"Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressuponha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos".
Do narrador de A peste (Albert Camus)
Nesses dias de enfrentamento/prevenção da pandemia global de COVID-19, encontrei em pelo menos cinco diferentes textos publicados na imprensa nas últimas semanas (uns mais bem escritos do que outros) menções ao célebre romance A peste, de Albert Camus.
Achei propício relê-lo, então.
A história imaginada se passa na cidade de Oran, situada na costa argelina. Uma cidade, aliás, não muito diferente de milhares mundo afora, onde o principal é "ganhar dinheiro" - pessoas trabalham de manhã à noite para "optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viverem" ¹.
Ratos moribundos começam a surgir dentro das casas e nas ruas. Com o passar dos dias, o número de roedores mortos aumenta consideravelmente, até estabilizar-se e - sem qualquer explicação - começar a decair em seguida. A certa altura, os repulsivos animais deixam de ser vistos.
É quando irrompem, entre os habitantes de Oran, os sintomas de uma grave doença, altamente letal, trazendo grande preocupação para o médico Bernard Rieux, a figura central da narrativa.
Apesar de ser a crônica de um surto epidemiológico e todos os infortúnios decorrentes de tal conjuntura, A peste, lançado em 1947, é um livro otimista, em última análise. Vale lembrar que no "plano" estabelecido para sua obra, Camus situa-o entre os textos que expressam o positivo (antes, o escritor já havia trabalhado a negação, por exemplo, n'O estrangeiro e n'O mito de Sísifo e pretendia, numa terceira fase, dedicar-se à temática do amor, mas tudo foi interrompido em 1960, quando faleceu num acidente de automóvel). É famosa aquela passagem nos últimos parágrafos do romance: "[...] há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar".
Texto do pós-guerra, A peste pode ser lido alegoricamente - em carta destinada ao então jovem crítico literário Roland Barthes, Camus deixa isso bem claro ao afirmar que o romance "tem como conteúdo evidente a luta europeia contra o nazismo" e que trechos do livro foram antecipados em boletins de combate publicados para os grupos da Resistência. Está aí outra razão para relê-lo: com a ascensão e chegada ao poder, nos últimos anos, do pensamento político desumanizante (no Brasil e noutros lugares do planeta), talvez aprendêssemos alguma coisa com a tenacidade e a integridade de Rieux e Tarrou.
Por falar nesses dois personagens, gostaria de destacar duas passagens de A peste, em especial.
A primeira se encontra no sétimo capítulo, da segunda parte (no total, o romance se divide em cinco partes), momento em que o flagelo já havia se tornado "um problema comum a todos nós". Jean Tarrou, morador não muito antigo de Oran - de cuja vida passada pouco se conhecia -, solicita uma conversa com o médico, que liderava as ações de combate à doença. Tarrou faz uma proposta: organizar grupos voluntários para auxiliar no que fosse possível. A proposta é aceita, dada a grande necessidade de ajuda. Mas Rieux adverte ao proponente que esse trabalho pode ser mortal. O outro dá a entender que não se importa com isso. Os dois personagens continuam a conversa. É quando Tarrou pergunta:
" - Por que o senhor mesmo demonstra tanta dedicação, já que não acredita em Deus? Sua resposta talvez me ajude a responder [a pergunta feita anteriormente pelo médico, se Tarrou havia pensado bem em todos os riscos que estaria correndo com o seu trabalho voluntário]".
A resposta de Rieux não vem de imediato. Ele reflete sobre o objetivo de sua profissão, sobre os fatores que o encaminharam para ela. Até chegar a uma conclusão (pelo menos parcial). Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para o excerto abaixo:
Então surge esse lindíssimo trecho (peço de novo a atenção do(a) eventual leitor(a)):
Tudo isso, porém (como dissera Rieux acima), não é razão para deixar de lutar. Ainda mais quando se tem que alertar e convencer muitas mentes obtusas da gravidade de determinadas situações e eventos - que são óbvios para nós, mas essas mentes se negam ou são incapazes de reconhecer que "dois e dois são quatro". E que ao saber disso, é preciso fazer algo a respeito.
Mesmo para um pessimista crônico como eu, a leitura de A peste nunca é um exercício infecundo.
Em breve, comentarei aqui no blog o livro A poesia e a crítica, do Antonio Cicero.
__________Ratos moribundos começam a surgir dentro das casas e nas ruas. Com o passar dos dias, o número de roedores mortos aumenta consideravelmente, até estabilizar-se e - sem qualquer explicação - começar a decair em seguida. A certa altura, os repulsivos animais deixam de ser vistos.
É quando irrompem, entre os habitantes de Oran, os sintomas de uma grave doença, altamente letal, trazendo grande preocupação para o médico Bernard Rieux, a figura central da narrativa.
Apesar de ser a crônica de um surto epidemiológico e todos os infortúnios decorrentes de tal conjuntura, A peste, lançado em 1947, é um livro otimista, em última análise. Vale lembrar que no "plano" estabelecido para sua obra, Camus situa-o entre os textos que expressam o positivo (antes, o escritor já havia trabalhado a negação, por exemplo, n'O estrangeiro e n'O mito de Sísifo e pretendia, numa terceira fase, dedicar-se à temática do amor, mas tudo foi interrompido em 1960, quando faleceu num acidente de automóvel). É famosa aquela passagem nos últimos parágrafos do romance: "[...] há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar".
Texto do pós-guerra, A peste pode ser lido alegoricamente - em carta destinada ao então jovem crítico literário Roland Barthes, Camus deixa isso bem claro ao afirmar que o romance "tem como conteúdo evidente a luta europeia contra o nazismo" e que trechos do livro foram antecipados em boletins de combate publicados para os grupos da Resistência. Está aí outra razão para relê-lo: com a ascensão e chegada ao poder, nos últimos anos, do pensamento político desumanizante (no Brasil e noutros lugares do planeta), talvez aprendêssemos alguma coisa com a tenacidade e a integridade de Rieux e Tarrou.
Por falar nesses dois personagens, gostaria de destacar duas passagens de A peste, em especial.
A primeira se encontra no sétimo capítulo, da segunda parte (no total, o romance se divide em cinco partes), momento em que o flagelo já havia se tornado "um problema comum a todos nós". Jean Tarrou, morador não muito antigo de Oran - de cuja vida passada pouco se conhecia -, solicita uma conversa com o médico, que liderava as ações de combate à doença. Tarrou faz uma proposta: organizar grupos voluntários para auxiliar no que fosse possível. A proposta é aceita, dada a grande necessidade de ajuda. Mas Rieux adverte ao proponente que esse trabalho pode ser mortal. O outro dá a entender que não se importa com isso. Os dois personagens continuam a conversa. É quando Tarrou pergunta:
" - Por que o senhor mesmo demonstra tanta dedicação, já que não acredita em Deus? Sua resposta talvez me ajude a responder [a pergunta feita anteriormente pelo médico, se Tarrou havia pensado bem em todos os riscos que estaria correndo com o seu trabalho voluntário]".
A resposta de Rieux não vem de imediato. Ele reflete sobre o objetivo de sua profissão, sobre os fatores que o encaminharam para ela. Até chegar a uma conclusão (pelo menos parcial). Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para o excerto abaixo:
"- Afinal... - continuou o médico, e voltou a hesitar, olhando para Tarrou com atenção. - É uma coisa que um homem como o senhor consegue compreender, não é verdade? Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala.
- Sim - concordou Tarrou -, compreendo. Mas as suas vitórias serão sempre efêmeras, mais nada.
O semblante de Rieux pareceu anuviar-se.
- Sempre, bem sei. Não é uma razão para deixar de lutar.
- Não, não é uma razão. Mas imagino então o que esta peste significa para o senhor
- Sim - tornou Rieux. - Uma interminável derrota
Tarrou fixou um momento o médico. Depois levantou-se e caminhou pesadamente para a porta. Rieux seguiu-o. Alcançava-o já quando Tarrou, que parecia olhar para os pés, lhe perguntou:
- Quem lhe ensinou tudo isso , doutor?
A reposta veio imediatamente:
- A miséria"A segunda passagem está no capítulo seguinte, logo após o narrador relatar que "as formações [voluntárias, capitaneadas por Tarrou] ajudaram os nossos concidadãos a penetrar mais na peste e persuadiram-nos, em parte, de que uma vez que a doença existia, deviam fazer o necessário para lutar contra ela. Porque a peste se tornava assim o dever de alguns, ela surgiu como era, isto é, o problema de todos". Fala-se de combate a uma moléstia, mas, se lembrarmos da dimensão alegórica da narrativa, poder-se-ia estar falando de um regime iníquo, como o nazismo.
Então surge esse lindíssimo trecho (peço de novo a atenção do(a) eventual leitor(a)):
"Está certo. Mas não se cumprimenta um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Talvez o felicitemos por ter escolhido essa bela profissão. Digamos, pois, que era louvável que Tarrou e outros tivessem escolhido demonstrar que dois e dois são quatro e não o contrário, mas digamos também que esta boa vontade lhes era comum com a do professor, com a de todos que têm o coração igual ao do professor e que, para honra do homem, são mais numerosos do que se pensa ou pelo menos é essa a convicção do narrador. Aliás, este compreende muto bem a objeção que lhe poderia ser feita, ou seja, que esses homens arriscavam a vida. Mas chega sempre uma hora na história em que aquele que ousa dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte. O professor sabe muito bem disso. E a questão não é saber qual é a recompensa ou o castigo que espera esse raciocínio. A questão é saber se dois e dois são ou não quatro".Para Rieux - assim como para Tarrou -, não importa que as vitórias sejam efêmeras. O valor da vida está na luta, ainda que ao fim e ao cabo tudo, tudo se converta numa "interminável derrota". Olhando para a existência como um todo, nunca se deve esquecer que "o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada". Se um mal passa, outro irá sucedê-lo. Não tenhamos ilusão. Nunca se conseguirá uma vitória definitiva sobre o absurdo (para usar uma palavra cara ao pensamento camusiano) que é o próprio fato de vivermos num mundo tal como este em que estamos imersos.
Tudo isso, porém (como dissera Rieux acima), não é razão para deixar de lutar. Ainda mais quando se tem que alertar e convencer muitas mentes obtusas da gravidade de determinadas situações e eventos - que são óbvios para nós, mas essas mentes se negam ou são incapazes de reconhecer que "dois e dois são quatro". E que ao saber disso, é preciso fazer algo a respeito.
Mesmo para um pessimista crônico como eu, a leitura de A peste nunca é um exercício infecundo.
Em breve, comentarei aqui no blog o livro A poesia e a crítica, do Antonio Cicero.
¹ CAMUS, Albert. A peste.17 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007 [Tradução de Valerie Rumjanek]
BG de Hoje
BAIANASYSTEM, um dos melhores acontecimentos na música popular brasileira dos últimos anos. Ponto. Duas cidades é minha música preferida entre as gravadas pela banda até agora (na apresentação abaixo, eles emendaram outra no finalzinho, também muito boa, Bola de Cristal)