Ao responder a pergunta O que pode a literatura? ¹, o historiador, filósofo e crítico literário Tzvetan Todorov afirmou que, assim "como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana". Nós, os leitores, ao abrirmos uma obra literária, sabemos que estamos diante de um relato ou de um conjunto de versos resultante de um esforço imaginativo; ainda assim, quantas e quantas vezes um texto inventado não foi diretamente ao encontro de nossa reflexão e de nossas emoções, como se revelasse algo que já havíamos sentido e pensado, mas que até então não havíamos encontrado verbalmente expresso de tal forma?
A ficção literária, entretanto, tem ainda outra imensa virtude: a capacidade de nos predispor para a compreensão e aceitação da alteridade. Todorov observa que,
"Num estudo recente [2001], o filósofo americano Richard Rorty propôs caracterizar diversamente a contribuição da literatura para a nossa compreensão do mundo. Ele recusa o uso de termos como 'verdade' ou 'conhecimento' para descrever essa contribuição, afirmando que a literatura faz menos remediar nossa ignorância do que nos curar de nosso 'egotismo', termo entendido como uma ilusão de autossuficiência. A leitura de romances, segundo ele, tem menos a ver com a leitura de obras científicas, filosóficas ou políticas do que com outro tipo bem distinto de experiência: a do encontro com outros indivíduos. Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. Essa amplitude anterior (semelhante sob certos aspectos àquela que nos proporciona a pintura figurativa) não se formula com o auxílio de proposições abstratas, e é por isso que temos tanta dificuldade em descrevê-la; ela representa, antes, a inclusão na nossa consciência de novas maneiras de ser, ao lado daquelas que possuímos. Essa aprendizagem não muda o conteúdo do nosso espírito, mas sim o próprio espírito de quem recebe esse conteúdo; muda mais o aparelho perceptivo do que as coisas percebidas. O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido, eles participam mais da moral do que da ciência".
Com essas considerações em mente, voltemos a falar do Grande sertão: veredas, obra que estamos discutindo desde a postagem anterior.
O tipo ideal ³ predominantemente retratado no romance é o jagunço. Os personagens de destaque (com poucas exceções, como Otacília e Nhorinhá) estão nessa categoria, inclusive o narrador-protagonista (muito embora, em vários momentos da narrativa, Riobaldo questione o seu pertencimento à jagunçaria).
Ora, e o que são esses indivíduos? Guarda-costas e pistoleiros a serviço dos coronéis do meio rural ou bandoleiros de estrada. Numa palavra: criminosos.
Se a boa ficção literária não nos permitisse transcender as interpretações moralistas taxativas (nos facultando "encontrar outras pessoas", através dos personagens que "ampliam nosso horizonte", sobretudo os que não se parecem conosco), como absorveríamos o longo e intrincado monólogo de Riobaldo - que matou, estuprou, extorquiu, roubou? Penso então ser este o momento propício para mencionar duas passagens que aprecio muito no Grande sertão: veredas.
Na primeira delas, Riobaldo conversava com um camarada de armas, Jõe Bexiguento, e começa a matutar:
"Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço - criatura para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente.
- 'Uai?! Nós vive...' - foi o respondido que ele me deu.
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um que estava com sua rede ali próximo, decerto acordou com meu vozeio, e xingou xíu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado..."
"Uai?! Nós vive...". É como se Jõe Bexiguento dissesse: "Nós também somos seres humanos" ou, para usar uma expressão que talvez agradasse a uma pessoa bastante religiosa (como era Guimarães Rosa), "Nós também somos filhos de Deus". De fato, "este mundo é muito misturado" e querer olhá-lo de forma puramente maniqueísta, com "todos os pastos demarcados", talvez não seja a melhor maneira de tentar lidar com ele (o que nos remete à inquietude de Riobaldo, especulando constantemente sobre a existência ou não do Diabo).
Na segunda passagem, o bando, neste momento sob a chefia de Zé Bebelo, arranchara-se durante vários dias num local chamado a Coruja. Alguns dos jagunços estavam doentes. Além disso, Zé Bebelo parecia não ter certeza do que fazer. Riobaldo conversa com companheiros mais próximos. É quando um tal de Sidurino sugere que o que eles deveriam fazer mesmo era promover um ataque qualquer a "alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois vadiando...". Atenção para o excerto a seguir:
"[...] Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpêjo, e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães - eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu - o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano.
A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez! Aí, para mim - que não tenho rebuço em declarar isto ao senhor - parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o tanto dizer, mas assim foi que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente! E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro".Muitos tendem a considerar humanos apenas os nossos sentimentos e gestos tidos como bons. A passagem acima, entretanto, nos lembra que ser humano é também "cometer ruindades", sendo para alguns, como os jagunços, "questão natural", desobrigada de arrazoados éticos ou morais. Tudo se torna ainda mais grave num território fora da lei, como o sertão "onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal", lembrando um dos trechos mais famosos do livro de Rosa.
Mas, mesmo nesse lugar de despotismo e violência, um arremedo de ação legal, urdido e conduzido por facínoras, se deu...
Termino esta série de postagens na próxima semana.
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¹ TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.
² Emprego aqui, de maneira não rígida, o conceito sociológico de tipo ideal, ou seja, não se trata de um reflexo da realidade, mas um modelo que reúne traços essenciais do fenômeno/ente que se quer representar. É bom lembrar, contudo, que vários dos jagunços de Rosa escapam à simplificação inerente ao conceito de tipo ideal.
³ ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
BG de Hoje
Tenho muitas lembranças de infância associadas a dois discos do grupo pernambucano QUINTETO VIOLADO: Berra-Boi (1973) e Folguedo (1975). Passados tantos anos, não sei ao certo quem os comprara, se minha mãe ou minha irmã mais velha. Só sei que esses discos ficaram bem gravados na minha memória musical. No primeiro álbum, encontra-se a belíssima canção Vaquejada.