sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Histórias, narrativas e discursos (I)

"Mas as histórias, mesmo as melhores e mais verídicas, não podem nos salvar de nossa loucura. As histórias não podem nos proteger do sofrimento e do erro, de catástrofes naturais ou humanas, de nossa própria cobiça suicida. O máximo que podem é, por vezes e por razões impossíveis de prever, fazer com que percebamos essa loucura e essa cobiça e voltemos um olhar vigilante para nossas tecnologias cada vez mais perfeitas. As histórias podem nos oferecer consolo para nosso sofrimento e nomes para nossa experiência. As histórias podem nos dizer quem somos, o que são essas ampulhetas pelas quais passamos, como podem nos ajudar a imaginar um futuro em que, sem finais felizes e confortáveis, possamos continuar vivos e juntos nesta terra tão devastada".

 Alberto Manguel - A cidade das palavras 

 

Costumava contar histórias no trabalho.

Isso terminou em 2019.

A prefeitura do município - a empregadora - extinguiu o cargo que eu ocupava e criou um outro, praticamente me obrigando a ir cumprir tarefas num setor cujas incumbências em quase nada se assemelham às funções que vinha exercendo há mais de 20 anos. Toda uma experiência de prestação de serviço depreciada por uma decisão administrativa, a meu ver, discutível... 

Fazer o quê?

Nunca fui um contador de histórias especialmente talentoso, mas também não era dos piores. Comecei no ano 2000, animado por um Curso de Formação de Mediadores de Leitura, da Fundação Abrinq (mencionei-o aqui).

Pode ser um purismo desnecessário, mas penso que se deve fazer uma distinção. Em certas ocasiões, não me preocupava nem um pouco em reproduzir ipsis litteris o texto-base: achava melhor incluir variações ou "cacos", para me aproximar da espontaneidade da fala. Os contos infantis Tampinha (de Angela Lago) e Rumpelstiltskin (compilado pelos Irmãos Grimm), entre vários outros, eram alguns dos que cabiam melhor na estratégia. Nesse caso, então, preferia dizer que estava contando uma história. Noutros momentos, pensava que o mais acertado era oferecer os textos-base sem alterações. Tratava-se de uma leitura direta (com uns toques teatrais) dos livros que continham as histórias. Este admirável mundo louco (Ruth Rocha), Os pestes (Roald Dahl) e A fogueira (Jack London) são algumas das muitas que já apresentei dessa forma (a última teve recepção surpreendentemente positiva em turmas da educação de jovens e adultos com as quais trabalhei). Nessas vezes, gostava de dizer que estava narrando uma história.

Tanto o contar quanto o narrar histórias têm seus préstimos. Creio que ambas as ações contribuem para um aprendizado da escuta - essa faculdade tão rara de se achar em pessoas de qualquer idade. Além disso, falando especificamente do narrar, estou entre aqueles que acredita ser fundamental ler textos em voz alta para outras pessoas, sobretudo para aquelas que não têm uma grande bagagem literária e não percebem como o ritmo da leitura, as inflexões na voz (mesmo aquela "voz interna" que muitos de nós empregamos quando lemos silenciosamente) ou a observação correta da pontuação são muito relevantes para o entendimento daquilo que se comunica por escrito.

Não faço ideia de como se deu o processo que levou os humanos, lá no Paleolítico, a iniciarem o desenvolvimento de algo tão magnífico como a linguagem verbal articulada. E o que considero ainda mais prodigioso: como foi que evoluíram a ponto de serem capazes não só de comunicar necessidades imediatas e dar orientações práticas, mas de expressar abstrações e criar metáforas, imaginar personagens e enredos, usar as palavras para jogar com as noções de passado e de futuro apenas pelo prazer de contar histórias e compor ficções?

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Dos mitos cosmogônicos às fanfics, da epopeia de Gilgamesh às teorias da conspiração, do Dom Quixote aos RPGs (role-playing games), o fato é que os agrupamentos humanos sempre demandaram histórias.

Aedos, rapsodos, menestréis, trovadores, griots, poetas, romancistas, dramaturgos, roteiristas. Seja na forma oral ou usando o cálamo, a pena, a caneta, o teclado, sempre haverá pessoas dispostas a difundir narrativas nascidas da fabulação e da invencionice.

Mas os sentidos de termos como história e narrativa parecem-me um pouco amesquinhados hoje em dia, tal como os vejo sendo usados no meio empresarial, no marketing, no jornalismo e na política profissional/institucional.

Pretendo explicar isso melhor na próxima postagem e também sugerir que passemos a falar mais a palavra discurso no dia-a-dia.

BG de Hoje

Posso estar puto, triste, mas basta eu ouvir Colors, do BLACK PUMAS, e o mundo deixa de ser a desgraça que é (pelo menos nos minutos que dura a canção). Eric Burton canta demais e o Adrian Quesada... bem, escutem o solo dele no vídeo abaixo. Há poucas semanas, o projeto PLAYING FOR CHANGE também fez sua versão de Colors, com participação não só de Burton e Quesada, mas também do Slash.

 


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Falou e disse...

"Well, I come from—as you said, I grew up in the hood. And so, when we think about these communities that we care about, the communities that have been so-called devastated by drugs of abuse, I believed that narrative for a long time. In fact, I’ve been studying drugs for about 23 years; for about 20 of those years, I believed that drugs were the problems in the community. But when I started to look more carefully, started looking at the evidence more carefully, it became clear to me that drugs weren’t the problem. The problem was poverty, drug policy, lack of jobs—a wide range of things. And drugs were just one sort of component that didn’t contribute as much as we had said they have.

[...]

People get addicted for a wide range of reasons. Some people have co-occurring or other psychiatric illnesses that contribute to their drug addiction. Other people get addicted because that’s the best option available to them; other people because they had limited skills in terms of responsibility skills. People become addicted for a wide range of reasons. If we were really concerned about drug addiction, we would be trying to figure out precisely why each individual became addicted. But that’s not what we’re really interested in. We are interested, in this society, of vilifying a drug. In that way, we don’t have to deal with the complex issues for why people really become addicted". *  **


* Afirmações do psicólogo e neurocientista estadunidense Carl HART, feitas durante entrevista para a organização jornalística Democracy Now!, publicada em 06/01/2014 ("Drugs aren't the problem", disponível aqui). Li essas afirmações há alguns anos e desde então constato como nossas sociedades disfuncionais lidam mal com a questão das drogas (lícitas ou ilícitas), sobretudo em relação às parcelas mais pobres da população. Ao invés de se olhar para o consumo abusivo de drogas como assunto de saúde pública, muitas vezes ligado a problemas sociais e econômicos ou à ausência de ações preventivas eficazes por parte do Estado, prefere-se adotar uma postura moralista, com repressão violenta aos usuários (àqueles que consomem substâncias consideradas ilegais, pois há muita complacência com o álcool, mesmo quando se sabe o quanto ele é danoso - a propósito, eu sou alcoólatra). Isso tudo sem falar no temor de se discutir franca e abertamente a possibilidade de descriminalização de alguns (ou, quem sabe, de todos os) entorpecentes e na insistência com a malsucedida "guerra às drogas" (que é, na verdade, uma guerra aos pobres). Sugiro também ao(à) eventual leitor(a) o documentário Crack: cocaína, corrupção e conspiração, no catálogo da Netflix. 

** [Tradução aproximada: "Bem, eu vim - como você disse, eu cresci na periferia. E assim, quando nós pensamos nessas comunidades com as quais nos importamos, as comunidades que têm sido chamadas de devastadas por drogas de abuso, eu acreditei nessa narrativa por um longo tempo. Na verdade, eu venho estudando drogas por cerca de 23 anos, por cerca de 20 desses anos, eu acreditei que as drogas eram os problemas na comunidade. Mas quando eu comecei a olhar mais cuidadosamente, comecei a olhar as evidências mais cuidadosamente, tornou-se claro para mim que as drogas não eram o problema. O problema era pobreza, a política de drogas, a falta de empregos - uma amplidão de coisas. E drogas eram apenas um componente que não contribuía tanto quanto nós dizíamos.

[...]

Pessoas ficam viciadas por uma amplidão de motivos. Algumas pessoas têm doenças psiquiátricas ou outras concomitantes que contribuem para seu vício em drogas. Outras pessoas ficam viciadas porque essa é a melhor opção disponível para elas: outras porque são limitadas em termos de capacidade de ser responsáveis. As pessoas se tornam viciadas por uma amplidão de motivos. Se nós estivéssemos realmente preocupados com o vício em drogas, nós estaríamos tentando descobrir precisamente por que cada indivíduo se tornou viciado. Mas não é nisso que estamos realmente interessados. Estamos, nessa sociedade, interessados em maldizer uma droga. Desse modo, não temos que lidar com questões complexas de por que as pessoas realmente se tornam viciadas".]