sábado, 18 de junho de 2016

Falou e disse...

"Porque é claro que todos nós temos preconceitos (não suporto nem alguns dos meus parentes de sangue, uma gente ávida e egoísta), mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e, nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder. Como? Bem, os brancos não são tratados como merda nos bairros afro-americanos de classe alta, não veem bancos lhes recusarem empréstimos ou hipotecas precisamente por serem brancos, os júris negros não dão penas mais longas para criminosos brancos do que para os negros que cometeram o mesmo crime, os policiais negros não param os brancos apenas por estarem dirigindo um carro, as empresas negras não escolhem não contratar alguém porque seu nome soa como de uma pessoa branca, os professores negros não dizem às crianças brancas que elas não são inteligentes o suficiente para serem médicas, [...], e as agências publicitárias não dizem que não podem usar modelos brancas para anunciar produtos glamorosos porque elas não são consideradas 'aspiracionais' pelo 'mainstream' "*.

* Observação da personagem Ifemelu no romance Americanah (Editora Companhia das Letras, 2014. p. 354-355), da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi ADICHIE. A tradução é de Julia Romeu.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Sobre a imagem poética: lendo O cortejo, de Henriqueta Lisboa


A professora da Unesp - e também poeta - Susanna Busato, num artigo em que analisa um poema de Frederico Barbosa(disponível aqui), escreveu:

"Antes de mais nada é preciso dizer que poesia é imagem. Este pressuposto é condição para que deixemos de lado qualquer traço de interpretação que nos leve para o âmbito das referências, para o âmbito do caráter simbólico no sentido da convenção do signo linguístico. Todas as referências que nos levem para um outro universo que não aquele da imagem poética transformam nossa leitura da poesia em falácia, em visão superficial, em percepção automatizada para com a linguagem".

Como se vê, a poesia é indissociável da imagem. Sem esta, ficaríamos presos à "convenção do signo linguístico". Lembrando a afirmação do crítico literário russo Victor Chklovski, segundo a qual o objetivo da imagem poética é "criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento", Susanna Busato observa que, assim sendo, não se sustenta

"o pensamento de que a imagem tornaria mais próxima de nossa compreensão a significação do objeto. A imagem poética não é um modo de pensar, ou de expressar na linguagem o princípio da economia de energia ao nomear as coisas do mundo, como fazemos cotidianamente com o uso das metáforas simples, já codificadas pelo uso. A imagem poética surge como percepção única, singular das coisas".

Como definir o que é a imagem no texto poético? Não é tarefa simples...

Em 1957, Gaston Bachelard publicou um ensaio bem contrastante em relação a toda sua produção anterior. Conhecido por seus trabalhos dedicados à filosofia das ciências, Bachelard surpreendeu ao lançar A poética do espaço**, em que tenciona estudar, fenomenologicamente, um dos aspectos fundamentais da poesia. Por que fenomenologicamente? Segundo o pensador francês,

"Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética é preciso voltar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética no momento que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade".

NOTA: Para facilitar o entendimento (afinal, trata-se de uma mera postagem de blog), tomaremos o termo fenomenologia como a tentativa de descrever as experiências subjetivas vivenciadas por uma consciência (no caso, a do apreciador do poema) diante de um fenômeno específico (no caso, o texto poético).

"A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber", diz Bachelard, pois "nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber" (Susanna Busato já indicara algo similar, ao considerar que "a imagem poética não é um modo de pensar"): ou seja, a leitura de um poema não passa pela apreensão de conceitos; tudo se dá "na linha sutil da frase, na vida efêmera de uma expressão".

O filósofo acredita que

"A imagem poética é uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante. Ao viver os poemas, tem-se pois a experiência salutar da emergência. Emergência sem dúvida de pequeno porte. Mas essas emergências se renovam; a poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra aí por sua vivacidade. Esses impulsos linguísticos que saem da linha ordinária da linguagem pragmática são miniaturas do impulso vital".

Impulsos linguísticos que saem da linha ordinária da linguagem pragmática... Eis aí o que poderia ser uma boa definição de imagem poética. Passemos agora, a um poema em particular.

. . . . . . .

O CORTEJO

Para a passagem do cortejo da morte
é que se fez a noite
com suas tempestades lúridas
e seus cabelos desnastrados.

Os cavalos da morte são negros
poderosos e negros mais que a noite
de relâmpagos e ventos repleta.

Cristalizam-se as águas
para a passagem do cortejo da morte.
Os rios transformam-se em pistas de gelo,
mares e lagos são tablados de musgo e areia.
Os cavalos da morte são possantes,
pesados e claros
como a força das águas descendo a montanha.

Nivelam-se colinas e vales
à passagem do cortejo da morte.
Tudo são planícies abertas.
Deitam-se na relva as árvores
acariciando as patas que as flagelam.

Os cavalos da morte são ágeis 
e traiçoeiros como as serpentes do bosque.

Devassam-se as furnas, as cavernas
seus tesouros expõem,
searas em flor, subitamente,
cessam de sonhar: marcou-as
o destino dos pastos

Os cavalos da morte são hediondos
e lúbricos
na sua fome de eternidade.

Os cavalos da morte, quem os nutre,
senão os próprios viajores arrebatados?!

Esse poema é de Henriqueta Lisboa e integra o livro Flor da morte***, publicado pela primeira vez em 1949. Cheia de ecos simbolistas, a obra da poeta mineira "é uma intensa e extensa metáfora. Tudo por ela saber que a metáfora protege o escritor e liberta o leitor para outras indagações", segundo Bartolomeu Campos de Queirós, que foi grande amigo e admirador da autora. "Henriqueta exercia a poesia" - prossegue ele - "por bem saber que na densidade dos versos o fruidor encontra espaço para mais deslocamentos".****

O aparecimento da palavra metáfora, nas observações de Queirós, veio bem a calhar. Frequentemente, imagem e metáfora são empregadas em sentido quase idêntico (o Aurélio, por exemplo, coloca metáfora como uma das acepções possíveis no verbete imagem). Cabe, então, estabelecermos o seguinte: penso não valer a pena embrenharmo-nos pelo cipoal de sutilezas que diferenciam estes dois tropos - isso sem falar em alegorias, símbolos, catacresessímiles e comparações - nessa nossa reflexão despretensiosa em torno da imagem poética. Nesta postagem, portanto, não nos preocuparemos em distinguir metáfora de imagem. Voltemos ao poema.

Todo o livro Flor da morte concentra-se em um tema nuclear, introduzido desde o título. E penso que, entre os 42 poemas ali compilados, O cortejo contém a maior força imagética ao falar da morte.

Como não ser logo carregado por esses cavalos poderosos, possantes, negros/claros e ágeis - mas, ao mesmo tempo, traiçoeiros, hediondos, lúbricos? Nem bem começamos a visualizar dentro de nós "a noite/com suas tempestades lúridas/e seus cabelos desnastrados" e já os animais imponentes irrompem, imprimindo um traçado novo no território do poema (e também modificando a paisagem mental do leitor) "como a força das águas descendo a montanha".

Nada obstrui ou retarda o caminho deles: "Tudo são planícies abertas" (e faço questão de destacar o fechamento antitético da estrofe: "acariciando as patas que as flagelam"). Vamos nos deter um pouco no seguinte agrupamento de versos:

 "Devassam-se as furnas, as cavernas
seus tesouros expõem,
searas em flor, subitamente,
cessam de sonhar: marcou-as
o destino dos pastos".

Numa primeira visada, poderia soar desagradável a quem lê o lugar-comum representado pelas "searas em flor". Mas, logo em seguida, o poema retoma seu valor expressivo. Os versos subsequentes neutralizam o clichê, auxiliados pelo efeito (não muito excepcional, mas bastante eficaz) da anástrofe - "[...] marcou-as/o destino dos pastos". Convém mencionar ainda que seara e pasto ocupam posições distintas num mesmo campo semântico - e a associação da morte com o segundo vocábulo não é imediatamente perceptível. Ponto para a poeta.

A pergunta lançada na última estrofe traz à superfície do texto quem até então não figurava nele: os indivíduos (incluídos aí os leitores) a serem "arrebatados" pelo cortejo da morte, reinstalando-se assim a atmosfera de inquietude presente no poema (e no livro como um todo).

Percebem como a tentativa de falar do texto de Henriqueta Lisboa, de forma analítica e interpretativa, fica muito aquém do que o poema evoca por si só através de suas imagens? Nunca se consegue "transportar", adequadamente, para outra modalidade de escrita o que já foi dito num poema. O que um poema diz não pode ser separado da forma como ele se compõe e se apresenta, incluindo, claro, suas imagens.

Antes de encerrar, gostaria de sugerir ao(a) eventual leitor(a) a palestra intitulada A imagem poética, realizada pelo professor Murilo Marcondes de Moura, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP) - disponível aqui. O professor, atualmente trabalhando na USP, teve uma curta passagem pela Faculdade de Letras da UFMG na década de 1990, quando tive a honra e felicidade de ter sido seu aluno. Dada a grande erudição de Murilo Marcondes, a palestra - na qual são discutidos os poetas Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gongora, Guillaume Apollinaire e Murilo Mendes - é muito mais enriquecedora do que as patacoadas deste blogueiro.

Na próxima postagem. falarei sobre um livro marcante na filosofia, no estudo histórico e na sociologia das ciências, A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn
__________
* BUSATO, Susanna. Sob os poros da poesia: um roteiro de leitura. Zunái - Revista de poesia e debate. Disponível em <http://www.revistazunai.com/ensaios/susanna_busato_sobosporos.htm> Acesso em 02/06/2016

** BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal] (Coleção Os pensadores)

*** LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004

**** O depoimento do escritor Bartolomeu Campos de Queirós pode ser encontrado na apresentação de uma edição da Revista do Tribunal de Contas do Estado (vol. 75, n. 2, ano XXVIII - abril/maio/junho de 2010). Link para o texto de Queiros: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/886.pdf

BG de Hoje

Gosto muito desta canção: Vermelho (composta e interpretada por VANESSA DA MATA). Contudo, sempre sinto - por motivos que não vêm ao caso agora - um ponta de tristeza quando a ouço.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Um fracasso de espécie





"Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado"

Carlos Drummond de Andrade, no poema O sobrevivente



Numa das mais conhecidas cenas do filme Matrix*, o agente Smith, próximo à janela de um arranha-céu e tendo sob seu jugo um Morpheus intimidado e fora de combate graças ao efeito de drogas poderosas, divaga: "Já olhou para tudo isso de cima? Maravilhado com sua beleza, sua genialidade? Bilhões de pessoas vivendo suas vidas distraídas". Para o agente Smith, "como espécie os seres humanos definem a realidade através da desgraça e do sofrimento". O vilão não está maravilhado pela beleza e genialidade da atividade humana. Não, o que ele admira é o simulacro (a própria Matrix) criado pela inteligência artificial à qual serve, para iludir nosso "cérebro primitivo" e nos fazer crer que estamos no "ápice da civilização".

Logo mais adiante, prosseguindo seu monólogo noutra cena (e que grande momento do ator Hugo Weaving!), Smith conta-nos sobre a revelação que teve no seu tempo dentro da Matrix:

"Ela me ocorreu quando tentei classificar sua espécie e me dei conta de que vocês não são mamíferos. Todos os mamíferos do planeta, instintivamente, entram em equilíbrio com o meio ambiente. Mas os humanos não. Vocês vão para uma área e se multiplicam e se multiplicam, até que todos os recursos naturais sejam consumidos. A única forma de sobreviverem é indo para uma outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus. Os seres humanos são uma doença. Um câncer neste planeta. Vocês são uma praga".

E justificando seu trabalho de exterminador, arremata: "E nós somos a cura".

Não é assim, porém, que a humanidade costuma olhar para si própria (a autocrítica, mecanismo tão útil para ajuste e correção, ao que tudo indica não está inserida em nosso código genético). Os seres humanos, encantados (ou iludidos) com sua autoimagem de indivíduos racionais e sensíveis, parecem a todo tempo repetir, como um mantra, a famosa fala de Miranda, em A tempestade, de Shakespeare: "O, wonder!/How many goodly creatures are there here!/How beauteous mankind is! O brave new world, that has such people in't!".

Contudo, definitivamente, não somos criaturas admiráveis, nem maravilhosas.  

NOTA: Uma tradução aproximada da citação anterior poderia ser: "Ó, maravilha!/ Quantas criaturas agradáveis há aqui/Quão deslumbrante a humanidade é! Ó admirável mundo novo que tem pessoas tais nele!". É preciso considerar, porém, que a jovem Miranda coloca em sua fala uma boa dose de ironia. De todo modo, seu brado de admiração foi sendo interpretado por alguns, com o passar do tempo, como um elogio aos supostos dons da humanidade.

O historiador britânico Felipe Fernández-Armesto, em seu livro Então você pensa que é humano?: uma breve história da humanidade**, faz questão de nos lembrar que, antes de qualquer outra coisa, permanecemos animais: "Ao que parece, nunca deixamos de ser macacos; mas aspiramos a ser anjos". A teoria da evolução por seleção natural, claro, forneceu os últimos fundamentos para a sólida base conceitual-argumentativa que retirou dos humanos, por completo, o status de espécie superior, essencialmente distinta em relação aos outros seres vivos:

"Darwin" - afirma Fernández-Armesto - "evidentemente preferia Jenny [uma fêmea de orangotango que habitava o zoo de Londres]*** a alguns dos humanos que conhecia. Em particular, achou repulsivos os nativos da Terra do Fogo quando os viu pela primeira vez, a bordo do Beagle, em 1832: 'o homem no seu estado mais baixo', eles lhe pareciam, aparentemente 'privados da razão humana ou ao menos das artes resultantes dessa razão'. A visão o convenceu de um pensamento tão terrível que ele nem sequer ousou confiá-lo à obra A origem das espécies: o homem era um animal como os outros animais [esse pensamento, dedução óbvia já a partir da leitura de seu trabalho mais conhecido, só seria explicitamente formulado pelo naturalista inglês, entretanto, em The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, publicado mais de uma década após A origem das espécies]".

Graças à teoria da evolução, "ficamos sabendo, portanto, que o homem descendeu de um quadrúpede peludo, com rabo e orelhas pontudas, provavelmente de hábitos arbóreos"

Então você pensa que é humano se enfraquece quando o autor, no afã de fazer valer seus pontos de vista, cai em simplificações e generalizações com pouco poder de convencimento. Ainda assim, Felipe Fernández-Armesto chama atenção para diversos aspectos importantes da relação (no mínimo problemática) dos humanos com os outros animais, permitindo ao leitor, inclusive, extrapolar para considerações que contemplem a relação da humanidade com o próprio planeta em que vivemos. Poderíamos continuar a explorar indiscriminadamente os recursos naturais como se apenas o bem-estar dos humanos (e de um grupo bem delimitado de humanos, bem entendido) importasse? Que direito temos de confinar animais e nos servir deles como se fossem apenas insumo industrial?

Fazendo questão de se distinguir das outras espécies desde sempre (para Descartes, por exemplo, os animais eram apenas máquinas desprovidas de espírito), os humanos, supostamente detentores de uma natureza ou essência singularíssima, acabaram transformando a Terra num ambiente perigoso para milhares de outros seres vivos. E a solução para o drama colocado está longe de ser simples. Fernandez-Armesto sugere que:

Talvez pudéssemos simplesmente parar de nos preocupar com nossa incapacidade de definir a natureza humana, e adotar um altruísmo cósmico – colocando as outras espécies em primeiro lugar. Poderia ser ecologicamente salutar, mas não seria prático: nenhuma sociedade poderia ser tão altruísta e sobreviver”.

. . . . . . .

O que foi até agora apresentado na postagem me remete a um artigo da jornalista e escritora Eliane Brum****, publicado em fevereiro deste ano na edição online do jornal El País. Com um título em que não há margem para subterfúgios – Todo inocente é um fdp? -, o artigo (e digo com sinceridade) me fez pensar durante dias e dias. Até hoje não me recuperei do impacto.

No seu texto, Eliane Brum também se vale do filme Matrix, mas a cena destacada é outra: aquela em que o personagem Cypher, diante de um suculento (e ilusório) bife, combina com o agente Smith como executará sua traição ao grupo de rebelados. A articulista argumenta que, por vivermos num período histórico em que quantidades imensas de informação nos são acessíveis através de uns poucos cliques, não podemos mais usar a desculpa do “Eu não sabia!”:

Talvez o mal-estar do nosso tempo seja o de que já não é possível escolher entre a pílula azul e a vermelha [opção que ocorre em Matrix] – ou entre continuar cego ou começar a enxergar o que está por trás da trama dos dias. O mal-estar se deve ao fato de que talvez já não exista a pílula azul – ou já não seja possível a ilusão, esta que desempenhou um papel estrutural na constituição subjetiva da nossa espécie ao longo de milênios”


Se queremos um filé, não podemos mais desconhecer os meios que o fizeram chegar, limpinho e embalado a vácuo, às nossas mãos:

Nossa superpopulação de humanos extrapolou a lógica dos vivos, matar para comer. E impôs a escravização e a tortura cotidiana de outras espécies. Milhões de bois, galinhas e porcos nascem apenas para nos alimentar em campos de concentração aos quais damos nomes mais palatáveis. São sacrificados em holocaustos diários sem que nem mesmo tenham tido uma vida”

Pensar criticamente sobre isso não é, como assevera Brum, “algo menor ou coisa de 'adoradores de alface'”, pois alcança até ela mesma, “que pode ser colocada na categoria de 'adoradores de churrasco' ”.


Não acaba aí. O ritmo da produção agropecuária atual leva a “desmatamento, destruição de ecossistemas inteiros e com eles toda a vida que lá havia [inclusive, agrupamentos de humanos, como no caso de algumas populações indígenas brasileiras]. A roupa e calçados, bem como algumas bugigangas eletro-eletrônicas que adquirimos nos magazins da vida têm “o sangue de crianças, homens e mulheres em regime de trabalho análogo à escravidão”.

O tempo das ilusões acabou”, nos diz Eliane Brum. E acrescenta, um pouco mais adiante:

Comemos, vestimos, nos entretemos, transportamos e nos transportamos à custa da escravidão, da tortura e do sacrifício de outras espécies e também dos mais frágeis de nossa própria espécie. Somos o que de pior aconteceu ao planeta e a todos que o habitam. A mudança climática já anuncia que não apenas tememos a catástrofe, mas nos tornamos a catástrofe. Desta vez, não só para todos os outros, mas também para nós mesmos”.

Ser completamente inocente, num cenário desses, é praticamente impossível. Por isso, muitos adotam o cinismo (“Desde que não seja eu – ou os meus – os sacrificados, tudo bem”). Tomar consciência desse cenário é também doloroso para quem se dispõe a não se omitir pelo menos - “não é fácil viver na pele do algoz”

Mas o que fazer agora após o inexorável choque de realidade?

Talvez estejamos, como espécie que se pensa, diante de um dos maiores dilemas éticos de nossa história. Sem poder optar pela pílula azul, a das ilusões, condenados à pílula vermelha, o que nos obriga a enxergar, como construir uma escolha que volte a incluir a ética? Como não paralisar diante do espelho, reduzidos ou ao horror ou ao cinismo, eliminando a possibilidade de transformação? Como nos mover?”

Confesso que não sei nem por onde começar a tentar responder as indagações deixadas por Eliane Brum. Carnívoro preguiçoso, incapaz de me mobilizar até para reciclar o lixo de minha própria habitação, sou um dos bilhões de filhos da puta espalhados por esse planeta condenado. E sem a desculpa de ser inocente ou a desfaçatez suficiente para abraçar o cinismo por inteiro.

* Matrix, lançado em 1999, foi escrito e dirigido pelos (então) irmãos Andy e Larry Wachowski (hoje, Lilly e Lana Wachowski, respectivamente, já que se assumiram como mulheres transgênero - Lana, desde 2008, e Lilly, a partir deste ano).
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** FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano?: uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras: 2007 [Tradução de Rosaura Eichemberg]

*** O ótimo filme Criação (sobre o qual ainda escreverei aqui no blog) mostra um pouco desse interesse de Darwin na primata do zoo de Londres

**** BRUM, Eliane. Todo inocente é um fdp?, El País, 29 fev. 2016. Disponível em <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/29/opinion/1456756118_797834.html> Acesso em 2 mar. 2016

BG de Hoje

Percebe-se, nos últimos dez anos pelo menos, uma tendência para retomar a simplicidade dentro da música pop (vejam, por exemplo, o caso do Alabama Shakes). Puxando mais para o blues e o garage rock, tal tendência está também presente no trabalho de Patrick Carney e Dan Auerbach (THE BLACK KEYS). Escolho a bela canção Little black submarines, do álbum El Camino (2011), disco de maior sucesso comercial da banda até agora.