A professora da Unesp - e também poeta - Susanna Busato, num artigo em que analisa um poema de Frederico Barbosa* (disponível aqui), escreveu:
"Antes de mais nada é preciso dizer que poesia é imagem. Este pressuposto é condição para que deixemos de lado qualquer traço de interpretação que nos leve para o âmbito das referências, para o âmbito do caráter simbólico no sentido da convenção do signo linguístico. Todas as referências que nos levem para um outro universo que não aquele da imagem poética transformam nossa leitura da poesia em falácia, em visão superficial, em percepção automatizada para com a linguagem".
Como se vê, a poesia é indissociável da imagem. Sem esta, ficaríamos presos à "convenção do signo linguístico". Lembrando a afirmação do crítico literário russo Victor Chklovski, segundo a qual o objetivo da imagem poética é "criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento", Susanna Busato observa que, assim sendo, não se sustenta
"o pensamento de que a imagem tornaria mais próxima de nossa compreensão a significação do objeto. A imagem poética não é um modo de pensar, ou de expressar na linguagem o princípio da economia de energia ao nomear as coisas do mundo, como fazemos cotidianamente com o uso das metáforas simples, já codificadas pelo uso. A imagem poética surge como percepção única, singular das coisas".
Como definir o que é a imagem no texto poético? Não é tarefa simples...
Em 1957, Gaston Bachelard publicou um ensaio bem contrastante em relação a toda sua produção anterior. Conhecido por seus trabalhos dedicados à filosofia das ciências, Bachelard surpreendeu ao lançar A poética do espaço**, em que tenciona estudar, fenomenologicamente, um dos aspectos fundamentais da poesia. Por que fenomenologicamente? Segundo o pensador francês,
NOTA: Para facilitar o entendimento (afinal, trata-se de uma mera postagem de blog), tomaremos o termo fenomenologia como a tentativa de descrever as experiências subjetivas vivenciadas por uma consciência (no caso, a do apreciador do poema) diante de um fenômeno específico (no caso, o texto poético).
"A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber", diz Bachelard, pois "nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber" (Susanna Busato já indicara algo similar, ao considerar que "a imagem poética não é um modo de pensar"): ou seja, a leitura de um poema não passa pela apreensão de conceitos; tudo se dá "na linha sutil da frase, na vida efêmera de uma expressão".
O filósofo acredita que
Impulsos linguísticos que saem da linha ordinária da linguagem pragmática... Eis aí o que poderia ser uma boa definição de imagem poética. Passemos agora, a um poema em particular.
Esse poema é de Henriqueta Lisboa e integra o livro Flor da morte***, publicado pela primeira vez em 1949. Cheia de ecos simbolistas, a obra da poeta mineira "é uma intensa e extensa metáfora. Tudo por ela saber que a metáfora protege o escritor e liberta o leitor para outras indagações", segundo Bartolomeu Campos de Queirós, que foi grande amigo e admirador da autora. "Henriqueta exercia a poesia" - prossegue ele - "por bem saber que na densidade dos versos o fruidor encontra espaço para mais deslocamentos".****
O aparecimento da palavra metáfora, nas observações de Queirós, veio bem a calhar. Frequentemente, imagem e metáfora são empregadas em sentido quase idêntico (o Aurélio, por exemplo, coloca metáfora como uma das acepções possíveis no verbete imagem). Cabe, então, estabelecermos o seguinte: penso não valer a pena embrenharmo-nos pelo cipoal de sutilezas que diferenciam estes dois tropos - isso sem falar em alegorias, símbolos, catacreses, símiles e comparações - nessa nossa reflexão despretensiosa em torno da imagem poética. Nesta postagem, portanto, não nos preocuparemos em distinguir metáfora de imagem. Voltemos ao poema.
Todo o livro Flor da morte concentra-se em um tema nuclear, introduzido desde o título. E penso que, entre os 42 poemas ali compilados, O cortejo contém a maior força imagética ao falar da morte.
Como não ser logo carregado por esses cavalos poderosos, possantes, negros/claros e ágeis - mas, ao mesmo tempo, traiçoeiros, hediondos, lúbricos? Nem bem começamos a visualizar dentro de nós "a noite/com suas tempestades lúridas/e seus cabelos desnastrados" e já os animais imponentes irrompem, imprimindo um traçado novo no território do poema (e também modificando a paisagem mental do leitor) "como a força das águas descendo a montanha".
Nada obstrui ou retarda o caminho deles: "Tudo são planícies abertas" (e faço questão de destacar o fechamento antitético da estrofe: "acariciando as patas que as flagelam"). Vamos nos deter um pouco no seguinte agrupamento de versos:
Numa primeira visada, poderia soar desagradável a quem lê o lugar-comum representado pelas "searas em flor". Mas, logo em seguida, o poema retoma seu valor expressivo. Os versos subsequentes neutralizam o clichê, auxiliados pelo efeito (não muito excepcional, mas bastante eficaz) da anástrofe - "[...] marcou-as/o destino dos pastos". Convém mencionar ainda que seara e pasto ocupam posições distintas num mesmo campo semântico - e a associação da morte com o segundo vocábulo não é imediatamente perceptível. Ponto para a poeta.
A pergunta lançada na última estrofe traz à superfície do texto quem até então não figurava nele: os indivíduos (incluídos aí os leitores) a serem "arrebatados" pelo cortejo da morte, reinstalando-se assim a atmosfera de inquietude presente no poema (e no livro como um todo).
Percebem como a tentativa de falar do texto de Henriqueta Lisboa, de forma analítica e interpretativa, fica muito aquém do que o poema evoca por si só através de suas imagens? Nunca se consegue "transportar", adequadamente, para outra modalidade de escrita o que já foi dito num poema. O que um poema diz não pode ser separado da forma como ele se compõe e se apresenta, incluindo, claro, suas imagens.
Antes de encerrar, gostaria de sugerir ao(a) eventual leitor(a) a palestra intitulada A imagem poética, realizada pelo professor Murilo Marcondes de Moura, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP) - disponível aqui. O professor, atualmente trabalhando na USP, teve uma curta passagem pela Faculdade de Letras da UFMG na década de 1990, quando tive a honra e felicidade de ter sido seu aluno. Dada a grande erudição de Murilo Marcondes, a palestra - na qual são discutidos os poetas Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gongora, Guillaume Apollinaire e Murilo Mendes - é muito mais enriquecedora do que as patacoadas deste blogueiro.
Na próxima postagem. falarei sobre um livro marcante na filosofia, no estudo histórico e na sociologia das ciências, A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn
__________
* BUSATO, Susanna. Sob os poros da poesia: um roteiro de leitura. Zunái - Revista de poesia e debate. Disponível em <http://www.revistazunai.com/ensaios/susanna_busato_sobosporos.htm> Acesso em 02/06/2016
** BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal] (Coleção Os pensadores)
*** LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004
**** O depoimento do escritor Bartolomeu Campos de Queirós pode ser encontrado na apresentação de uma edição da Revista do Tribunal de Contas do Estado (vol. 75, n. 2, ano XXVIII - abril/maio/junho de 2010). Link para o texto de Queiros: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/886.pdf
Gosto muito desta canção: Vermelho (composta e interpretada por VANESSA DA MATA). Contudo, sempre sinto - por motivos que não vêm ao caso agora - um ponta de tristeza quando a ouço.
Em 1957, Gaston Bachelard publicou um ensaio bem contrastante em relação a toda sua produção anterior. Conhecido por seus trabalhos dedicados à filosofia das ciências, Bachelard surpreendeu ao lançar A poética do espaço**, em que tenciona estudar, fenomenologicamente, um dos aspectos fundamentais da poesia. Por que fenomenologicamente? Segundo o pensador francês,
"Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética é preciso voltar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética no momento que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade".
NOTA: Para facilitar o entendimento (afinal, trata-se de uma mera postagem de blog), tomaremos o termo fenomenologia como a tentativa de descrever as experiências subjetivas vivenciadas por uma consciência (no caso, a do apreciador do poema) diante de um fenômeno específico (no caso, o texto poético).
"A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber", diz Bachelard, pois "nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber" (Susanna Busato já indicara algo similar, ao considerar que "a imagem poética não é um modo de pensar"): ou seja, a leitura de um poema não passa pela apreensão de conceitos; tudo se dá "na linha sutil da frase, na vida efêmera de uma expressão".
O filósofo acredita que
"A imagem poética é uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante. Ao viver os poemas, tem-se pois a experiência salutar da emergência. Emergência sem dúvida de pequeno porte. Mas essas emergências se renovam; a poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra aí por sua vivacidade. Esses impulsos linguísticos que saem da linha ordinária da linguagem pragmática são miniaturas do impulso vital".
Impulsos linguísticos que saem da linha ordinária da linguagem pragmática... Eis aí o que poderia ser uma boa definição de imagem poética. Passemos agora, a um poema em particular.
. . . . . . .
O CORTEJO
Para a passagem do cortejo da morte
é que se fez a noite
com suas tempestades lúridas
e seus cabelos desnastrados.
Os cavalos da morte são negros
poderosos e negros mais que a noite
de relâmpagos e ventos repleta.
Cristalizam-se as águas
para a passagem do cortejo da morte.
Os rios transformam-se em pistas de gelo,
mares e lagos são tablados de musgo e areia.
Os cavalos da morte são possantes,
pesados e claros
como a força das águas descendo a montanha.
Nivelam-se colinas e vales
à passagem do cortejo da morte.
Tudo são planícies abertas.
Deitam-se na relva as árvores
acariciando as patas que as flagelam.
Os cavalos da morte são ágeis
e traiçoeiros como as serpentes do bosque.
Devassam-se as furnas, as cavernas
seus tesouros expõem,
searas em flor, subitamente,
cessam de sonhar: marcou-as
o destino dos pastos
Os cavalos da morte são hediondos
e lúbricos
na sua fome de eternidade.
Os cavalos da morte, quem os nutre,
senão os próprios viajores arrebatados?!
Esse poema é de Henriqueta Lisboa e integra o livro Flor da morte***, publicado pela primeira vez em 1949. Cheia de ecos simbolistas, a obra da poeta mineira "é uma intensa e extensa metáfora. Tudo por ela saber que a metáfora protege o escritor e liberta o leitor para outras indagações", segundo Bartolomeu Campos de Queirós, que foi grande amigo e admirador da autora. "Henriqueta exercia a poesia" - prossegue ele - "por bem saber que na densidade dos versos o fruidor encontra espaço para mais deslocamentos".****
O aparecimento da palavra metáfora, nas observações de Queirós, veio bem a calhar. Frequentemente, imagem e metáfora são empregadas em sentido quase idêntico (o Aurélio, por exemplo, coloca metáfora como uma das acepções possíveis no verbete imagem). Cabe, então, estabelecermos o seguinte: penso não valer a pena embrenharmo-nos pelo cipoal de sutilezas que diferenciam estes dois tropos - isso sem falar em alegorias, símbolos, catacreses, símiles e comparações - nessa nossa reflexão despretensiosa em torno da imagem poética. Nesta postagem, portanto, não nos preocuparemos em distinguir metáfora de imagem. Voltemos ao poema.
Todo o livro Flor da morte concentra-se em um tema nuclear, introduzido desde o título. E penso que, entre os 42 poemas ali compilados, O cortejo contém a maior força imagética ao falar da morte.
Como não ser logo carregado por esses cavalos poderosos, possantes, negros/claros e ágeis - mas, ao mesmo tempo, traiçoeiros, hediondos, lúbricos? Nem bem começamos a visualizar dentro de nós "a noite/com suas tempestades lúridas/e seus cabelos desnastrados" e já os animais imponentes irrompem, imprimindo um traçado novo no território do poema (e também modificando a paisagem mental do leitor) "como a força das águas descendo a montanha".
Nada obstrui ou retarda o caminho deles: "Tudo são planícies abertas" (e faço questão de destacar o fechamento antitético da estrofe: "acariciando as patas que as flagelam"). Vamos nos deter um pouco no seguinte agrupamento de versos:
"Devassam-se as furnas, as cavernas
seus tesouros expõem,
searas em flor, subitamente,
cessam de sonhar: marcou-as
o destino dos pastos".
Numa primeira visada, poderia soar desagradável a quem lê o lugar-comum representado pelas "searas em flor". Mas, logo em seguida, o poema retoma seu valor expressivo. Os versos subsequentes neutralizam o clichê, auxiliados pelo efeito (não muito excepcional, mas bastante eficaz) da anástrofe - "[...] marcou-as/o destino dos pastos". Convém mencionar ainda que seara e pasto ocupam posições distintas num mesmo campo semântico - e a associação da morte com o segundo vocábulo não é imediatamente perceptível. Ponto para a poeta.
A pergunta lançada na última estrofe traz à superfície do texto quem até então não figurava nele: os indivíduos (incluídos aí os leitores) a serem "arrebatados" pelo cortejo da morte, reinstalando-se assim a atmosfera de inquietude presente no poema (e no livro como um todo).
Percebem como a tentativa de falar do texto de Henriqueta Lisboa, de forma analítica e interpretativa, fica muito aquém do que o poema evoca por si só através de suas imagens? Nunca se consegue "transportar", adequadamente, para outra modalidade de escrita o que já foi dito num poema. O que um poema diz não pode ser separado da forma como ele se compõe e se apresenta, incluindo, claro, suas imagens.
Antes de encerrar, gostaria de sugerir ao(a) eventual leitor(a) a palestra intitulada A imagem poética, realizada pelo professor Murilo Marcondes de Moura, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP) - disponível aqui. O professor, atualmente trabalhando na USP, teve uma curta passagem pela Faculdade de Letras da UFMG na década de 1990, quando tive a honra e felicidade de ter sido seu aluno. Dada a grande erudição de Murilo Marcondes, a palestra - na qual são discutidos os poetas Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gongora, Guillaume Apollinaire e Murilo Mendes - é muito mais enriquecedora do que as patacoadas deste blogueiro.
Na próxima postagem. falarei sobre um livro marcante na filosofia, no estudo histórico e na sociologia das ciências, A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn
__________
* BUSATO, Susanna. Sob os poros da poesia: um roteiro de leitura. Zunái - Revista de poesia e debate. Disponível em <http://www.revistazunai.com/ensaios/susanna_busato_sobosporos.htm> Acesso em 02/06/2016
** BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal] (Coleção Os pensadores)
*** LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004
**** O depoimento do escritor Bartolomeu Campos de Queirós pode ser encontrado na apresentação de uma edição da Revista do Tribunal de Contas do Estado (vol. 75, n. 2, ano XXVIII - abril/maio/junho de 2010). Link para o texto de Queiros: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/886.pdf
BG de Hoje
Gosto muito desta canção: Vermelho (composta e interpretada por VANESSA DA MATA). Contudo, sempre sinto - por motivos que não vêm ao caso agora - um ponta de tristeza quando a ouço.