se decepcionaram com as duas últimas, sobretudo aquele episódio final horrível (terá sido um efeito da pandemia?).
As belíssimas locações, os cenários, os personagens atrativos (pelo menos o foram nas duas primeiras temporadas), os toques de humor desconcertantes e mórbidos, as performances das atrizes principais (particularmente Jodie Comer), entre outros ingredientes, explicam o interesse que a série despertou. Entretanto, gostaria de ressaltar um outro aspecto de Killing Eve.
Óbvio que a violência é um componente importante nas histórias ali contadas - afinal, uma das protagonistas é uma psicopata cuja profissão é justamente matar pessoas. O sexo, entretanto, é um outro elemento muito bem explorado, mesmo que quase não haja cenas representando o ato.
A começar por Villanelle, constantemente reclamando de tédio. Ser bem paga, vestir-se esplendorosamente bem, viajar por importantes cidades europeias - além do êxtase que devia experimentar na execução dos assassinatos -, tudo isso mostra-se insuficiente para aplacar seu fastio. Como costuma acontecer com os psicopatas, os outros seres humanos são para ela apenas objetos ou peças às vezes úteis para alcançar certas finalidades (entre estas, a satisfação sexual), exceção para Konstantin e, claro, Eve Polastri, pelos quais demonstra emoções diferentes. É na tensão, inclusive erótica, entre ela e Eve que acontecem alguns dos momentos mais marcantes da série.
A propensão para o sexo, no princípio, não parece ser um traço acentuado em Eve, mas isso vai mudar, à medida que, por meio de avanços e recuos, as coisas se intensificam na sua busca por Villanelle. Ela também ficará mais violenta: a mulher que atira na cabeça de um dos líderes dos "12" na última temporada difere daquela analista do MI5/MI6 dos primeiros episódios, brilhante mas meio desajeitada, observando fotos e relatórios dentro de um escritório mixuruca. E o espectador concorda com a criminosa quando ela diz a certa altura que Eve só se tornou uma pessoa mais interessante por causa dela, Villanelle.
E o que dizer da personagem Carolyn Martens (ótima atuação de Fiona Shaw), com amantes que ocuparam (e ocupam) cargos na diplomacia e nas agências de inteligência estrangeiras, aos quais ela poderá recorrer - ou usar - se necessário?
Estava marginalmente pensando nisso - não tem muito a ver, eu sei - enquanto lia Simpatia pelo demônio, romance de Bernardo Carvalho publicado em 2016 pela Companhia das Letras.
No mesmo ano de lançamento, o escritor deu uma curta entrevista para o Correio Braziliense. Quando perguntado se era possível dizer que o livro é sobre as relações de domínio, afirmou:
"Toda relação amorosa tem um pouco a questão do poder. Em toda questão sexual e afetiva, querendo ou não, o poder está embutido. Nas relações sexuais, sobretudo nas fantasias sexuais, a coisa do poder está muito presente, da pessoa que se submete e da outra que domina, isso faz parte das perversões, das taras".
Nunca pesquisei a respeito, mas suponho que a associação entre sexo e poder deve ser o tema central de diversos textos, ficcionais ou não, assim como a associação entre sexo e violência (pois o poder muitas vezes se manifesta violentamente).
Em Simpatia pelo demônio, são contadas duas histórias, vividas pelo mesmo personagem (o Rato) : a tentativa do pagamento de um resgate numa zona de guerra em algum lugar do Oriente Médio e um relacionamento amoroso que culmina na derrocada de um dos sujeitos.
Carvalho é conhecido por conjugar diferentes vozes narrativas em alguns de seus livros. Neste romance, contudo, temos, aparentemente, um único narrador em terceira pessoa. Digo aparentemente porque há uma certa mudança de registro quando se olha para determinadas partes da narrativa. Na primeira (A agência humanitária) e na última (O resgate), em que a ação predomina, o leitor depara-se com um narrador mais convencional, direto. Nas três partes intermediárias (sobretudo em Perdeu), o tom adotado me pareceu ligeiramente mais zombeteiro (sem ser cômico, porém) e o foco passa a ser o sofrimento e a desilusão do Rato após conhecer e se apaixonar pelo - assim alcunhado - chihuahua. A marca, digamos, cosmopolita do autor permanece, situando os acontecimentos em diferentes lugares do planeta: Berlim, Rio de Janeiro, Nova York, uma região não especificada do Oriente Médio...
No livro, o protagonista acabou seguindo, em seu malogrado caso,
"o manual do homem de meia-idade que, inconformado com a decadência natural, termina por se adiantar à morte, achando que está renovando um contrato com a vida. Tendo reduzido a vida a uma série de desilusões, só lhe resta um remédio para voltar a viver: nascer de novo, se apaixonar de novo, mas com a intensidade de um inocente - pela primeira vez, o que é impossível"
Acaba ficando a mercê de um parceiro mais jovem (o chihuahua), narcisista e maldoso, acostumado a manipular seus amantes. O Rato trabalhava em uma agência humanitária que atuava em áreas de conflito armado pelo mundo. Escrevera uma tese de doutorado em que se debruçava sobre as causas da violência. Nada disso conseguiu salvá-lo de um relacionamento altamente destrutivo: "O Rato havia se preparado profissionalmente para as guerras, mas era um amador nas questões amorosas [...] A valentia na guerra encobria uma vulnerabilidade íntima e irremediavelmente imatura. Corria menos riscos na guerra do que na vida amorosa".
Em um trecho do livro, o narrador nos diz que, durante uma viagem de cerca de dois anos, algo aconteceu ao personagem central, ainda jovem, que o levou "a buscar a violência e a combatê-la de perto". Não nos é revelado o que aconteceu nesse período. A motivação estava mais ligada a "uma fuga e um desvio do que lhe era insuportável" do que qualquer outra justificativa. Para o Rato, "era mais fácil combater o mal onde ele já se encontrava definido e circunscrito", como nas diversas zonas de guerra espalhadas pelo globo. Mas o que fazer quando o mal nos chega de forma insidiosa, em alguém que (falsamente) não oferece perigo e que (pelo menos na superfície) parece ter afeição por nós?
Ainda que não figure entre os meus favoritos na obra de Bernardo Carvalho, Simpatia pelo demônio está muito longe de ser um livro que se lê apenas para desenfadar-se. Penso em trazê-lo de volta aqui assim que eu der conta de outras leituras proteladas.
BG de Hoje
O heavy metal (um gênero de que gosto, aliás) costuma ser muito repetitivo, não conseguindo escapar de certos clichês (mas, para ser franco, que vertente não é assim dentro da indústria musical?). De vez em quando, porém, aparecem grupos com um tipo de approach que, se não significa algo totalmente distinto do som habitual, pelo menos traz algum frescor. Foi o caso da banda nova-iorquina HELMET, que lá na década de 1990, explodiu com o disco Meantime, com destaque para a excelente faixa Unsung