quarta-feira, 31 de maio de 2023

Rir com Macunaíma

A expressão leitura obrigatória, preciso admitir, não é das mais simpáticas. Há bons motivos para não gostarem dela. Não obstante, costumo advogar por certas leituras obrigatórias...

Anteontem, início da madrugada, fui reler mais uma vez o Macunaíma. De repente, lá estou eu rindo sozinho no encontro do protagonista e seus irmãos com o "bacharel de Cananeia" ¹:

"Correndo correndo, légua adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananeia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:

- Como vai, bacharel?

- Menos mal, ignoto viajor.

- Tomando a fresca, não?

- C'est vrai, como dizem os franceses.

- Bem, té logo bacharel, estou meio afobado...

E chisparam outra vez. [...]"

Ri sozinho também naquele que considero o capítulo mais engraçado em todo o livro - o décimo, A velha Ceuci. Um trecho:

"Uma madalena que estava na frente do herói virou pro comerciante atrás dela e zangou:

- Não bolina, senvergonha!

O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e:

- Que 'não bolina' agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgóia!

- Lincha o bolina! Pau nele!

- Pois venham, cafajestes!

E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem alto loiro muito lindo. E o homem era um grilo [ou seja, guarda de trânsito, em gíria antiga]. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo".

O poeta Frederico Barbosa (hoje talvez mais conhecido por seus trabalhos como gestor cultural) fez uma observação, quase ao final do episódio Mário de Andrade: reinventado o Brasil (daquela série de programas bacana da TV Escola, Mestres da Literatura, veiculada há alguns anos, encontrável no Youtube), que vale muito comentar:

"Acho que é fundamental ler o Macunaíma, Amar, verbo intransitivo [...], Ode ao Burguês, porque é divertido. Isso eu acho uma coisa fundamental. Os professores de Literatura em geral falam: 'é preciso ler porque é importante'. Acho que eles não gostam de ler. É preciso ler porque é divertido. É preciso ler porque é gostoso. Porque você dá muita risada com o Macunaíma".

Posso falar por mim: não importa quantas vezes volte a suas páginas, o sorriso vem fácil em várias passagens da saga do "herói de nossa gente". Nesse ponto, estou de pleno acordo com Barbosa. O dissenso se dá na maneira como ele vê a atuação dos professores de Literatura em geral.

De fato, alguns deles e algumas delas podem mesmo não gostar de ler: trabalham com Literatura porque foi a ocupação que apareceu, precisam pagar as contas e, num meio educacional bastante falho como o brasileiro, as coisas são assim. Também existem outros e outras que adoram ler, mas, por vários fatores, não conseguem transmitir esse entusiasmo ². E há também vários e várias que enfatizam a importância de determinadas obras - ao invés de favorecer a fruição - e isso não deveria ser um problema.

Em março de 2016, fiz uma postagem discutindo, entre outros tópicos, o título Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. Na época, eu ainda tinha disposição para debater assuntos educacionais e trabalhava diretamente com promoção e incentivo à leitura. Repito aqui uma das citações da pesquisadora de Barcelona de que fiz uso naquela ocasião:

"Talvez tenhamos de reconhecer que, para muitas pessoas, este último acesso à leitura só terá lugar no contexto escolar e como experiência pontual. Ler enriquece a todos até certo ponto, mas como diz o escritor catalão Emili Teixidor, para certas obras o leitor não apenas precisa de ajuda, mas um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber'. Nem todo mundo, nem sempre, o deseja. É útil pensar a educação literária como uma aprendizagem de percursos e itinerários de tipo e valor muito variáveis. A tarefa da escola é mostrar as portas de acesso".

A literatura, como manifestação artística, não chega a todos da mesma forma (isso vale para todas as outras formas de arte, penso eu). Existem obstruções sérias nessa via leitor-texto literário que impedem qualquer possibilidade de fruição e de diversão. Temos desde a trajetória escolar acidentada (é comum encontrar estudantes no Ensino Médio incapazes de compreender textos que não sejam os mais elementares), até uma aversão imotivada aos livros, sem contar o desinteresse puro e simples (em tempo: ninguém é obrigado a gostar de literatura, obviamente).

Às vezes, fico muito incomodado com essas mensagens do tipo "ler é dar asas a imaginação" ou "ler é viajar", referindo-se ao prazer que um bom poema, conto ou romance podem, supostamente, proporcionar. Há o lado do "trabalho" do leitor que frases como essas, convenientemente, ocultam. Esse "trabalho" implica não só a decodificação propriamente dita do texto, mas a concentração, certa disciplina e persistência, comuns a todos os leitores assíduos, mas que precisam ser desenvolvidas e cultivadas nos leitores ocasionais e nos não-leitores, que não as têm. Além disso, como diz Teixidor no excerto acima, se o indivíduo não apresentar uma certa "disposição de ânimo de 'querer saber'", determinados livros nunca farão parte de seu repertório cultural.

Por mais que a educação básica seja insatisfatória, a escola, a meu ver, não erra quando ressalta a importância de alguns livros de prosa ficcional ou de poesia em relação a outros e os explora didaticamente. Pode-se questionar se essa ação está sendo bem realizada ou não, mas a iniciativa em si é válida, acredito.

Clássicos como o Macunaíma costumam ser uma dessas obras abordadas no Ensino Médio (deveriam mesmo ser, porque são importantes), mas que acabaram tendo seu alcance diminuído sendo vistas, infelizmente, apenas como objeto de estudo. Pessoalmente, acho que é um livro meio obrigatório para qualquer brasileiro (ou qualquer estrangeiro interessado nesse país) disposto a entender o que faz o Brasil ser o que é.

Gostaria, contudo, que as pessoas também consigam sorrir ao lê-lo, porque é mesmo pra dar risada.

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Pretendo voltar ao Macunaíma assim que for possível para fazer uma análise mais cabeçuda, que não se encaixaria na discussão da postagem de hoje.

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¹ ANDRADE, Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. 30 ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1997 [Texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez]. Todas as citações da obra nesta postagem foram extraídas dessa edição

² Ana Maria Machado, numa entrevista publicada há uns 20 anos (infelizmente, não tenho mais o exemplar da extinta revista Educação para apontar a referência), falou sobre a dificuldade de se estabelecer uma didática eficiente do ensinar a ler Literatura. Na ocasião, ela disse que talvez o melhor seja tentar "transmitir um entusiasmo", mais do que basear-se em uma metodologia (sem, entretanto, desconsiderar a importância desta).

BG de Hoje

O TERNO seria uma das poucas bandas pelas quais eu estaria disposto a quebrar meu jejum de quase 20 anos sem ir a qualquer show de música. Canções como Zé, assassino compulsivo parecem funcionar muito bem ao vivo.