quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Falou e disse...

"O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força - é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir."

MELO NETO, João Cabral. Poesia e composição. In: ________. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 51

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A pobreza de Sócrates


Qualquer um que se interesse por filosofia antiga nalgum momento sentiu-se curioso a respeito do Sócrates de carne e osso, portador de CPF e RG, andando de bobeira pela ágora ateniense. Que tipo de tenda ou taberna frequentava? Foi um bom marido para Xantipa? Jogava uma pelada aos sábados com a galera depois da sessão de maiêutica?

Pouco, muito pouco existe de registro sobre o Sócrates histórico (há até quem duvide de que ele realmente tenha existido). E mais de 2.300 anos são tempo suficiente para cercar o sujeito com toda sorte de relatos pouco críveis, algumas vezes lendários e, não raro, fantasiosos.

O(a) eventual leitor(a) pode objetar, com razão: "E daí? O que importa não é a pessoa física de Sócrates mas sim o seu pensamento, a sua concepção filosófica!". De fato. Mas até que ponto essa filosofia é propriamente socrática e não platônica, pensando no conceito moderno de autoria? Afinal, quase tudo que se atribui a Sócrates provém dos escritos de Platão...

Não desejo, todavia, enveredar por esse caminho polêmico. Interessa-me nesta postagem apenas um traço da vida do filósofo, mencionado frequentemente: sua pobreza.

Na Apologia de Sócrates*, o réu, acusado de não acreditar nos deuses e corromper a juventude, defende-se apresentando o que julga serem provas de sua inocência. O mestre de Platão alega que seus acusadores não dizem a verdade em relação à sua pessoa. Por exemplo, o filósofo afirma, durante o julgamento, que "quem vos disser que ganho dinheiro lecionando" estaria mentindo.


É de se perguntar: e qual o problema se ganhasse?

Como já escrevi brevemente aqui, fazia parte da agenda de Platão desqualificar os sofistas. E parece que ele foi bem sucedido na empreitada: até hoje, tanto o adjetivo sofístico quanto o substantivo sofisma não são palavras elogiosas. Na qualidade de oradores e professores de retórica, os sofistas foram bastante demandados por sua habilidade e know-how numa Atenas cujas decisões políticas eram influenciadas, em boa medida, pela capacidade de persuasão dos causídicos do momento - como, a propósito, se dá em grande parte do mundo civilizado até hoje. Aceitável, penso eu, que os sofistas fossem remunerados pelo ensino/treinamento dado. Mas não para Sócrates (e, portanto, não para Platão).

Durante a Apologia, Sócrates cita o caso de um tal Eveno de Paros. O sujeito recebera "cinco minas" (o equivalente a 500 dracmas) para ensinar as "qualidades de homem e de cidadão" aos filhos de um ateniense chamado Cálias. Sócrates diz:

"Fiquei, então com inveja desse Eveno, se é que é senhor dessa arte e leciona a tão bom preço. Por mim, bem que me orgulharia e envaideceria de ter a mesma ciência. Pena é que não a tenho, atenienses".

O filósofo, como se sabe, atribuiu a si uma missão, desde que o oráculo de Delfos disse ser Sócrates o mais sábio dos seres humanos. Em que consistia sua sabedoria? Ela está condensada num conhecidíssimo epigrama repetido todas as vezes em que essa figuraça da antiguidade é citada: "só sei que nada sei". Um pouco mais adiante, ele acrescenta:

"Essa ocupação [a missão de questionar tenazmente os indivíduos para que atinjam o autoconhecimento] não me permitiu os lazeres para qualquer atividade digna de menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo em pobreza extrema, por estar a serviço do deus".

O deus - seguramente Apolo - foi quem falou pela boca da sacerdotisa em Delfos, assim acreditava Sócrates, como qualquer bom grego de seu tempo. Por isso, o trabalho que o filósofo se atribuiu tem um forte componente religioso, messiânico até.

Não saberia dizer quando surgiu a bizarra suposição de que o magistério e a docência deveriam ser atividades puramente desinteressadas, baseadas numa suposta vocação do sujeito, com um quê de sacerdotal. Mas digo que Sócrates tem seu quinhão de culpa no negócio. Vejamos.

Platão critica os sofistas porque estes, segundo ele, não têm como objetivo o conhecimento verdadeiro (em última instância, a busca da verdade) mas tão-somente instrumentalizar os jovens aristocratas de Atenas para as escaramuças verbais típicas do período e que faziam parte da luta pelo poder político. A comprovação da venalidade deles está no fato de que eram remunerados. Sócrates, por sua vez, trabalha de graça, e tal como Platão o pinta, sua ocupação é mais nobre já que se trata de educar nada mais, nada menos do que a alma dos indivíduos. Como colocar um preço em tal tarefa?

Há um trecho fundamental da Apologia bem a propósito para nossa discussão (é um tanto longo, peço paciência ao(à) eventual leitor(a)):

"Se me matardes não vos será fácil encontrar outro igual, outro que,embora seja engraçado dizê-lo, por ordem divina se agarre inteiramente à cidade, como a um cavalo grande e de raça, mas um tanto lerdo por causa do tamanho e precisado de uma mosca-da-madeira que o estimule; parece-me que o deus me impôs à cidade com essa incumbência de me assentar perto, em toda parte, para não cessar de vos despertar, persuadir e repreender um por um. Outro igual não tereis facilmente, senhores mas, se me acreditardes, vós me poupareis. Bem pode ser que, aborrecidos como quem dormia e foi despertado, deis ouvidos a Ânito [um dos acusadores] e repelindo-me, me condeneis levianamente à morte; depois, passareis o resto da vida a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum outro. Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta reflexão: não é conforme à natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses, sofrendo, há tantos anos, as consequências desse abandono do que é meu, para me ocupar do que diz respeito a vós, dirigindo-me sem cessar a cada um em particular, como um pai ou irmão mais velho, para o persuadir a cuidar da virtude. Se auferisse proveito, se meus conselhos fossem pagos, meu procedimento teria outra explicação; mas vós mesmos o estais vendo; meus acusadores, tão descarados com todas as outras acusações, não foram capazes da extrema impudência de exibir testemunha de que alguma vez tenha recebido ou pedido remuneração. Porque da verdade de minhas alegações exibo, penso, uma prova cabal: minha pobreza".

Sócrates é a mosca na sopa, digo, a mosca impertinente que não dá descanso ao imenso animal acomodado que é a cidade de Atenas. Sua missão foi estabelecida pela divindade, um presente carimbado pelo Olimpo. O filósofo não cuidou de outra coisa na vida além "do que diz respeito a vós", agindo "como um pai ou irmão mais velho", com o único intuito de levar os cidadãos a "cuidar da virtude". E qual a prova apresentada de tão boa intenção? A pobreza do acusado. Que grande espírito, não? Bem... Muita calma nessa hora...

É Platão quem está construindo esse perfil magnânimo, algo a se esperar de um discípulo devotado ao mestre (perfil, vale reiterar, condizente com a agenda platônica). Teria, entretanto, o Sócrates de carne e osso sido assim tão gente fina? O comediógrafo Aristófanes tinha outra opinião... Seja como for, a constante alusão do filósofo à sua pobreza nos direciona para algumas reflexões.

. . . . . . .

Exceção aos países nórdicos - destacadamente, a Finlândia - e, talvez, no Japão, a docência e o magistério não fazem parte de uma área profissional atrativa ou prestigiada. Penso que um dos motivos para isso reside numa crença arraigada de que o ato de ensinar deveria ser apenas expressão de generosidade. Portanto, de acordo com essa lógica,  seria até imoral envolver dinheiro na parada (lembram-se daquele governador dizendo que professor devia trabalhar por amor? - ah, esses políticos brasileiros...). E, claro, como já dissemos, muitos ainda acreditam que a atividade docente é melhor exercida quando provém de alguém cheio de vocação, alguém com um "dom" (quem sabe anunciado pelo deus Apolo, hein?). Ora, uma dádiva assim não deveria ser objeto de mercantilização...

Graças a essas crenças, perniciosas ao longo da história da profissionalização do meio educacional, os trabalhadores desse setor em quase todos os lugares do mundo (e nalguns a coisa é pior) convivem habitualmente com salários bem inferiores a outras categorias profissionais que exigem o mesmo nível de escolaridade (vexatórios em determinados países) e têm imensa dificuldade em fazer valer sua expertise no momento da formulação e aplicação de políticas pedagógicas. Sócrates, ouso dizer, contribuiu um pouco para esse estado de coisas, ainda que involuntariamente.

Por outro lado, para não ser acusado de "anti-socrático" pelo(a) eventual leitor(a), devo observar que a pobreza usada pelo filósofo como prova a seu favor representa, sobretudo, a autonomia de uma consciência que se atreve a pensar por si mesma - além de incitar outros a fazê-lo também - , mesmo que, para tanto, "acabe por negligenciar todos os [seus] interesses" e sofra, por muito tempo, "as consequências desse abandono" da acumulação de grana/coisas/status para si.

É também famosíssima uma frase de Sócrates oriunda da Apologia: "... a vida sem exame não é vida digna de um ser humano..." (aqui sigo a tradução da obra referenciada abaixo). Noutras palavras mais simples: não vale a pena viver sem pensar, sem questionar-se. Ter dinheiro é muito, muito, muito importante (este blogueiro não tem dúvida disso). Porém, a conta bancária polpuda, por si só, basta? Nem eu conseguiria ser tão inescrupuloso a ponto de responder afirmativamente.
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* PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999 [Tradução de Enrico Corvisieri]

BG de Hoje

Ah, aquele momento quando você constata que tem uma vida de merda (como a minha) e, finalmente, graças ao avanço da idade, dá-se conta de que as ilusões cultivadas na juventude não passavam disso mesmo, ilusões... Senti isso de novo, não sei por que, ao ouvir esta adorável canção do PATO FU hoje mais cedo: Vida diet.


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Por que passei a tentar me comunicar noutro idioma?




Não faz muito tempo, li um artigo postulando que não conhecer outro idioma além da língua materna é o analfabetismo do século 21. Exagerado? Um pouco. Não tenho dúvida, porém, de que o monolinguismo é um tremendo limitador, ainda mais numa era que se orgulha da interconexão planetária e da possibilidade de comunicação full-time.

Comecei a estudar inglês, com maior empenho e alguma organização, em 2005, quando decidi me matricular num desses cursos ofertados por empresas especializadas (no caso, a FISK). Porque, convenhamos, não dá pra considerar as aulas de inglês da nossa capenga educação escolar básica como forma de aprendizado de um idioma estrangeiro. NOTA: O ensino de língua estrangeira (ou melhor, a ausência deste) está entre os inumeráveis problemas da nossa vida escolar. Falta a percepção de que o aprendizado de outro idioma aumenta a consciência linguística do indivíduo, melhorando inclusive a performance em sua própria língua nativa. Outra grande falha da escola brasileira foi a definição da língua estrangeira a ser ensinada. Num país cujos vizinhos são falantes de espanhol, qual deveria ter sido a opção mais óbvia e razoável desde o início? Entretanto, seguindo os costumes de nossa elite econômica - que só tem olhos para a Europa não-ibérica e os EUA, dando as costas para a América Latina - o sistema escolar desdenhou o aproveitamento da língua espanhola por muito tempo. Resultado: o inglês não é ensinado adequadamente e muito menos o espanhol.

Como dizia, frequentei o curso FISK durante dois anos. Infelizmente, dada minha sempre periclitante situação financeira, não pude concluir as outras etapas de formação previstas. Ainda assim, foi um período muito proveitoso. Entre 2009 e 2014, preguiçoso, deixei de lado o inglês, mas retomei o seu estudo e aprimoramento no ano passado, dessa vez de maneira autodidata, contando com o auxílio preciosíssimo da web. E por que fazê-lo?

Um dos motivos (como deixara indicado nessa outra postagem) é o fato do inglês, atualmente, desempenhar o papel de lingua franca do mundo. É possível entender e se fazer entender por meio do inglês mesmo que nos polos da mensagem a ser comunicada estejam, por exemplo, um brasileiro e um sul-coreano, dois falantes cujas línguas maternas quase nada tem em comum. Posso ter pelo menos uma noção do que quer me dizer um russo, uma iraniana ou um etíope se utilizarmos a mesma base linguística - nesse caso, o inglês - a despeito das diferenças de nossos idiomas nativos.

Além do mais, muitas coisas de que gosto são veiculadas em inglês. Boa parte dos artistas que admiro na música pop, em particular dentro do rock, expressam-se em inglês. E, pensando na Literatura e na Filosofia, muitos escritores e escritoras, independentemente de qual seja seu país de origem, são traduzidos para o inglês, justamente pelo papel de lingua franca desempenhado por esse idioma. O aprendizado de outra língua também ajuda a combater a demência e males como o Alzheimer. E quanto mais melhor: a partir de 2018, começarei a estudar francês (claro, não só para manter o cérebro ativo, mas porque alguns dos filósofos pelos quais tenho interesse - Montaigne, Rousseau, Sartre, Deleuze - são franceses e quero um dia ler seus textos no idioma em que foram originalmente escritos). Também desejo aprender espanhol e árabe quando possível.

Mas há ainda mais um motivo que me leva à comunicação noutro idioma: a solidão.

Só muito recentemente - para se ter ideia de como sou lento - me dei conta de que não permaneceu em meu convívio nenhum de meus(minhas) antigos(as) amigos(as), do tempo de infância/adolescência ou do "tempo da escola". Não temos quase nada em comum. O que nos ligava era algo muito circunstancial e passageiro, relacionado apenas àqueles momentos específicos do passado e que se esgotaram no momento mesmo em que aconteceram. Não tenho com essas pessoas - nem elas comigo - quase nenhuma afinidade de caráter afetivo, profissional ou intelectual. Não compartilhamos visões de mundo ou perspectivas existenciais nem de longe parecidas. E não chegamos a dividir no passado nenhuma grande experiência significativa que tenha produzido alguma reverberação no presente.

Sendo franco, nunca fui um indivíduo amigável. Egoísta e presunçoso, não me dou bem com colegas de trabalho nem com parentes. Não soube desenvolver vínculos satisfatórios na vida adulta e, sendo realista, as chances de que isso aconteça agora, aos 44 anos de idade, são bem reduzidas.

Reluto em chamar os Facebooks, Twitters e Instagrams da vida de redes sociais (prefiro o termo mídia social) porque a ideia de rede - como local de entrelaçamento - não existe nesses espaços virtuais. Não há interação entre indivíduos. Como escreveu o cronista Antonio Prata, "hoje, cada ser humano conectado à rede é uma miniempresa de comunicação de si mesmo, atrás de atenção". Não é possível conversar ou trocar pontos de vista nesses espaços. Para além da imensa quantidade de selfies e fotos ordinárias do cotidiano banal, memes de autoajuda, platitudes de almanaque ou proselitismo religioso, há a selvageria típica da web 2.0, em que xingamentos, ofensas e preconceito são a regra geral. Repito: não há interação nesses espaços virtuais (pelo menos não com a qualidade que eu gostaria). E uma vez que essas mídias sociais são um importante componente da subjetividade contemporânea, meu sentimento de solidão e isolamento só faz aumentar.

Quando comecei a atividade de blogueiro, há onze anos, meu desejo de interação era parecido com a imagem (gasta, reconheço) da mensagem na garrafa jogada ao mar. O que pensei foi basicamente isso: é possível que, em meio ao tantão de gente conectada à rede mundial de computadores, posso encontrar outras pessoas com interesses parecidos com os meus (gostem de falar sobre livros, curtem rock, olhem pro mundo de modo menos pragmático, etc.). E encontrei algumas pessoas assim. Foi meu momento mais feliz na web; as garrafas foram encontradas (as que lancei e as que outros lançaram) e as respectivas mensagens lidas. Contudo, os blogs ficaram "fora de moda", engolidos sobretudo pelo Facebook. Julgo necessário me reorganizar.

Daí a opção por escrever noutro idioma. A língua portuguesa, por mais expressiva e bela que seja, tem um número de usuários pouco representativo, quando comparado com outros idiomas. Não abandonei a ideia da garrafa jogada ao mar; agora, entretanto, a mensagem escrita em inglês pode, quem sabe, atingir outros indivíduos, não falantes do português, mas tão solitários e insatisfeitos quanto eu. E posso também apanhar as garrafas deles. É uma imensa improbabilidade estatística obter uma resposta e chegar a alguma interação que valha a pena. Mas não uma impossibilidade matemática, como já pude observar no meu extinto perfil do Twitter, em que algumas vezes, postando em inglês, não passei batido.

No próximo ano pretendo criar um blog e um perfil no Twitter escritos exclusivamente em inglês. No atual perfil do Facebook,  incluirei mais atualizações nesse idioma, já que meus posts são quase todos públicos. O interlocutor que procuro pode estar no Canadá, no Vietnam ou na Namíbia. Ainda tenho esperança de que nos encontremos.

BG de Hoje

Uma das coisas que me irrita entre os fãs do "pancadão" (recuso-me a chamar aquilo de funk) é a ignorância deliberada assumida por eles. Não fazem nenhum esforço para ouvir outro tipo de música ou mesmo conhecer a história do funk como gênero musical. Saberiam, caso não fossem tão ignorantes, que o Brasil já teve um grupo excelente chamado BANDA BLACK RIO, juntando elementos da black music norte-americana com elementos da música brasileira, como nessa faixa, Mr. Funky Samba.