Qualquer um que se interesse por filosofia antiga nalgum momento sentiu-se curioso a respeito do Sócrates
de carne e osso, portador de CPF e RG, andando de bobeira pela ágora ateniense. Que tipo de tenda ou taberna frequentava? Foi um bom marido para Xantipa? Jogava uma pelada aos sábados com a galera depois da sessão de maiêutica?
Pouco, muito pouco existe de registro sobre o Sócrates histórico (há até quem duvide de que ele realmente tenha existido). E mais de 2.300 anos são tempo suficiente para cercar o sujeito com toda sorte de relatos pouco críveis, algumas vezes lendários e, não raro, fantasiosos.
O(a) eventual leitor(a) pode objetar, com razão:
"E daí? O que importa não é a pessoa física
de Sócrates mas sim o seu pensamento, a sua concepção filosófica!". De fato. Mas até que ponto essa filosofia é propriamente socrática e não platônica, pensando no conceito moderno de autoria? Afinal, quase tudo que se atribui a Sócrates provém dos escritos de Platão...
Não desejo, todavia, enveredar por esse caminho polêmico. Interessa-me nesta postagem apenas um traço da vida do filósofo, mencionado frequentemente: sua pobreza.
Na
Apologia de Sócrates*, o réu, acusado de não acreditar nos deuses e corromper a juventude, defende-se apresentando o que julga serem provas de sua inocência. O mestre de Platão alega que seus acusadores não dizem a verdade em relação à sua pessoa. Por exemplo, o filósofo afirma, durante o julgamento, que
"quem vos disser que ganho dinheiro lecionando" estaria mentindo.
É de se perguntar: e qual o problema se ganhasse?
Como já escrevi brevemente
aqui, fazia parte da
agenda de Platão desqualificar os sofistas. E parece que ele foi bem sucedido na empreitada: até hoje, tanto o adjetivo
sofístico quanto o substantivo
sofisma não são palavras elogiosas. Na qualidade de oradores e professores de retórica, os sofistas foram bastante demandados por sua habilidade e
know-how numa Atenas cujas decisões políticas eram influenciadas, em boa medida, pela capacidade de persuasão dos causídicos do momento - como, a propósito, se dá em grande parte do mundo civilizado até hoje. Aceitável, penso eu, que os sofistas fossem remunerados pelo ensino/treinamento dado. Mas não para Sócrates (e, portanto, não para Platão).
Durante a
Apologia, Sócrates cita o caso de um tal Eveno de Paros. O sujeito recebera
"cinco minas" (o equivalente a 500 dracmas) para ensinar as
"qualidades de homem e de cidadão" aos filhos de um ateniense chamado Cálias. Sócrates diz:
"Fiquei, então com inveja desse Eveno, se é que é senhor dessa arte e leciona a tão bom preço. Por mim, bem que me orgulharia e envaideceria de ter a mesma ciência. Pena é que não a tenho, atenienses".
O filósofo, como se sabe, atribuiu a si uma missão, desde que o oráculo de Delfos disse ser Sócrates o mais sábio dos seres humanos. Em que consistia sua sabedoria? Ela está condensada num conhecidíssimo epigrama repetido todas as vezes em que essa figuraça da antiguidade é citada:
"só sei que nada sei". Um pouco mais adiante, ele acrescenta:
"Essa ocupação [a missão de questionar tenazmente os indivíduos para que atinjam o autoconhecimento] não me permitiu os lazeres para qualquer atividade digna de menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo em pobreza extrema, por estar a serviço do deus".
O deus - seguramente Apolo - foi quem falou pela boca da sacerdotisa em Delfos, assim acreditava Sócrates, como qualquer bom grego de seu tempo. Por isso, o trabalho que o filósofo se atribuiu tem um forte componente religioso, messiânico até.
Não saberia dizer quando surgiu a bizarra suposição de que o magistério e a docência deveriam ser atividades puramente desinteressadas, baseadas numa suposta vocação do sujeito, com um quê de sacerdotal. Mas digo que Sócrates tem seu quinhão de culpa no negócio. Vejamos.
Platão critica os sofistas porque estes, segundo ele, não têm como objetivo o conhecimento verdadeiro (em última instância, a busca da verdade) mas tão-somente instrumentalizar os jovens aristocratas de Atenas para as escaramuças verbais típicas do período e que faziam parte da luta pelo poder político. A comprovação da venalidade deles está no fato de que eram remunerados. Sócrates, por sua vez, trabalha de graça, e tal como Platão o pinta, sua ocupação é mais nobre já que se trata de educar nada mais, nada menos do que a alma dos indivíduos. Como colocar um preço em tal tarefa?
Há um trecho fundamental da
Apologia bem a propósito para nossa discussão (é um tanto longo, peço paciência ao(à) eventual leitor(a)):
"Se me matardes não vos será fácil encontrar outro igual, outro que,embora seja engraçado dizê-lo, por ordem divina se agarre inteiramente à cidade, como a um cavalo grande e de raça, mas um tanto lerdo por causa do tamanho e precisado de uma mosca-da-madeira que o estimule; parece-me que o deus me impôs à cidade com essa incumbência de me assentar perto, em toda parte, para não cessar de vos despertar, persuadir e repreender um por um. Outro igual não tereis facilmente, senhores mas, se me acreditardes, vós me poupareis. Bem pode ser que, aborrecidos como quem dormia e foi despertado, deis ouvidos a Ânito [um dos acusadores] e repelindo-me, me condeneis levianamente à morte; depois, passareis o resto da vida a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum outro. Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta reflexão: não é conforme à natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses, sofrendo, há tantos anos, as consequências desse abandono do que é meu, para me ocupar do que diz respeito a vós, dirigindo-me sem cessar a cada um em particular, como um pai ou irmão mais velho, para o persuadir a cuidar da virtude. Se auferisse proveito, se meus conselhos fossem pagos, meu procedimento teria outra explicação; mas vós mesmos o estais vendo; meus acusadores, tão descarados com todas as outras acusações, não foram capazes da extrema impudência de exibir testemunha de que alguma vez tenha recebido ou pedido remuneração. Porque da verdade de minhas alegações exibo, penso, uma prova cabal: minha pobreza".
Sócrates é a mosca na sopa, digo, a mosca impertinente que não dá descanso ao imenso animal acomodado que é a cidade de Atenas. Sua missão foi estabelecida pela divindade, um presente carimbado pelo Olimpo. O filósofo não cuidou de outra coisa na vida além
"do que diz respeito a vós", agindo
"como um pai ou irmão mais velho", com o único intuito de levar os cidadãos a
"cuidar da virtude". E qual a prova apresentada de tão boa intenção? A pobreza do acusado. Que grande espírito, não? Bem... Muita calma nessa hora...
É Platão quem está construindo esse perfil magnânimo, algo a se esperar de um discípulo devotado ao mestre (perfil, vale reiterar, condizente com a agenda platônica). Teria, entretanto, o Sócrates
de carne e osso sido assim tão gente fina? O comediógrafo Aristófanes tinha outra opinião... Seja como for, a constante alusão do filósofo à sua pobreza nos direciona para algumas reflexões.
. . . . . . .
Exceção aos países nórdicos - destacadamente, a Finlândia - e, talvez, no Japão, a docência e o magistério não fazem parte de uma área profissional atrativa ou prestigiada. Penso que um dos motivos para isso reside numa crença arraigada de que o ato de ensinar deveria ser apenas expressão de generosidade. Portanto, de acordo com essa lógica, seria até imoral envolver dinheiro na parada (lembram-se daquele
governador dizendo que professor devia trabalhar por amor? - ah, esses políticos brasileiros...). E, claro, como já dissemos, muitos ainda acreditam que a atividade docente é melhor exercida quando provém de alguém cheio de vocação, alguém com um "dom" (quem sabe anunciado pelo deus Apolo, hein?). Ora, uma dádiva assim não deveria ser objeto de mercantilização...
Graças a essas crenças, perniciosas ao longo da história da profissionalização do meio educacional, os trabalhadores desse setor em quase todos os lugares do mundo (e nalguns a coisa é pior) convivem habitualmente com salários bem inferiores a outras categorias profissionais que exigem o mesmo nível de escolaridade (vexatórios em determinados países) e têm imensa dificuldade em fazer valer sua
expertise no momento da formulação e aplicação de políticas pedagógicas. Sócrates, ouso dizer, contribuiu um pouco para esse estado de coisas, ainda que involuntariamente.
Por outro lado, para não ser acusado de
"anti-socrático" pelo(a) eventual leitor(a), devo observar que a pobreza usada pelo filósofo como prova a seu favor representa, sobretudo, a autonomia de uma consciência que se atreve a pensar por si mesma - além de incitar outros a fazê-lo também - , mesmo que, para tanto,
"acabe por negligenciar todos os [seus] interesses" e sofra, por muito tempo,
"as consequências desse abandono" da acumulação de grana/coisas/status para si.
É também famosíssima uma frase de Sócrates oriunda da
Apologia:
"... a vida sem exame não é vida digna de um ser humano..." (aqui sigo a tradução da obra referenciada abaixo). Noutras palavras mais simples:
não vale a pena viver sem pensar, sem questionar-se. Ter dinheiro é muito, muito, muito importante (este blogueiro não tem dúvida disso). Porém, a conta bancária polpuda, por si só, basta? Nem eu conseguiria ser tão inescrupuloso a ponto de responder afirmativamente.
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* PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999 [Tradução de Enrico Corvisieri]
Ah, aquele momento quando você constata que tem uma vida de merda (como a minha) e, finalmente, graças ao avanço da idade, dá-se conta de que as ilusões cultivadas na juventude não passavam disso mesmo, ilusões... Senti isso de novo, não sei por que, ao ouvir esta adorável canção do PATO FU hoje mais cedo: Vida diet.