quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Falou e disse...

 (Sobre os ateus)

"E aqui está o ponto, acerca de mim mesmo e de meus copensadores. A nossa crença não é um credo. Nossos princípios não são uma fé. Não nos baseamos unicamente na ciência e na razão, porque estas são fatores necessários mas não suficientes, mas desconfiamos de qualquer coisa que contradiga a ciência ou afronte a razão. Podemos diferir em muita coisa, mas o que respeitamos é a livre inquirição, a mente aberta, e a busca das ideias por elas mesmas. Não sustentamos nossas convicções de forma dogmática: [...] Não somos imunes à sedução do prodígio, do mistério e da reverência: temos música, arte e literatura, e achamos que os dilemas éticos sérios são mais bem tratados por Shakespeare e Tolstói, Schiller e Dostoiévski e George Eliot do que nos contos de moralidade míticos dos livros sagrados. A literatura, e não a escritura, sustém a mente e - já que não há outra metáfora - também a alma. Não acreditamos em céu ou inferno, todavia nenhuma estatística jamais concluirá que sem essas lisonjas ou ameaças cometemos mais crimes de cobiça ou violência que os fiéis. (Na verdade, se fosse possível fazer algum dia uma pesquisa estatística apropriada, estou seguro de que a evidência indicaria exatamente o contrário.) Nós aceitamos o fato de viver apenas uma vez, a não ser por meio dos nossos filhos, para os quais ficamos felizes em observar que devemos abrir caminho e dar espaço. Nós especulamos que é no mínimo possível que, uma vez que as pessoas aceitem o fato de suas vidas breves e árduas, elas possam se comportar melhor umas em relação às outras, e não pior. Acreditamos com certeza que uma vida ética pode ser vivida sem religião. E sabemos como fato que o corolário também vale - a religião tem levado inúmeras pessoas não só a se conduzir pior que outras, mas a lhes conceder permissão para se comportar de maneiras capazes de franzir a testa de uma dona de bordel ou de um responsável por limpeza étnica". *

* HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo Livros, 2016. p. 18-21 [Tradução de George Schlesinger]

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Quando se deixa de ser quem se pensava ser?


Na infância (até por volta dos 12-13 anos e a despeito de ser um negro pobre), imaginava que me tornaria veterinário na vida adulta.

Eu tinha afeição pelos animais domésticos e muita curiosidade pelos que vivem na natureza. Lembro-me de ter conseguido comprar, no começo dos anos 1980, todos os 40 fascículos da Zoo (publicação da Rio Gráfica Editora, se não me engano), lançados semanalmente nas bancas de jornais. Achava a coleção muito bacana, bem ilustrada e com boas fotos. Cada fascículo era dedicado a uma família de animais ou, às vezes, mais de uma, dependendo da proximidade delas dentro da ordem ou da classe a que pertenciam. Havia informações sobre o tipo de alimentação de cada bicho, sobre seus habitats. Achava o máximo saber o nome científico das espécies. Olhando retrospectivamente, talvez o que eu pensava ser "quando crescesse" era tornar-me biólogo, não veterinário, mas esse discernimento me faltava naquela época.

E hoje?

Não sou nem uma coisa nem outra - até porque, no tempo da escola, eram vergonhosas minhas notas em ciências,  nem a Biologia salvava (e a pobreza continuou).  Detesto cachorros e gatos (e tenho vontade de esganar quem se declara ou se comporta como "mãe (ou pai) de pet"). Quanto aos animais selvagens, só me dou conta deles quando assisto a algum documentário com essa temática na TV, domingo pela manhã (são ótimos quando se acorda de ressaca).

Acredito que não tenho nada a ver com a criança que um dia fui - e não só por causa do lance profissional.

Com sinceridade, espanto-me toda vez ao ouvir alguém dizer que "desde pequeno(a) sabia que no futuro iria virar isso ou aquilo" ou quando afirma "ter os mesmos traços de personalidade desde a meninice". Como conseguiram?

É bom avisar que essa arenga não é culpa de Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza (Editora Cosac Naify, 2013). Ainda assim, lendo-o, fiquei me perguntando: quando é que se deixa de ser quem pensávamos ser? Pondo de lado os assombrosos indivíduos que, adultos hoje, pensam ser a projeção (com poucas variações) do que eram quando crianças, creio que um considerável número de pessoas (como este blogueiro), de vez em quando, fica um pouco (ou muito) atônito a tentar descobrir quando, em que momento, apareceu esse eu de agora, tão dessemelhante de seus eus anteriores, principalmente do eu criança.

O personagem central de Aos 7 e aos 40, a certa altura, diz estar "habituado a ver nos homens o menino que continham, assim como via em si, sempre, o garoto que fora um dia". Capacidade invejável. Ou não.

O romance é dividido em 12 capítulos, cujos títulos antitéticos (Nunca mais e Para Sempre; Silêncio e Som, etc.) reforçam a divisão espacial das páginas, realçada por tons de cores distintos. O artifício (que se quer engenhoso, mas, em minha opinião, pueril) marca a alternância do foco narrativo: ora o narrador, em primeira pessoa, relembra momentos da infância, ora fala do presente, já adulto, em terceira pessoa.

Uma observação.

Uso o termo romance a contragosto (na falta de outro vocábulo), muito embora resenhas classifiquem assim esse trabalho de Carrascoza, bem como é o que está na CIP do volume de que disponho. Penso, contudo, faltar ao livro a encorpadura que se espera das narrativas usualmente categorizadas como romances. Em entrevista publicada em 2018, no site da Biblioteca Nacional, recuperou-se uma declaração do autor, ex-publicitário e atualmente professor na ESPM e na USP, que dissera usar "a rapidez da propaganda para deixar o texto literário menos gorduroso e a literatura para não fazer propaganda convencional". Carrascoza fala então em "texto justo, sem excessos" e que este é "um aliado atraente para tocar o leitor". Essa estratégia parece estar dando certo para ele, a contar pelos prêmios recebidos. O que não me impede de achar o romance de que estamos falando meio ralo. O escritor, a meu ver, tem se saído melhor como contista.

Algumas palavras sobre as seções que fecham o livro.

Há um belo paralelismo nas páginas finais. No penúltimo capítulo (Fim), o narrador diz:

"Para mim [quando menino], havia o dia (a escola, os amigos, as brincadeiras) e a noite; mas a noite não era o fim do dia, a noite (o medo, o cansaço, o sono) era apenas uma longa e escura hora antes de um novo dia".

No último (Recomeço), faz outra avaliação, agora adulto:

"Para ele, àquela altura, havia o presente (o trabalho, a solidão, o menino) e todas as ausências (o pai, a mãe, a mulher) e elas aumentavam a cada ano, os dias eram apenas uma longa e iluminada hora entre duas noites".

Enquanto a criança ainda olha para o mundo com uma certa expectativa animada, o homem crescido já sabe que "a vida era o que era [...] tudo no caminho é para ficar lá atrás, as pessoas carregam só aquilo que deixam de ser, o presente é feito de todas as ausências". Mesmo assim ele decide rever o lugar da infância, tentado reencetar a rota de sua existência.

Conseguirá? 

BG de Hoje

Não é das minhas bandas preferidas, mas o WEEZER, admito, grava umas coisas sensacionais vez ou outra. Por exemplo, Do You Wanna Get High?