terça-feira, 29 de agosto de 2017

Racismo: uma longa, longa história (II)


Antes de entrarmos propriamente na parte principal desta postagem - um apanhado do livro Racismo e Sociedade ¹, do etnólogo cubano ² Carlos Moore - , gostaria de falar de três assuntos diretamente relacionados com a nossa discussão.

1) Suponho que a essa altura todo mundo já tenha assistido ao depoimento emocionante, feito de improviso, pela professora aposentada Diva Guimarães, durante uma das mesas de debate da última edição da FLIP (Feira Literária de Paraty). edição esta que homenageava Lima Barreto (caso não tenha assistido, clique aqui). O choro, sincero, do ator Lázaro Ramos (um dos debatedores) ilustra bem o que aqueles pouco mais de 12 minutos de fala representaram. Eventos como a FLIP, organizados e demandados pela parcela intelectualizada da sociedade, são majoritariamente frequentados por pessoas brancas, geralmente detentoras de níveis mais altos de escolaridade, dado que as boas oportunidades educacionais no país são perversamente restritas. Mais: a escola pública brasileira de educação básica, a única opção das famílias pobres (e não custa lembrar, os negros são a imensa maioria entre os mais pobres), é um flagelo há décadas - e ninguém se importa com isso. Mesmo os defensores de políticas universalistas como forma de frear o racismo têm que admitir: o caso da escola pública brasileira demonstra a perpetuação da exclusão e do imobilismo social. Voltemos ao depoimento de Diva Guimarães, porém. A fala dela, irrompendo inesperada e corajosamente num lugar onde só brancos costumam se expressar, ajuda a mostrar, na real, como é iníqua a estrutura da nossa sociedade. Ah, mas claro que a principal corporação de mídia daqui, com seu oportunismo e canalhice característicos, tratou de explorar o assunto enquanto este ainda estava "quente". Publicou um perfil da professora aposentada em seu jornal impresso e na edição online e convidou-a para ir ao programa de Fátima Bernardes, sem nenhum tipo de aprofundamento na problemática do racismo, porém, preferindo o batido esquema das "histórias de superação". Na velocidade com que as notícias e os assuntos são substituídos, o depoimento de Diva Guimarães logo será esquecido. Espero, contudo, que ele tenha encorajado outras pessoas a aproveitarem eventos e espaços coletivos - como a FLIP - para expor as várias faces do racismo brasileiro. Além do mais, a manifestação da professora também ajuda a exemplificar uma observação feita por Carlos Moore na entrevista concedida à Eliane Brum e publicada no jornal El País há dois anos (disponível aqui, mencionada também na postagem anterior). Afirmando que o Brasil segue um modelo de apartheid ibérico - baseado não em leis explícitas, mas no consentimento - , Moore diz: "Os negros [aqui no Brasil] sabem onde estão os espaços dos brancos. Os brancos sabem onde estão os espaços negros. E até onde os negros devem ir. Todo mundo sabe qual é o seu lugar, e o lugar do branco é sempre dominante. Mas, agora, pela primeira vez na história desse país, a hora do questionamento chegou".

2) O atual recrudescimento do nazismo, monstruosidade que muitas pessoas pensavam estar devidamente sepultada no aterro sanitário da História, prova o quanto o racismo é real. Revela também que a questão vai muito além de esforços no campo educacional - afinal, a população mundial nunca foi tão escolarizada e nunca teve tanto acesso à informação e ao conhecimento organizado quanto neste estágio atual da evolução humana. Como observa Carlos Moore, no último capítulo de Racismo e Sociedade, estamos acostumados a pensar que o racismo é apenas resultado de determinados preceitos ideológicos e, portanto, poderia ser neutralizado por argumentação racional e exortação de condutas éticas (ou seja, ações realizadas no âmbito da educação). Essa crença, segundo Moore, "era reconfortante, na medida em que implicava que estávamos no controle da situação". Porém, como ele procura demonstrar em seu livro, o racismo foi construído historicamente, ao longo de centenas, milhares de anos, e não ideologicamente, num período recente, o que faz com que esse fenômeno "se encontre na raiz dos desarranjos sociais extremos vivenciados em praticamente todos os países do mundo, tornando-o a última fronteira do ódio no planeta".

3) Dentro da história de nossa espécie, o racismo teve no tráfico e escravização de seres humanos de pele negra (um empreendimento comercial de larga escala e parte essencial do processo de acumulação de riqueza que possibilitou o capitalismo moderno) uma de suas formas mais explícitas e abjetas. Além disso, muitas nações (notadamente nas Américas) foram constituídas sobre bases escravocratas, gerando consequências até hoje. Numa entrevista ao jornal Extra Classe (cuja leitura considero imprescindível), o sociólogo e cientista político Jessé Souza é certeiro ao afirmar que:

"No caso de uma sociedade na qual a escravidão tem papel determinante [como o Brasil], uma parte dessa sociedade considera que os escravos não são gente, não os considera humanos, não se identifica com o sofrimento de pessoas que já define como sendo de outra espécie, subgente, como algo a ser explorado a preço vil. É o que fundamenta uma sociedade de senhores e escravos. Como nunca vimos a escravidão como nossa fonte, nossa semente, nossa real questão, falamos dela, mas  não fazemos a crítica aprofundada [...] E o passado sobre o qual não há reflexão está condenado a se repetir. De outras formas, mas se repete. No Brasil, a forma como mais se repetiu foi a do ódio aos pobres. Não há da parte da classe média uma identificação. Existe aí uma certa burrice porque, quando você qualifica os mais pobres, eles consomem mais, eles produzem mais. Tivemos um exemplo de que isso funciona no passado recente, de uma expansão de mercado que não havia sido feita antes. Mas aí vem a necessidade de distinção, de humilhar, de parte da sociedade precisar se sentir superior. Somos um Estado no qual existem políticas formais deste ódio aos pobres. A matança dos pobres, as chacinas, verdadeiros absurdos, uma parte expressiva da classe média aplaude. O que isso mostra? Um ódio típico de regimes escravocratas".

Essa necessidade de distinção tem muito a ver, por exemplo, com o horror de muitos dos tais "cidadãos de bem" com as cotas raciais no ensino superior. "A universidade", lembra o sociólogo, "é a base do privilégio da classe média: o acesso exclusivo às fontes de conhecimento prestigioso, que resultará na formação de juízes, professores universitários, economistas, advogados. Os pobres [e sabemos que pobreza tem cor no Brasil, acrescenta o blogueiro] estavam entrando nesse caminho. As pessoas se incomodarem com a diminuição desta distância é algo escravocrata entre nós". Jessé Souza também observa que a escravidão brasileira condenou "classes inteiras a uma vida sem direitos e sem dignidade", mas, ao invés de ser amplamente debatido, discutido, "o tema é romantizado em novelas e tal. Ora, deixamos de chamar favelas de favelas e passamos a chamar de comunidades. Não enfrentamos as questões efetivas. Isso faz com que se criem sempre mecanismos superficiais que não mudam a situação em definitivo".

Tendo esses três assuntos em mente, passemos ao livro de Carlos Moore.

. . . . . . .

Racismo e Sociedade ancora-se em três linhas argumentativas principais:

a) O fenótipo (que, em poucas palavras, pode ser definido como a concentração de melanina e os traços morfológicos dos indivíduos: textura do cabelo, formato do nariz e lábios, etc. ³) desempenha, desde tempos remotos, papel fundamental na aproximação e camaradagem - mas também no distanciamento e na hostilidade - entre grupos humanos. Durante confrontos e guerras longínquas na história, visando a posse de territórios ou recursos naturais, as diferenças fenotípicas forneceram o meio para distinguir inimigos. Incrementa-se esse argumento, no livro, sobretudo quando é discutida a obra do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop. Escreve Moore: "Com o desenrolar do tempo, as realidades fenotípicas - convertidas em realidades de 'raças' mediante a construção social - podem converter-se numa relação de inimizade ou de proximidade entre indivíduos e coletividades. Diop enquadra o racismo, assim, em uma dimensão específica de pensamento-comportamento que denomina de 'invariante cultural'. Portanto, ele descarta a ideia, ainda prevalecente, de que o racismo se tenha originado na contemporaneidade ou como um fenômeno acidental".

b) A capacidade bélica e o uso planejado da violência são mais determinantes na história humana do que muitos intelectuais gostariam de admitir. Como observa Moore, não sem ironia, "o chamado 'milagre grego' teria muito a ver com emprego sistemático da violência brutal e exterminadora, e não simplesmente com a suposta superioridade intelectual racionalista do mundo ocidental". E mais: a maior eficácia marcial e as ações violentas metódicas e fulminantes são parte essencial da expansão europeia pelo mundo e contribuíram decisivamente para o subdesenvolvimento de outras regiões do planeta - inclusive e principalmente a África. Não se trata aqui de fazer dos europeus os arquivilões da humanidade, mas de reconhecer que a sua suposta ilustração e genialidade, para se estabelecer, dependeu - e muito - do emprego da violência e da ação predatória contra outros contingentes populacionais.

c) O racismo claramente beneficia determinados grupos humanos e prejudica e coloca em posição subalterna outros. Trata-se de um sistema, erigido ao longo de séculos, que vai além de condutas e posturas individuais, embora estas o reforcem. Com a palavra, Carlos Moore:

"[...] Pois, em nenhum momento, se deve esquecer que, desde que o conhecemos do seu início, o racismo surgiu e se desenvolveu em torno da luta pela posse e a preservação monopolista dos recursos vitais da sociedade. Na Antiguidade, esses recursos eram território (terra, água, rios e montanhas) e bens (rebanhos, cidades...). Seguidamente, esses recursos foram a própria força de trabalho alheio (escravos), a produção alheia (produtos agrícolas ou manufaturados) e as riquezas do meio ambiente e subsolo alheios (minerais, sal, especiarias, madeiras, marfim...).

Nas sociedades atuais, os recursos vitais se definem em grande medida em termos de acesso: à educação, aos serviços públicos, aos serviços sociais, ao poder político, ao capital de financiamento, às oportunidades de emprego, às estruturas de lazer, e até ao direito de ser tratado equitativamente pelos tribunais de justiça e as forças incumbidas da manutenção da paz. O racismo veda o acesso a tudo isso, limitando para alguns, segundo seu fenótipo, as vantagens, benefícios e liberdades que a sociedade outorga livremente a outros, também em função de seu fenótipo.

A função básica do racismo é de blindar os privilégios do segmento hegemônico da sociedade, cuja dominância se expressa por meio de um continuum de características fenotípicas, ao tempo que fragiliza, fraciona e torna impotente o segmento subalternizado. A estigmatização da diferença com o fim de 'tirar proveito' (privilégios, vantagens e direitos) da situação assim criada é o próprio fundamento do racismo. Esse nunca poderia separar-se do conjunto dos processos sistêmicos que ele regula e sobre os quais preside tanto em nível nacional quanto internacional.

Na contemporaneidade, o racismo está arraigado em todas as instâncias de funcionamento do mundo, tanto na econômica, como na política, na cultural e na militar [...]"

Há diversos outros pontos que eu poderia destacar no livro - bem como alguns a serem criticados. Talvez o faça noutras oportunidades. Acredito, contudo, que o apresentado nestas duas últimas postagens é suficiente para dar ao(à) eventual leitor(a) uma noção do conteúdo de Racismo e Sociedade.

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Antes de encerrar, gostaria de expor um posicionamento pessoal que julgo importante não ocultar.

Acho errôneo usar o termo racista para designar indivíduos islamofóbicos.

É claro que a intolerância religiosa e o ódio a outros indivíduos por causa da fé que adotam são das coisas mais graves do mundo. Entretanto, usar o termo racismo para se referir a esse problema, a meu ver, não ajuda a lidar melhor com ele; além disso, pulveriza o significado essencial que o termo expressa.  Mais uma vez, recorrerei a Carlos Moore. "A confusão entre racismo e preconceitos", escreve ele, "é evidente. Ora, os preconceitos não são necessariamente manifestações de racismo. Pelo contrário: é o racismo que gera os piores e mais violentos preconceitos. Dentre eles, o mais profundo e abrangente é a noção de inferioridade e superioridade racial inata entre os seres humanos". E acrescenta: "Com efeito, preconceitos e racismo não são realidades que se subsumem".

Racismo - e isso deveria ser óbvio - tem a ver com raça, um conceito que se modificou ao longo do tempo, mas que, na maioria dos casos (e habitualmente uso o termo com este sentido) refere-se às diferenças fenotípicas (pigmentação da pele, tipo de cabelo, traços faciais, etc.) apresentadas pelos diversos grupos humanos.

Portanto, é um equívoco, na minha opinião, colocar o islã na mesma categoria de raça. Penso que o que está por trás dessa falsa equivalência, em muitas ocasiões, é a tentativa de silenciar as críticas à religião - e criticar uma religião, com argumentos (o que sempre procuro fazer), não é o mesmo que querer calar seus praticantes à força, persegui-los ou agredi-los. Isso é intolerância religiosa, fanatismo, algo que não pratico, nem promovo.  Sou crítico a todas as religiões - sobretudo ao cristianismo. E continuarei a sê-lo.

Vou dizer de novo: é falsa a equivalência entre religião e raça. Religião não é raça. A crítica às religiões não é racismo.

__________
¹ MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007 (Esse livro saiu em 2ª edição ampliada, pela Nandyala Editora, em 2012)

² Filho de jamaicanos, Moore nasceu e cresceu em Cuba; por isso estou designando-o como cubano. Porém, ainda muito jovem, migrou para os EUA e já viveu em diferentes países desde então. Convém ouvir o que o próprio autor tem a dizer, ele que atualmente mora no Brasil:
"A referência da minha vida é muito maior que Cuba, muito maior que o Brasil, muito maior do que qualquer país. Não há um só país que possa concentrar a referência do que é a minha vida, do que é a minha identidade"
E acrescenta:
"O fato de ter sido proscrito de Cuba por 34 anos me fez compreender que a nacionalidade é um jogo, é uma brincadeira".
Essas declarações estão na entrevista de Carlos Moore que citei na postagem. Recomendo vivamente ao(à) eventual leitor(a) essa entrevista, pois ela permite conhecer um pouco da extraordinária trajetória do estudioso, além de apresentar algumas de sua opiniões acerca do racismo contemporâneo, no Brasil e no mundo.

³ Aqui, uma outra definição, mais ampla, de fenótipo:
"A aparência visível ou mensurável de um organismo quanto a um ou mais traços, o fenótipo é o que se vê, a aparência ou o comportamento de um organismo em contraste ao genótipo ou constituição genética elementar. Todas as pessoas de olhos castanhos, por exemplo, têm o mesmo fenótipo quanto à cor do olho. Do mesmo modo, o comportamento de uma espécie particular de ratos, quando confrontada com uma série de obstáculos em um labirinto, é um comportamento fenotípico. A aparência externa dos humanos quanto à cor da pele, tipo de cabelo, estrutura óssea, etc. é mais bem identificada como variação fenotípica; um modo relativamente livre de conceitos culturais para designar as diferenças em oposição à palavra raça, cujo sentido varia de um período histórico e cultural para outro". (CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000. p. 217)

BG de Hoje

Em outras oportunidades já comentei aqui nesta seção do blog que o heavy metal (meu tipo de som predileto) é dominado por artistas brancos - como ocorre, aliás, com o rock num todo, a despeito da origem negra do gênero, ligada ao blues. Problema algum nisso, a não ser, claro, quando alguns artistas flertam com a intolerância e o racismo (sim, estou falando de você, Phil Anselmo!). A respeito do lado imbecil e babaca do rock pesado, sugiro a leitura deste texto, O heavy metal não é apenas racista - é intolerante no geral.

Voltando ao assunto, porém. Quando músicos negros decidem tocar heavy metal ou hardcore isso sempre chama atenção, quando não pela raridade. Como no caso do BODY COUNT, cujo frontman,  Ice T., é hoje em dia mais conhecido, talvez, pelo seu trabalho como ator (muita gente nova não sabe que ele começou a carreira como rapper). Colecionando controvérsias ao longo do tempo (e qualquer dia desses faço uma postagem só sobre isso), a banda de Los Angeles lançou este ano o disco Bloodlust, do qual destaco a faixa Black Hoodie.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Racismo: uma longa, longa história (I)


"Until the philosophy which holds one race superior
and another 
inferior
is finally
and permanently
discredited
and abandoned,
everywhere is war".

Bob Marley, citando Haile Selassie - War


 
Se não me engano, a primeira vez que tomei conhecimento da jornalista e consultora empresarial francesa Alexandra Baldeh Loras foi no (extinto) Programa do Jô. Com desenvoltura e falando num português muito bom, ela (na época consulesa da França em São Paulo) não botou panos quentes ao tratar de um tema que deixa o "cidadão de bem" brasileiro sempre melindrado: o racismo (a entrevista pode ser acessada aqui). Desde então, Loras tem aparecido esporadicamente na mídia local, assinando artigos inclusive, como o que se intitula O mundo real, só que ao contrário, publicado no (ótimo) Nexo Jornal, em agosto do ano passado.

Valendo-se de uma fotografia produzida para a revista Vogue, na qual cinco mulheres negras, num cenário que indica opulência, representam as ricaças e três mulheres brancas vestem-se como empregadas domésticas, Alexandra Loras pergunta:

"Como você enxerga essa foto? Causa algum estranhamento? O simples fato da imagem gerar polêmica mostra que não temos uma sociedade igualitária porque, se no mundo em que vivemos, negros e brancos fossem tratados da mesma forma, uma inversão de papéis não incomodaria ninguém. Mas como estamos acostumados com essa sociedade que promove privilégios aos brancos, eles não se colocam no lugar dos negros. O nosso objetivo foi gerar uma reflexão sobre o tema, provocar o debate e gerar discussão. Então seja qual for a sua opinião sobre a imagem, o importante é que você pense sobre o assunto, converse sobre ele e reflita. Minha pergunta aos brancos é: você trocaria seu lugar para ser negro em nossa sociedade com todas as consequências que ser negro ainda representa em 2016 [ano da publicação do artigo]?"

Convivo com muitas pessoas brancas - inteligentes, sensíveis e gentis, vale ressaltar - que, apesar de admitirem haver racismo no Brasil, evitam falar sobre o tema e, às vezes, até desqualificam qualquer proposição no sentido de enfrentamento efetivo do problema (como as políticas de ação afirmativa, cuja forma de aplicação mais conhecida no Brasil se dá por meio das cotas em concursos para instituições de ensino superior e para cargos no serviço público). Há uma certa dificuldade - ou será recusa? - em compreender a noção de reparação histórica e perceber a necessidade de compensar as iniquidades decorrentes de quase 400 anos de tráfico e escravização sistemática de pessoas, não mitigadas com a Abolição promulgada em 1888. E já ouvi de um conhecido branco: "Mas eu nem era nascido quando o regime escravocrata existia! O que isso tem a ver comigo?". A esse respeito, Alexandra Baldeh Loras escreve: "O branco de hoje não tem culpa pelas atrocidades que foram feitas no passado, mas somos todos responsáveis por solucionar as consequências traumáticas e reequilibrar nossa sociedade".

Resta saber se a sociedade brasileira, tão confortável com as injustiças de toda espécie, está realmente disposta a despender esforços nesse sentido. Não tenho esperança em relação a isso (para falar a verdade, este país - e o mundo, em geral - só me tem provocado apreensão e desalento, dia após dia). Numa coisa, pelo menos, ainda creio: a informação e o conhecimento são grandes aliados numa luta dessa envergadura. É preciso ter uma ampla e profunda compreensão da problemática do racismo, para não cairmos na ingenuidade de achar que só a boa vontade e os bons sentimentos individuais, por mais requeridos que sejam, resolvem a questão. Como observa Carlos Moore, em seu corajoso livro Racismo e Sociedade ¹, "[...] existe uma tendência crescente para trivializar o racismo, seja relegando-o à esfera puramente das relações interpessoais, seja reduzindo-o ao plano de meros preconceitos que 'todo mundo tem' ".

Em entrevista altamente recomendável por este blogueiro, concedida à jornalista Eliane Brum e publicada em 2015 na versão brasileira do jornal El País (disponível aqui), Moore fornece um abrangente e incisivo conceito de racismo:

"O racismo não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco, e muito menos uma 'doença'. Se trata de uma estrutura de origem histórica, que desempenha funções benéficas para um grupo, que por meio dele constrói e mantém o poder hegemônico com relação ao restante da sociedade. Esse grupo instrumentaliza o racismo através das instituições e organiza, por meio do imaginário social, uma teia de práticas de exclusão. Desse modo, preserva e amplia os privilégios sociais, o poder político e a supremacia total adquiridos historicamente e transferidos de geração a geração. Em uma sociedade já multirracial e mestiçada, ele serviria para preservar o monopólio sobre os recursos para o segmento racial dominante. Seria um sistema total que se articula desde o início mediante três instâncias operativas entrelaçadas, porém distintas: 1) as estruturas políticas, econômicas e jurídicas de comando da sociedade; 2) o imaginário social total, que controla a ordem simbólica; e 3) os códigos de comportamento que regem a vida interpessoal dos indivíduos que fazem parte dessa comunidade. Assim, não é possível atacar o racismo em apenas um lugar, porque nada vai se modificar. Hoje em dia, o racismo atingiu tal grau de sofisticação que nega a si mesmo e pretende não existir. Negar a existência do racismo, transformá-lo em um tabu social, tratá-lo como 'aberração' ou reduzi-lo à 'discriminação' e ao 'preconceito' é a melhor forma de encobri-lo e protegê-lo enquanto estrutura sistêmica. Por isso, sempre que o ser humano o nega ou simplifica, está automaticamente em 'cumplicidade sistêmica' com ele".

Não há como algo tão complexo ter-se originado apenas na segunda metade do último milênio, ainda que a imensa maioria dos estudos voltados ao tema concentre-se nesse período - que é quando se inicia o tráfico transatlântico de africanos escravizados. Carlos Moore, entretanto, propõe em Racismo e Sociedade (o livro a ser discutido no blog hoje e na próxima semana) que "é preciso executar uma espécie de reorientação epistemológica, a qual nos levaria a examinar a problemática do racismo muito além do horizonte estreito dos últimos quinhentos anos de hegemonia europeia sobre o mundo".

Desse modo, sua abordagem realiza um longo percurso histórico, que não deixa passar o "proto-racismo" da Antiguidade greco-romana, chegando até o imperialismo/colonialismo europeu do século XIX e início do século XX, e dedicando a parte III de seu trabalho às feições contemporâneas do racismo no atual mundo globalizado.

O cientista social cubano lança ousadas hipóteses antropológicas. Reconhecendo de saída que a violência ocupa uma parte destacada da história humana (um dos pontos fortes do autor, na minha opinião), sobretudo a violência organizada e executada planejadamente, como no caso da guerra e das tomadas de território, ele pergunta logo no primeiro capítulo:

"[...] os hominídeos conheceram, como nós, seus descendentes, as carnificinas, os genocídios e as guerras permanentes em torno da posse de recursos e de territórios? Qual pode ter sido o papel desempenhado pelas diferenças morfofenotípicas como linhas de auto-reconhecimento e agrupamento entre os humanos arcaicos? De que modo o surgimento das diferentes tonalidades de cor da pele influíram nas linhas de identificação de si mesmo e das demais espécies?"

Com o surgimento do Homo sapiens - e todos os paleantropólogos atualmente concordam que o gênero humano originou-se na África -, essas diferenças possivelmente continuaram a influir. Carlos Moore acredita que, num passado remoto, grupos humanos de pele negra (que o autor chama de melanodérmicos, diferenciando-os dos leucodérmicos, os de pele branca) seriam encontrados em várias partes do planeta e não só no continente africano. Dessa forma, "naqueles períodos longínquos, caso houvesse contestação pela posse de territórios com as populações já racialmente diferenciadas, essa ubiquidade de populações autóctones de pele negra se constituiria na mais óbvia referência demarcatória para diferenciar os oponentes. Teria sido isso o que realmente aconteceu?"

Em Racismo e Sociedade, Moore também desenvolve, na segunda parte do livro, uma argumentação ousada a respeito do próprio capitalismo moderno: este não teria eclodido sem o "auxílio" do racismo. Atentemos para o excerto seguinte:

"O expansionismo e o militarismo além-fronteiras aparecem como fatores essenciais da ótica que maximiza a eficácia econômica como ideal e fundamento da sociedade. Por sua vez, a busca por essa eficácia a todo custo implica a imposição de uma ordem societária cada vez mais repressiva, na medida em que os mecanismos que tendem a favorecê-la se contrapõem àqueles freios sociais que garantem as bases da solidariedade. Em princípio, a fascistização de uma sociedade somente é possível quando é destruída a maior parte das barreiras ético-morais que a sustentam. No entanto, ao longo da história, constatamos a existência de sociedades capazes de manter internamente uma ordem ético-moral formal compatível com a busca pela máxima eficácia econômica, mesmo sendo, ao mesmo tempo, fundamentalmente predatória além-fronteiras. Desse modo, cabe perguntar: qual o elemento, cultural ou de outra ordem, que permite tal movimento contraditório e, aparentemente, aberrante?

Os colonialismos e imperialismos surgidos em diversas épocas na Europa e no Oriente Médio Semita (Persa, Árabe, Império Otomano...) exibem uma dupla natureza constituída pela relativa coerência ético-moral interna, e a irrestrita crueldade para com o 'Outro Total', além fronteiras. Como vimos, esse é designado a partir do fim do Império Romano, não somente em termos essencialmente xenófobos, mas crescentemente em termos de feições, de cor e de textura dos cabelos. O 'Outro Total' é de pele negra, de cabelos crespos, de feições 'toscas' e habita, simbólica e concretamente, um continente distante, escuro e ameaçador. Os dados à nossa disposição apontam para um fato que dificilmente poderá ser ignorado sem comprometer a própria confiabilidade do relato histórico: a partir da queda do Império Romano, o continente africano e seus habitantes de pele negra converteram-se, crescentemente, no alvo predileto dos empreendimentos de procura de mão-de-obra escravizada pelas grandes potências do Oriente Médio e da Europa".

Foi essa mão-de-obra que propiciou o excedente e a acumulação de riqueza necessária para a expansão e consolidação do capitalismo como hoje o conhecemos, segundo Moore. E discordar dele não é fácil.

No texto de abertura da entrevista citada acima, Eliane Brum afirma que Racismo e Sociedade "tornou-se referência e polêmica. Carlos Moore está longe de ser uma unanimidade, dentro e fora do movimento negro, o que não parece preocupá-lo". Espero que o(a) eventual leitor(a), a partir dessa observação, esteja ainda mais interessado no livro. Fica, portanto, o convite para a próxima postagem, quando pretendo esmiuçar Racismo e Sociedade um pouco mais.
__________
¹ MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007 (Esse livro saiu em 2ª edição ampliada, pela Nandyala Editora, em 2012) 

BG de Hoje

Dança, composição de CHICO CÉSAR, já foi BG noutra postagem há alguns anos. Não faz mal. Adoro essa canção. Repito sem problemas, agora numa apresentação que conta com a participação do paulistano Dani Black.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Um cavalo nada lúcido (e formado de que substância?)


Cheguei aos 45 anos de idade na semana passada. Como ainda não tenho a coragem suficiente para o suicídio, resta refletir sobre o envelhecimento.

Em Nebraska (direção de Alexander Payne, 2013), há um diálogo que pode parecer pouco relevante a princípio, mas fundamental para compreender melhor o protagonista Woody Grant (interpretado belissimamente pelo ator Bruce Dern) e do qual sempre me lembro, desde que assisti a esse ótimo filme pela primeira vez.

Woody e seu filho mais novo, David, estão na fictícia cidade de Hawthorne (as cenas foram filmadas no município de Plainview, Nebraska), onde passarão um tempo com seus parentes antes de partirem para Lincoln, em busca de um prêmio de 1 milhão de dólares que o velho pensa, ingenuamente, ser verdadeiro. Após uma caminhada, em que Woody passa pela oficina da qual fora proprietário, os dois param num bar e David acaba resolvendo tomar umas cervejas com o pai, naquilo que poderia facilmente descambar para um momento-ternurinha-entre-pai-e-filho bem piegas. Mas, felizmente, não é o que acontece. Está claro que os dois não têm o hábito de conversar um com o outro (até porque Woody sempre fora um sujeito caladão) e, para quebrar o silêncio, o filho começa falando do fim de seu relacionamento com a namorada. O octogenário, distraído (talvez pela caduquice, por não se lembrar ou porque simplesmente não dá a mínima), mal ouve o que David está dizendo. Este então resolve saber um pouco do passado dos pais:

"- Como você e a mamãe acabaram se casando?
- Ela queria.
- E você não?
- Eu pensei. 'Por que não? [ele diz, no inglês original, 'what the hell']'
- Já se arrependeu de ter casado?
- O tempo todo. Podia ser pior.
- Você devia estar apaixonado. Pelo menos no começo.
- Nunca aconteceu.
- Vocês conversavam sobre ter filhos? Quantos queriam e coisas assim?
- Não.
- Então por que nos tiveram? [David tem um irmão mais velho, Ross]
- Porque eu gosto de transar. E sua mãe é católica. Então, descubra por si.
- Você e mamãe nunca falaram sobre ter filhos?
- Pensei: 'Se continuarmos transando, vamos acabar tendo alguns' ".

Um trecho dessa cena pode ser visto aqui. David, mais um dos muitos iludidos nesse mundo com a ideia de amor romântico, espanta-se não tanto com a franqueza do pai, mas por descobrir que Woody (e provavelmente muitos da geração dele) não via nada de muito importante ou especial em ter filhos. Ou mesmo em não ter nenhum. O personagem, até aquele momento apenas um velho turrão, ranzinza e genioso (como a maioria dos velhos, aliás), passa a ficar mais interessante para o espectador (pelo menos comigo foi assim), e o decorrer do filme confirmará isso.

O diálogo prossegue; David pergunta:

"- Já pensou em deixá-la [Kate, mãe de David]?
- Eu ia acabar com outra pessoa que ia viver me enchendo.
- [David fica agastado] Ah, é. É. Ela aguentou sua bebedeira esse tempo todo!
- Não bebo tanto assim...
- Você é um alcoólatra!
- Besteira!
- Como assim, 'besteira'? Sabia que você tinha problemas quando eu tinha 8 anos! Eu via você esconder bebida na garagem.
- Você roubava também. Percebi que era você. Você me custou muita grana.
- Eu despejava tudo fora, porque estava cansado de te ver bêbado.
- Sabia que era você. Seu irmão não era de agir às escondidas... Eu servi ao meu país. Eu pago meus impostos. Tenho direito de fazer o que eu bem quiser.
- Então você bebe mesmo.
- Um pouco...
- Muito!
- Tá bom! Eu bebo muito! Que diabo! E daí? Você faz o que quer e eu também. Você também beberia se fosse casado com sua mãe. Não cabe a você me dizer o que fazer, seu babaca [pra ser exato ele diz, 'you little cocksucker']".

O que fora a vida de Woody? Nascer e crescer numa cidadezinha desimportante, ser obrigado a participar da estupidez da guerra (no caso, a da Coreia), trabalhar como mecânico, casar-se e ter uma família apenas porque isso fazia parte das convenções sociais de seu tempo (e muitos se casam até hoje pelo mesmo motivo). Ele buscava na bebida uma forma de escapar, pelo menos de vez em quando, à toda essa banalidade. É difícil sentir simpatia por esse personagem. Não há qualquer traço de grandeza nele. Pelo contrário: Woody Grant é uma nulidade, um bebum e um pé-no-saco (mas a verdade é que nós o julgaremos melhor até o final do filme). E por que ele nos é desagradável - pelo menos antes da narrativa cinematográfica se concluir? Talvez tenhamos um certo pudor em admiti-lo, mas, sem meias palavras, são a decrepitude e toda a carga de derrota e malogro implícitas na velhice - representadas na figura do personagem - responsáveis por boa parte de nossa desafeição. E nem é necessário que a velhice esteja consumada em nós. Apenas a sua perspectiva já nos é desconsoladora. Apavorante.

Noutra passagem do filme, o protagonista, seus filhos e a esposa Kate (interpretada por June Squibb, mais uma atuação belíssima) visitam a antiga residência, agora abandonada, onde Woody fora criado. A sequência é linda, tocante. A certa altura, David pergunta ao pai - já do lado de fora da casa, os dois olhando o horizonte -: "Já viu o suficiente?". E o velho responde:

"I suppose. It's just a bunch of old wood and some weeds". [Acho que sim. É só um monte de madeira velha e mato]

Pouca coisa, para alguns de nós, poderia simbolizar tão bem as lembranças restantes de uma vida inteira - madeira velha e mato.

A fotografia em preto e branco e os grandes planos abertos mostrando a paisagem rural do norte e do meio-oeste dos EUA fazem de Nebraska um filme muito bonito, visualmente falando. Gosto dele, todavia, principalmente pelo roteiro escrito por Bob Nelson. Não há neste qualquer tipo de excesso ou afetação. E conforme a história vai sendo contada, entende-se um pouco mais o verdadeiro motivo que leva Woody Grant a insistir na busca do seu prêmio inexistente. Mais do que a demência, a perturbação mental, é a necessidade de agarrar-se a alguma coisa, a medida que seu tempo acaba, a real explicação desse (talvez) derradeiro esforço. Isso emociona, não dá pra ficar indiferente. David, em determinado momento, ouve de sua sensata mãe: "Tenha cuidado ou é nisso que vai se transformar", referindo-se à condição do velho Woody. Essa advertência também se dirige ao espectador.

. . . . . . .

Minha reflexão sobre o envelhecimento conduz-me também à poesia de Carlos Drummond de Andrade. Hoje, neste dia 17 de agosto, completam-se 30 anos de falecimento do itabirano.

O escritor teve uma vida longa. E deve-se enfatizar que, mesmo idoso, continuou escrevendo e publicando num ritmo e constância apreciáveis (para se ter ideia, somente aos 82 anos pôs fim à sua atividade de cronista). Contudo, sendo razoavelmente (apenas razoavelmente, devo informar) familiarizado com sua obra, surpreende-me que a idade provecta (putz, de onde desenterrei essa expressão!) e seu próprio envelhecimento pessoal aparecem pouco nos textos poéticos lançados a partir de Boitempo & A falta que ama - quando Drummond já passara dos 65. Além disso, quando estes temas estão presentes, os poemas resultantes não são tão memoráveis assim.

Claro, há alguns, ótimos, relacionados à morte - que, como nenhum de nós ignora, é o passo seguinte do envelhecer.

Penso, por exemplo, em Falta pouco (de A falta que ama ¹):

Falta pouco para acabar
o uso desta mesa pela manhã
o hábito de chegar à janela da esquerda
aberta sobre enxugadores de roupa.
Falta pouco para acabar
a própria obrigação de roupa
a obrigação de fazer a barba
a consulta a dicionários
a conversa com amigos pelo telefone.

Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.

Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.

Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.

Ou em A morte a cavalo (de A paixão medida ²)

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos.

A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus irmãos.

A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-las
vai levando meus amores.

A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.

A morte de tão depressa
nem repara no que faz.
A cavalo de galope
a cavalo de galope

me deixou sobrante e oco.

Se, entretanto, busco no momento os melhores poemas de Carlos Drummond de Andrade sobre o envelhecimento - melhor dizendo, sobre a passagem do tempo (e o tempo é um tópico constante para o artista), no que esta redunda inevitavelmente em envelhecimento para nós, seres orgânicos e finitos - devo concentrar-me em A rosa do povo, lançado originalmente em 1945, quando o poeta tinha "apenas" 43 anos de idade.

Um dos mais importantes livros de poesia da nossa literatura, A rosa do povo ³ reúne alguns dos textos mais significativos da obra drummondiana: A flor e a náusea, Canto ao homem do povo Charlie Chaplin, O elefante, Resíduo (sobre o qual já escrevi aqui), Morte do leiteiro, O mito, Nosso tempo, O medo, Procura da poesia, Consolo na praia... Devemos direcionar a atenção, contudo, a partir de agora, para quatro poemas desse livro especificamente: Idade madura, Versos à boca da noite, Indicações e Os últimos dias.

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Manuel Bandeira, aos 64 anos, publicou em A estrela da tarde, um inesquecível poema intitulado Preparação para morte (o eu-lírico enumera uma série de coisas que compara a milagres e encerra com este verso: "- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres"). Mas, sendo sincero, não conheço na literatura brasileira algo mais belo como "programa de preparação para a morte" do que Os últimos dias, de Drummond.

Se pudesse, muito canhestramente, resumir esse poema, diria se tratar de um conselho para aproveitar o tempo que nos resta, da melhor maneira que se possa. Isso fica evidenciado em passagens como "O tempo de conhecer mais algumas pessoas,/de aprender como vivem, de ajudá-las" e

"Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo".

É um texto, a meu ver, surpreendentemente luminoso, sobretudo quando se considera a dissolução inerente ao fim da vida, decorrente do natural processo de envelhecimento. E por falar em luminoso, a estrofe abaixo ganha ainda mais em beleza e irrompe plena de significado, quando lembramos que Drummond era ateu:

"O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo".

Por sua vez, os poemas Indicações e Versos à boca da noite têm em comum a descrição dos efeitos - no espírito, no corpo e nas coisas - do envelhecimento e da passagem do tempo. Diz o poeta:

"Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo
e o medo de novas descobertas".
                                         (Versos à boca da noite)



"Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo pra casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio [...]

[...] A caneta velha. Recusas-te a trocá-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo [...]

[...] Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem, 
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem
e o chão está limpo, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel".
                                           (Indicações)

Oportuno observar que algumas passagens de Versos à boca da noite ecoam noutros poemas de Drummond. As recordações e a memória de coisas passadas pesando às vezes como fardo - como se lê nesta estrofe: "E depois das memórias vem o tempo/trazer novo sortimento de memórias,/até que, fatigado, te recuses/e não saibas se a vida é ou foi". - estão presentes em Resíduo, incluído no próprio A rosa do povo. O desejo de encontrar uma explicação para a vida será melhor explorado no monumental A máquina do mundo, publicado no livro seguinte, Claro enigma.

Mas é Idade madura, entre os quatro textos assinalados, aquele de que mais gosto.

O eu-lírico que fala neste poema pouco se importa com as expectativas e as pressões formadas ao redor daqueles que supostamente atingiram a maturidade: "De longe vieram chamar-me./Havia fogo na mata./ Nada pude fazer,/Nem tinha vontade".  Quisera eu ter seu destemor para dizer "Nem mesmo sinto falta/do que me completa e é quase sempre melancólico". ou "Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas". Velho - e pior - imaturo, também jamais serei capaz de pronunciar algo como:

"Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação féerica,
viva em mim qual um inseto".

E em Idade madura ocorre uma das metáforas/imagens mais notáveis criadas por Drummond:

"Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim".

Durante anos e anos forcei-me a dar uma interpretação a esses versos, sem chegar a qualquer conclusão que me satisfizesse. Hoje contento-me em afirmar que eles evocam uma postura diante do existir que eu almejei alcançar numa outra época de minha vida.

Entretanto, se houver algum cavalo circulando em mim - e já desisti de procurar descobrir a substância que o poderia formar -, desloca-se hoje errática e confusamente, sem qualquer vestígio de lucidez.

. . . . . . .

Envelhecer é uma das circunstâncias da existência. Não é, obviamente, um defeito ou falha de caráter dos indivíduos. O que não altera em nada, penso eu, o fato de ser algo indesejado, ominoso até, em muitos casos.

Quando paramos para pensar, as formas de contornar ou evitar a velhice podem ser tanto dramáticas, esmagadoras, quanto ridículas e grotescas. Por isso, a arte torna-se imprescindível para, na forma de uma narrativa cinematográfica tão bonita (e divertida, a seu modo) como Nebraska ou dos poemas de um monstro sagrado da Literatura como Carlos Drummond de Andrade, proporcionar um aprendizado do envelhecimento.

Nas próximas duas postagens, escreverei sobre um tema essencial, a partir das reflexões do cientista social cubano Carlos Moore, reunidas no livro Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo.
__________
¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Falta pouco. In: _________. 100 poemas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 352 (trata-se de uma edição bilíngue, português-espanhol)

² ANDRADE, Carlos Drummond de. A morte a cavalo. In: _________. A paixão medida. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 133-134

³ Todos os excertos de poemas do livro A rosa do povo foram extraídos da 40 edição, publicada pela editora Record em 2008.

BG de Hoje

Há uma vertente do heavy metal que me agrada muito, do ponto de vista sonoro: o chamado groove metal, cujo maior expoente foi a banda texana Pantera (sempre fui fã do som dos caras, mas não das mensagens que costumavam divulgar, é bom esclarecer). Outros grupos dos quais gosto nesse estilo são o White Zombie, o Fear Factory e o Soulfly (liderado pelo brasileiro Max Cavalera). Na década de 1990, o veterano Rob Halford, um dos maiores cantores da história do rock pesado, resolveu, após um afastamento do Judas Priest, aventurar-se pelo groove metal. O britânico juntou-se a (na época) jovens músicos norte-americanos muito bons (destaque para o baixista Jack "Jay Jay" Brown e o guitarrista Russ Parrish, hoje membro do engraçado grupo-sátira Steel Panther) para formar o FIGHT. Uma das faixas mais legais gravadas por eles foi Little Crazy (repare na guitarra com efeito slide, uma coisa não muito comum de se ouvir no heavy metal).

sábado, 5 de agosto de 2017

Falou e disse...


"[...] pois o que é ler senão aprender a pensar na esteira deixada pelo pensamento do outro? Ler é retomar a reflexão de outrem como matéria-prima para o trabalho de nossa própria reflexão" *


* Marilena CHAUÍ, na apresentação do livro Memória e Sociedade: lembranças de velhos, de Ecléa Bosi (Companhia das Letras, 3ª edição, 1994 - p. 21)